quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Petróleo sob o gelo



Petróleo sob o gelo
Canadá envia expedição ao Pólo Norte para provar que a riqueza do Ártico lhe pertence historicamente
LUCIANA SGARBI

Essa é, literalmente, uma guerra fria - e como em toda guerra as grandes potências não medem esforços para conquistar um imenso território. O que está em jogo é o gelo. Para entender o motivo da disputa, no entanto, é preciso mergulhar 4,3 quilômetros nas águas do Pólo Norte, na região do Ártico, porque é lá que está o objeto da cobiça. Explica- se: segundo a agência governamental americana US Geological Survey, 25% das reservas mundiais de petróleo estão localizadas ao norte do círculo polar. Trata-se de um novo eldorado que os países costeiros (Rússia, EUA, Canadá, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Suécia e Islândia) podem reivindicar o direito de exploração. Ali estão dez bilhões de toneladas de petróleo e gás, ou seja, um quarto das reservas de todo o planeta, o equivalente a 400 bilhões de barris. As reservas da Arábia Saudita, atualmente o maior produtor mundial, são de 262 bilhões. Tanta riqueza ainda não tem dono e o Canadá tenta conquistá-la alegando que os canais que formam a Passagem Noroeste estão em sua área territorial. Em outras palavras, o governo canadense afirma ter direito a uma boa parte do petróleo que está sob o Ártico.

Localizado em águas internacionais, o Pólo Norte, na verdade, pertence a todo o mundo - portanto, não é particularmente de ninguém. Ele está sob a tutela da Convenção Internacional do Direito do Mar (órgão da ONU), que declara serem os fundos marinhos, situados além das jurisdições nacionais, "patrimônio comum da humanidade". Segundo a convenção, cinco países com territórios dentro do Círculo Ártico (Rússia, EUA, Canadá, Noruega e Dinamarca) estão limitados a uma zona de controle econômico de 320 quilômetros ao longo de sua costa. O Canadá, no entanto, diz ter direito a uma porção maior e, para tentar comprovar a sua tese, envia agora uma expedição em busca de vestígios de navios do século XIX que teriam usado uma misteriosa rota à qual o país diz ter direito.

Era o ano de 1845 quando o inglês John Franklin e mais 128 homens, sob seu comando e a bordo dos navios Erebus e Terror, foram vistos pela última vez ao tentarem encontrar a mítica Passagem Noroeste, capaz de encurtar a rota entre Atlântico e Pacífico. Eles desapareceram e até hoje esse é um dos grandes mistérios da conquista do Ártico. Essa tal rota jamais pôde ser explorada por causa das calotas polares, mas, agora, como as geleiras estão derretendo em decorrência do aquecimento global, torna-se mais viável a possibilidade de se explorar a região. Passados 150 anos, a Passagem Noroeste parece mais acessível do que nunca e há estimativas de especialistas de que até o verão de 2015 toda a sua área estará degelada. O envio da expedição foi anunciado pelo ministro do Meio Ambiente do Canadá, John Baird, com ares triunfais e bom humor: "Somos capazes de rivalizar com as aventuras de Indiana Jones." O principal objetivo da missão é desvendar o mistério do desaparecimento dos navios de Franklin, uma vez que, se forem encontrados vestígios das embarcações e ficar provado que ele de fato explorou a região onde hoje se sabe haver petróleo, é considerável ponto a mais para o governo canadense afirmar que o Ártico é seu. 03.Set.08

Revista ISTO É

Guerra gelada



Guerra gelada
O aquecimento global derreteu o gelo do Ártico. E liberou um tesouro disputado por alguns dos países mais ricos do mundo
por Vinicius Cherobino

Lá no topo do hemisfério Norte, onde centenas de ilhas pontilham um oceano quase sempre congelado, a rotina não é muito empolgante. A temperatura chega a -50°C, quase não há luz do sol por 5 meses e os 300 mil nativos vivem de caça e pesca. Um tédio esse Ártico. Mas vai continuar assim por pouco tempo. Militares, cientistas e empresas começaram a desembarcar na região para iniciar uma colonização em pleno século 21, talvez a última aventura do tipo para o homem neste planeta. Querem um tesouro recentemente aberto. E ainda sem dono.

Debaixo do gelo do Ártico há petróleo suficiente para encher 83 bilhões de barris. É o triplo do estimado para o pré-sal brasileiro. Tem também gás natural para abastecer o planeta todo por 14 anos. Isso dá ao Ártico 20% dos combustíveis fósseis ainda não explorados no mundo. E não para por aí: há minérios como ferro, carvão, urânio. E ouro. E diamantes. De olho na riqueza, Canadá, Estados Unidos, Noruega, Rússia e Groenlândia estão investindo em expedições científicas, propaganda, pressão militar e discussão diplomática para dividir a região. A última partilha de território dessa proporção aconteceu na virada para o século 20, quando europeus retalharam a África no auge do colonialismo.

A reserva ficou intacta até hoje porque era inalcançável. Além do frio rigoroso, dos longos dias com poucas horas de claridade, dos ventos fortes, o Ártico tem boa parte da extensão congelada. E o gelo impede uma exploração econômica de larga escala. Por isso, o máximo que os países vizinhos faziam era se alfinetar. Canadá e Dinamarca disputam há décadas a posse da ilha Hans, uma ilhota de 1,3 km2. Nada de agressivo. Só deixavam lá algo para marcar território. Começou com bandeiras, depois a disputa ficou mais informal. "Dinamarqueses deixam uma garrafa de schnapps [bebida típica do país]. Os canadenses, uma garrafa do tradicional uísque Canadian Club, com um cartaz que diz ‘Bem-vindo ao Canadá’", afirma o advogado responsável pelo Ministério das Relações Exteriores da Dinamarca, Peter Taksoe-Jensen.

O que aqueceu a briga foi o aquecimento global (com o perdão do trocadilho). Em janeiro de 2011, a extensão de gelo no Ártico era de 13,5 milhões de quilômetros quadrados, a menor para o mês desde o início dos registros, em 1979, pelo Centro de Dados sobre Gelo e Neve da Universidade de Colorado, em Boulder, nos EUA. E o gelo que sobrou chega a ser 40% mais fino dependendo da área.

Com menos gelo, o Ártico tornou-se finalmente acessível à exploração econômica de larga escala. Bem na hora em que o mundo mais precisa. Entre 1999 e 2011, o petróleo saltou de US$ 17 para US$ 115 por barril. Nas poucas novas reservas encontradas, como o pré-sal brasileiro, a exploração é difícil e cara. E nos maiores países produtores, no Norte da África e no Oriente Médio, a instabilidade política é uma ameaça ao suprimento.

Além disso, o aquecimento liberou uma passagem marítima ligando a Ásia à América do Norte e à Europa que é 7 mil metros mais curta do que o canal do Panamá, na América Central (veja mais no quadro ao lado). Isso significa um caminho menor para os navios que transportam mercadorias. "As perspectivas de exploração do Ártico foram de implausíveis para aparentemente inevitáveis", diz Barry Scott Zellen, aventureiro e estudioso do Ártico, no livro Arctic Doom, Arctic Boom (sem tradução em português). "Se, ou melhor, quando isso ocorrer, será a descoberta de um novo mundo que ficou oculto para o uso por longo tempo por causa do gelo e do frio."

Há muito em jogo. Mas o conflito pela posse vinha meio morno até 2007, quando a briga ficou acirrada. Artur Chilingarov, parlamentar russo e explorador polar, concluiu uma expedição ao chão oceânico do polo Norte fincando lá uma bandeira da Rússia. A ação foi vista como uma tentativa russa de reivindicar o controle da região. "Não estamos no século 15. Ninguém pode sair dizendo ‘Este território é meu’", afirmou na época à imprensa Peter MacKay, então ministro canadense das Relações Exteriores.

Foi dada a largada

MacKay pode até estar certo, mas depois disso cada país correu, sim, para garantir o seu. Em março, dois submarinos dos EUA estiveram no Ártico fazendo exercícios. "Demonstrar a presença dos Estados Unidos é importante", disse na ocasião Christopher Colvin, almirante da guarda costeira do país, à agência de notícias Reuters, ressaltando que os russos vêm aumentando sua presença no Ártico.

Em 2009, dois bombardeiros russos Tupolev TU-95 foram descobertos pelos radares da Otan sobrevoando o polo Norte e chegando ao mar de Beaufort (em disputa por Canadá e EUA). Dois aviões canadenses tentaram interceptá-los. No fim, tudo foi resolvido amigavelmente. Mas essa foi apenas uma entre várias sondagens no Ártico feitas por seus vizinhos. A ilha Hans, por exemplo, é sobrevoada constantemente por dinamarqueses e canadenses, o que já fez a imprensa canadense publicar editoriais com nomes como O Retorno dos Vikings.

As empresas também estão correndo atrás. Em janeiro de 2011, a britânica BP fechou um acordo com a Rosneft, estatal russa de petróleo. As duas pretendem explorar juntas o petróleo em águas da Rússia (o acordo está sob avaliação de órgãos reguladores). No fim de 2010, a escocesa Cairn Energy ganhou autorização da Groenlândia para fazer testes de perfuração ao norte da ilha. E a Noruega prepara leilão para liberar exploração em suas águas. Nesse ritmo, o petróleo do Ártico poderá chegar às bombas de combustível do hemisfério Norte em 10 anos, segundo as companhias envolvidas na exploração.

Enquanto isso, os países tentam ganhar suas batalhas nos tribunais. A divisão da região entre as nações que fazem fronteira está longe de ser consensual. Ao contrário da Antártica (que é uma massa de terra cercada por oceanos), o Ártico é composto principalmente de oceanos. E as discussões sobre quem é dono de uma parcela de água são mais complicadas do que para parcelas de terra. O debate é regulado por uma norma da ONU de 1982, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CDM). Por essa lei, um país pode explorar economicamente os recursos naturais e os combustíveis fósseis que estiverem a até 370 quilômetros de sua costa.

Mas há uma brecha na legislação. Se um país reunir evidências geológicas de que sua plataforma continental se estende por mais de 370 quilômetros, ganha uma lambuja: pode explorar com exclusividade uma área até 648 quilômetros distante da costa. (Plataforma continental é a borda do continente, que segue por baixo do mar.) Esse é o argumento que os países interessados no Ártico preparam para apresentar no Tribunal Internacional para a Lei do Mar, da ONU. Noruega e Rússia já entregam provas a seu favor desde 2006 e 2007, respectivamente, e têm até 2014 para concluir a argumentação. O mesmo vale para a Dinamarca, representando a Groenlândia. O Canadá vai ao tribunal em 2013.

Os debates acontecem ainda no Conselho do Ártico, do qual fazem parte EUA, Canadá, Dinamarca, Noruega, Rússia, Islândia, Suécia e Finlândia. Com reuniões semestrais, o órgão serve para lavar a roupa suja em casa. No último encontro, os membros assinaram uma declaração garantindo que negociações serão feitas exaustivamente para evitar conflitos. "Os países se comprometeram a resolver todas as disputas por acordos. Somos bons vizinhos", diz Ole Samsing, representante da presidência do Conselho do Ártico.

A garantia dos países envolvidos de que não haverá conflito não está escrita em pedra. Os EUA partiram para a segunda guerra do Iraque, por exemplo, contra um veto do conselho de segurança da ONU. (E o país até hoje nem ratificou a Convenção sobre o Direito do Mar.) A importância dos recursos no Ártico é mais do que suficiente para manter a tensão.

Outra questão que deve gerar discussão é a ambiental. "Colocar mais pressão nessa região, que já sofre com o aquecimento global, aumenta o risco de colapso do ecossistema inteiro", afirma Katherine Richardson, professora de oceanografia da Universidade de Copenhague, na Dinamarca. Para Katherine, coordenadora de um trabalho do governo dinamarquês para buscar alternativas a combustíveis fósseis, mudanças no ambiente do Ártico podem ser letais para plantas, animais e pessoas que se acostumaram a viver lá. Como última fronteira de fato inexplorada da Terra, o Ártico é o palco de uma batalha ainda sem desfecho claro.

Canadá X EUA - Mar de Beaufort

Briga por 21,4 km2 do oceano, travada na ONU. Canadá e EUA argumentam que suas plataformas continentais chegam até a área em questão.


Canadá x EUA e europeus - Passagem do noroeste

Caminho entre Ásia e Atlântico mais curto do que a rota pelo canal do Panamá. E mais profundo, o que permite a navegação de porta-aviões. O Canadá defende na ONU que a passagem está em suas águas. EUA e outros países dizem que a rota é internacional.


Canadá x Dinamarca - Ilha Hans

Única faixa de terra no Ártico disputada. É pleiteada pelos dois países desde 1933. Hoje o processo corre na ONU.


Groenlândia Independente x Dinamarca - Groenlândia

Controlada há dois séculos pela Dinamarca, a Groenlândia quer a independência. A autonomia depende de um referendo popular.


Noruega x Rússia - Mar de Barents

Após 40 anos de debates, os dois países fizeram um acordo em setembro de 2010 criando uma fronteira no mar. Até então havia uma moratória para exploração de petróleo e gás.

Para saber mais
Arctic Doom, Arctic Boom
Barry Scott Zellen, Praeger, 2009

Who Owns the Arctic
Michael Byers, Douglas & McIntyre, 2010
Revista Superinteressante

Quais os níveis de radiação a que estamos expostos no dia a dia?


Quais os níveis de radiação a que estamos expostos no dia a dia?

O cotidiano é radioativo: da luz solar ao ato de comer uma banana. Saiba onde começam os riscos da radiação
por Pamela Forti, Jorge Oliveira e Felipe Van Deursen

Há dois tipos, ionizante e não ionizante. A segunda é mais comum, presente em celulares, por exemplo. Seu único efeito conhecido é o aumento de temperatura (micro-ondas funcionam assim). Há estudos questionando sua segurança, mas a radiação que comprovadamente faz mal é a ionizante, que pode matar em poucas horas. Tudo questão de dose e tempo: o corpo humano é capaz de eliminar pequenas quantidades.

AFINAL, E O CELULAR?

Em maio a OMS o reclassificou como "possivelmente cancerígeno". Mas a própria organização disse que faltam estudos que comprovem o risco. O problema da radiação não ionizante é a emissão de ondas eletromagnéticas. "Neurônios podem absorver frequências baixíssimas do aparelho, o que poderia causar tumores", explica Álvaro Almeida Salles, da UFRGS. Mas você teria que usar muito o celular para levar isso em conta. Segundo Renato Sabbatini, da Unicamp, só quem fala no aparelho pelo menos 30 minutos ao dia, por 20 anos, precisa se preocupar. Na dúvida, use mais o viva-voz e evite deixar o telefone o tempo todo no bolso.

Revista Superinteressante

domingo, 27 de novembro de 2011

Estatuto da Cidade - A lei da cidade

Estatuto que criou política urbana tem dez anos, mas conquistas não atendem expectativas

PEDRO BIONDI


Transporte coletivo: "Visto como algo para os pobres"
Foto: Pedro Biondi



Há dez anos entrava em vigor a lei federal 10.257, mais conhecida como Estatuto da Cidade, que regulamentou o capítulo de desenvolvimento urbano da Constituição Federal e instituiu uma tábua de mandamentos cujo norte era a ideia de cidades sustentáveis. Na busca desse cenário ideal, o uso da propriedade urbana é limitado pelo bem coletivo, pela segurança e pelo bem-estar dos cidadãos e pelo equilíbrio ambiental. Nas cidades sustentáveis, diz o estatuto, é assegurado “o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.

Ainda segundo o texto dessa lei, a política urbana tem por objetivo “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana” e deve ser implementada por meio de gestão democrática, com participação da sociedade. Seus instrumentos permitem adensar, flexibilizar, reorientar ou “congelar” áreas para estimular a atividade econômica, promover a qualidade de vida, baratear a moradia e preservar o patrimônio natural ou histórico. E propiciam ao governo municipal a recuperação de parte dos lucros gerados por melhorias de infraestrutura que valorizem imóveis ou regiões.

De lá para cá esses princípios e práticas entraram em implementação, acompanhados de passos importantes em trilhas legais, institucionais e políticas. Apesar disso, as áreas urbanas – onde se concentram 84,4% dos 191 milhões de brasileiros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – continuam gerando ou expressando carências profundas, relacionadas à falta de moradia, a nós de trânsito e à produção de montanhas diárias de lixo – problemas que, em muitos casos, vêm sendo descritos por imagens como “caos” e “colapso”. Seria a norma frágil, avançada demais ou fácil de contornar?

Na prática

Segundo o economista Jeroen Klink, as conquistas reais ficaram aquém da expectativa até aqui. “Não mudou drasticamente o processo de aprovação de obras e o controle social sobre ele, e tampouco a governança sobre a terra”, exemplifica o professor da Universidade Federal do ABC.

Entre as novidades para a administração municipal está a exigência de estudo de impacto de vizinhança (EIV) para empreendimentos com possíveis efeitos negativos. Também as audiências públicas compõem o cardápio de aberturas participativas para as decisões importantes. Poucas prefeituras, porém, têm lançado mão delas quando não são obrigatórias, e organizações civis se queixam das condições em que se dão as consultas. Por fim, praticamente não se tem notícia de algumas aplicações, como a desapropriação de imóveis subutilizados.

“Sob o ponto de vista das instituições e da política, o estatuto é um bebê ainda”, pondera o relator de direito à cidade da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil), Orlando dos Santos Junior. Em sua opinião, a questão de fundo é um conflito entre diretrizes e práticas de mercantilização e desmercantilização da cidade – ou seja, entre as “leis do mercado” e suas contrapartidas. “Temos uma Constituição em que a propriedade privada tem muita força”, comenta.

O vice-presidente do Sindicato da Habitação do Estado de São Paulo (Secovi), Claudio Bernardes, destaca as possibilidades geradas para o desenvolvimento das cidades por instrumentos urbanísticos previstos no estatuto, como as operações urbanas consorciadas, a outorga onerosa e a transferência de potencial construtivo (ver texto abaixo). Ele faz contudo uma ressalva: “É como uma caixa de ferramentas cirúrgicas, que deve ser usada por alguém com capacidade. Nas mãos de um médico ruim, fica perigosa”. Bernardes, que também é pró-reitor da Universidade Secovi, explica que o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo, em especial, pode ser muito positivo ou muito negativo. Em sua opinião, os problemas que afetam os grandes centros e as localidades em seu entorno pedem hoje a elaboração de um “Estatuto da Metrópole”.

Longa gestação

O Estatuto da Cidade descende de uma das 83 proposições elaboradas pela sociedade civil e recebidas pelos parlamentares na Constituinte – a emenda popular 63/1987, ou Emenda Popular da Reforma Urbana, apresentada com 131 mil assinaturas. Boa parte de seu conteúdo não entrou no texto constitucional, mas foi incorporada na lei que o regulamentou.

Apresentado em 28 de junho de 1989 pelo senador Roberto Pompeu de Souza, o projeto de lei do estatuto herdou mais uma coisa daquele momento: o cabo de guerra entre o Movimento Nacional pela Reforma Urbana e entidades do setor imobiliário e construtivo, conforme explica o consultor legislativo do Senado José Roberto Bassul, ex-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil. O artigo 182 da Constituição, embora gerasse a necessidade imediata de uma lei federal para ser aplicado, deslocou em parte essa batalha para o âmbito local, ao dar centralidade ao plano diretor municipal na política urbana.

Entre outros, o projeto de lei do estatuto despertou a ira dos participantes da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP). No entanto, diz Bassul, após anos de impasse na Câmara dos Deputados, o documento passou a agradar ao pessoal favorável à reforma urbana e ao capital imobiliário. “Boa parte dos instrumentos incluídos na proposta já vinha sendo posta em prática pelos municípios, com resultados animadores para o empresariado, e isso derrubou o preconceito que marcava o projeto como socialista”, explica.

As cidades se repensam

O Ministério das Cidades realizou uma campanha para estimular a elaboração do plano diretor – que é obrigatório para municípios com mais de 20 mil habitantes ou perfil turístico – e ao final 87% deles estavam em dia com o compromisso. Um balanço crítico dessa leva de planejamentos, apresentado no livro Os Planos Diretores Municipais Pós-Estatuto da Cidade, organizado por Orlando dos Santos Junior e Daniel Todtmann Montandon, mostra que os principais sucessos divulgados dizem respeito à adesão a processos participativos e sua promoção, bem como à inclusão dos instrumentos urbanísticos. Segundo o estudo, 91% dos planos têm zoneamento, 87% preveem mecanismos para desapropriação de imóveis ociosos e 81% criam zonas destinadas a habitação para a população de baixa renda. Apesar desses avanços, há falta não só de metas e estratégias como da própria identificação de fontes de recursos para sua consecução.

Outra constatação é que há baixa capacidade institucional e técnica das prefeituras para lidar com essas questões. Segundo Santos Junior, que é também coordenador da Rede para a Implementação dos Planos Diretores Participativos, isso reflete, em parte, falta de empenho em transformações. “É necessário chegar a um modelo de debate que explicite os interesses dos diferentes atores e os conflitos resultantes”, opina. “E para a implementação dos planos parece interessante cada cidade identificar os instrumentos que são mais úteis para ela e concentrar-se neles.”

Uma das principais recomendações do balanço é que os municípios avancem (e os estados e a União os apoiem) na estruturação do Cadastro Territorial Multifinalitário – ou seja, conheçam a si mesmos de forma detalhada para embasar quaisquer decisões.

A relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito a moradia adequada, Raquel Rolnik, e o professor Jeroen Klink concluíram em 2010 o estudo Crescimento Econômico e Desenvolvimento Urbano, sobre as cidades brasileiras e as condições de habitação em 1991, 2000 e 2008. Os autores elaboraram um indicador de condições de urbanidade baseado no acesso a infraestrutura, no qual são considerados adequados os domicílios fora de assentamentos precários (favelas e afins), com banheiro, luz elétrica, abastecimento de água, afastamento de esgoto e lixo, e no máximo duas pessoas por cômodo. Os dados referentes a 1991 apresentavam um país com cidades de baixas condições de urbanidade: menos de 23% de casas e apartamentos totalmente adequados e cerca de 50% dos municípios com índice zero de moradias nessas condições.

Em 2000, o quadro mostra um Brasil com 33% dos domicílios totalmente adequados (o que significava 30,5 milhões sem alguns dos itens mínimos) e nenhuma municipalidade com 100% das residências plenamente adequadas. Na projeção para 2008, a porcentagem de domicílios adequados crescia um pouco mais rápido. As variações, embora positivas em todas as regiões, foram mais intensas onde já havia melhores condições.

Eixo do PAC

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) tem na infraestrutura social e urbana um de seus eixos. Segundo seu último relatório, divulgado em julho, com dados consolidados até outubro de 2010, o programa previa destinar à habitação R$ 106,3 bilhões públicos e privados entre 2007 e 2010, beneficiando 4 milhões de famílias. Além disso, deveria garantir água e coleta de esgoto a 22,5 milhões de domicílios e infraestrutura hídrica (que inclui, por exemplo, a construção de canais, adutoras e barragens de médio e grande porte) a 23,8 milhões de pessoas.

Os desembolsos do governo para as duas áreas durante esse período, contudo, ficaram muito longe das metas, segundo relatório do Tribunal de Contas da União (TCU). De acordo com o documento, o governo previa gastar R$ 16,9 bilhões em habitação de interesse social pelo PAC, mas conseguiu desembolsar apenas 2% do total, atendendo 24 mil famílias. Já em saneamento, da meta de R$ 40 bilhões, somente teria sido aplicado R$ 1,5 bilhão. O Ministério do Planejamento afirma que esses percentuais subiriam se fossem computadas obras em curso, acrescentando que a falta de iniciativas semelhantes no período anterior deixou defasada a área de engenharia dos municípios, acarretando maior demora nas ações. Ainda segundo a assessoria de imprensa dessa pasta, o Programa Minha Casa, Minha Vida, lançado em 2009, chegou a 1 milhão de unidades contratadas no período, num esforço para cobrir parte do déficit habitacional.

O PAC 2 deve destinar R$ 278,2 bilhões à habitação até 2014, entre dinheiro público e privado, no âmbito da segunda edição do Minha Casa, Minha Vida. Há previsão do desembolso de R$ 22,1 bilhões em saneamento, R$ 18 bilhões para obras no metrô, corredores de ônibus e afins, R$ 13 bilhões direcionados ao setor de água em áreas urbanas e R$ 11 bilhões para drenagem e contenção de encostas (valores que não incluem a contrapartida de estados e municípios). Além disso, existe a intenção de construir equipamentos para qualificação urbana, como praças e postos de saúde.

Ciclo vicioso

O estudo de Jeroen Klink e Raquel Rolnik problematiza o cenário. A soma de elementos claramente positivos – crescimento da economia, oferta maior de crédito, “aumento espetacular” do gasto público em desenvolvimento urbano, um dos ciclos imobiliários mais intensos da história nacional, um novo marco legal – não estaria conseguindo suplantar um modelo viciado, “marcado por disparidades socioespaciais, ineficiência e grande degradação ambiental”, em que a população de baixa renda é sempre a menor beneficiária.

A solução não se completa em nível local, conclui Klink, porque essas questões passam pelo sistema político nacional e sua lógica de negociação. Para piorar, a precariedade que empurra pessoas para áreas ambientalmente frágeis e sem estrutura potencializa os efeitos de inundações, secas e incêndios. Este ano, mal tinha arrefecido a comoção com a tragédia na serra Fluminense, o sul do país já contabilizava milhares de desabrigados e dezenas de mortes em função de chuvas, sem falar no prejuízo financeiro. Em junho, foi a vez de Roraima enfrentar uma das piores cheias de sua história. A preocupação aumenta com o agravamento dos desastres devido às mudanças climáticas.

Entre as medidas anunciadas para enfrentar essa situação, 25 cidades deverão contar, a partir deste verão, com sistemas de alerta contra enchentes e deslizamentos. Está previsto para novembro o início das operações do Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), criado por decreto em julho pela presidente Dilma Rousseff. O centro, onde trabalharão inicialmente 75 pesquisadores, deve receber investimentos de R$ 250 milhões até 2015.

Um atlas das áreas de risco foi encomendado pelo Ministério da Integração Nacional à Universidade Federal de Santa Catarina. Quando esta reportagem estava em fechamento, os inventários por estados se encontravam em fase de finalização.

A luta por um teto

Estima-se que 5,5 milhões de famílias careçam de moradia digna. Os números do déficit habitacional representam pessoas morando em favelas, cortiços e loteamentos irregulares. A partir desse contingente, formaram-se organizações como a União Nacional por Moradia Popular (UNMP), que descobriu nas ocupações de prédios e terrenos uma forma de chamar a atenção da sociedade e pressionar os governantes.

De acordo com a titular da Secretaria de Mulheres da UNMP, Maria das Graças Xavier, esses movimentos conseguiram bons ajustes no Minha Casa, Minha Vida, como o subsídio maior para famílias com renda de até três salários mínimos. As bandeiras atuais dos militantes passam pelo fortalecimento do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e pelo estabelecimento de um percentual mínimo para moradia nos orçamentos federal, estaduais e municipais.

Depois de crescer de 5,9 milhões de unidades, em 2000, para 6,3 milhões, em 2005, o déficit habitacional caiu substancialmente, chegando a 5,5 milhões em 2008. Os números são da Fundação João Pinheiro, do governo de Minas Gerais. Para acelerar o processo, Maria das Graças Xavier sugere que administrações municipais e estaduais se disponham a firmar parcerias. “A principal contribuição delas pode ser a oferta de terrenos centrais para Zeis”, esclarece.

Desde a década de 1990, iniciativas como o Programa Favela-Bairro priorizam a permanência dos habitantes, em vez da remoção para conjuntos distantes do trabalho e de referências pessoais. Em 2004, o governo federal passou a emitir títulos de posse para moradores de favelas por meio do Programa Papel Passado, que promove também a urbanização desses locais. “Somos a favor dessa iniciativa, como forma de dar alguma segurança a pessoas numa sociedade capitalista”, afirma a líder. “Estamos discutindo a possibilidade de um modelo com posse coletiva.”

Ruas congestionadas

A crise na mobilidade urbana, com a multiplicação de carros e motos, evidencia os efeitos colaterais da estabilidade econômica. O ritmo de crescimento do volume de veículos de passeio supera o da população na maioria das 15 metrópoles brasileiras, nas quais o número de habitantes subiu por volta de 10,7% e o de automóveis aumentou 66% entre 2001 e 2010, segundo estudo do Observatório das Metrópoles, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Isso significou mais de 900 mil carros despejados nas ruas a cada ano. Assim, Curitiba, Campinas, Florianópolis e São Paulo vão se aproximando de uma proporção de um carro para cada dois habitantes.

Como resultado, na saída do feriado de Corpus Christi de 2009, os paulistanos tiveram de encarar 293 quilômetros de congestionamento. Ainda de acordo com o Observatório, um em cada quatro moradores da Região Metropolitana do Rio de Janeiro leva mais de uma hora para ir de casa para o trabalho.

“Falta uma visão do transporte como serviço essencial”, afirma Nazareno Affonso, coordenador do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos (MDT) e representante da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) em Brasília. “Os investimentos são regidos pelo mercado e o transporte coletivo é visto como algo ‘para os pobres’.”

Ele alerta para uma cultura em que o transporte individual se impõe como se fosse um direito natural, sinônimo de cidadania, ao mesmo tempo em que exige um esforço contínuo de grandes obras. “O correto seria tratar o automóvel como um dos elementos do sistema, cobrar pelos custos que gera e investir os recursos arrecadados nos serviços públicos do setor.” Pelos cálculos da ANTP, os carros poluem dez vezes mais que os ônibus urbanos por passageiro transportado.

O MDT estima que as tarifas de ônibus poderiam cair 12% se o diesel para esse fim tivesse o preço ajustado; 19% se o passe estudantil e as gratuidades fossem custeados pela sociedade como um todo, por meio do poder público, e não somente pelos usuários do sistema; e 18% com redução de tributos e encargos. Dessa forma, uma passagem de R$ 2 poderia ir para R$ 1. Levando a ideia mais longe, nos últimos anos ganhou corpo o Movimento Passe Livre, que reivindica operação pública do transporte e tarifa zero.

Metas ambiciosas

O Brasil produz hoje 200 mil toneladas diárias de lixo. E, com o avanço do debate sobre o tema, a própria palavra vai mostrando sua inadequação, já que a maior parte do que se joga fora é reaproveitável. Está em vigor desde agosto de 2010 a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e agora falta ao país implementá-la. “É uma política muito avançada, com metas ambiciosas”, diz o secretário de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano, Nabil Bonduki, do Ministério do Meio Ambiente. Uma delas é a eliminação dos lixões até 2014. “A grande questão reside não nos recursos, mas em capacitação e vontade política, especialmente dos municípios”, explica o secretário.

Grupos de trabalho com foco nos tipos mais problemáticos de resíduos estão debruçados na questão da logística reversa, pela qual os fabricantes se responsabilizam por seus produtos após o uso. “Essa foi uma vitória”, diz o professor titular aposentado Luiz Moraes, da área de saneamento, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ele foi um dos coordenadores do Panorama do Saneamento Básico no Brasil, elaborado por três universidades federais (a de Minas Gerais, a UFBA e a UFRJ) a partir de chamada pública do Ministério das Cidades. De acordo com o estudo, as soluções ou serviços de esgotamento sanitário, a drenagem e o manejo de águas pluviais estão em pior situação que o abastecimento de água e a coleta de resíduos domiciliares.

O Panorama, que calcula em R$ 420,8 bilhões o investimento necessário até 2030, apresentou alguns dados reveladores. Embora o abastecimento de água mostre o quadro mais crítico no campo, onde estão 73% dos domicílios do país sem esse serviço, o esgotamento é mais problemático na área urbana, que responde por 58% do déficit. Tanto num quesito como no outro, a região nordeste concentra carências, com 55% das moradias brasileiras sem rede de abastecimento de água, poço ou nascente com canalização interna, além de 43% daquelas desprovidas de acesso à rede coletora ou fossa séptica.

No que respeita aos resíduos sólidos, ainda segundo o Panorama, as cidades têm maior cobertura. Em 2008, cerca de 90% dos moradores de áreas urbanas tinham soluções classificadas como adequadas quanto ao manejo, contra 28,8% dos residentes no campo. Nesse item, 39 milhões de brasileiros não são atendidos. Novamente, a região nordeste é aquela que apresenta os piores índices, com a parcela de 58% dos domicílios não atendidos, no país, por coleta porta a porta de resíduos sólidos domiciliares. O sudeste vem em seguida, com 28%.

Contas, propostas e esperanças

Lançado em março, o Atlas Brasil – Abastecimento Urbano de Água mostra a necessidade de um investimento de R$ 70 bilhões até 2025 em obras de água e esgoto, especialmente nas regiões metropolitanas e nas grandes cidades das regiões sudeste e nordeste. Segundo esse estudo, da Agência Nacional de Águas (ANA), mais da metade dos municípios brasileiros poderá ter seu abastecimento “no vermelho” já em 2015.

Um reforço para a PNRS foi incluído no Plano Brasil sem Miséria, por meio do qual os catadores de materiais deverão contar com empréstimos e cursos de capacitação, além de ser estimulados a formar cooperativas. Outra frente de sustentação da política de resíduos é o apoio federal a prefeituras para que implantem a coleta seletiva.

Mobilidade é o foco de uma proposta encaminhada pelo Secovi, em parceria com o ex-governador do Paraná e consultor da ONU Jaime Lerner, para o novo plano diretor paulistano, previsto para 2012. A ideia consiste em mudar o modelo de ocupação de maneira que as pessoas possam se deslocar menos. Polos ao longo das linhas de metrô e trem, voltados a todas as faixas de renda, contemplariam trabalho, estudo e diversão.

“O rompimento com a ordem vigente requer mobilização, movimentos sociais que se articulem em torno de novas utopias”, avalia Santos Junior. “O desafio não é mais buscar um novo modelo único.”


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Instrumentos legais para o desenvolvimento das cidades

• Operação urbana consorciada – Conjunto de intervenções em uma área que visem a transformações estruturais. Os recursos gerados têm de ser investidos no perímetro delimitado.

• Outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso – Autorização, com cobrança, para que o empreendedor construa acima do limite original ou mude a finalidade de um terreno. Os valores se destinam a melhorias urbanas.

• Transferência do direito de construir – Permissão para que o dono de um lote venda a área construída a que teria direito para terceiros e/ou use noutro local.

• Parcelamento, edificação e utilização compulsórios – Associados ao IPTU progressivo no tempo (elevação da alíquota do imposto), combatem a ociosidade de imóveis. No limite, alguém que mantenha um terreno ou prédio para especular fica sujeito à desapropriação com títulos públicos.

• Zonas especiais de interesse social (Zeis) – Destinadas a habitação para baixa renda, são áreas vazias ou assentamentos a urbanizar ou regularizar.

• Concessão de uso especial para fins de moradia – Permite a regularização de ocupações de até 250 metros quadrados em terras públicas para pessoas que não tenham outra propriedade. Pode ser assegurada de forma coletiva.

Revista Problemas Brasileiros

Desembarque de resíduos e lixo - Com forte cheiro de falcatrua

Desembarque de resíduos e lixo desafia agentes alfandegários e compromete segurança

ANDRÉ CAMPOS




Carlos Minc, ministro do Meio Ambiente
em 2009, e os contêineres vindos da
Inglaterra / Foto: Jefferson Rudy/MMA



Entre fevereiro e julho de 2009, cerca de 90 contêineres, supostamente trazendo aparas de plástico provenientes de um exportador inglês, desembarcaram nos portos de Santos (SP) e Rio Grande (RS). As cargas, em teoria, deveriam abastecer a indústria brasileira de reciclagem. A fiscalização, porém, revelou outra realidade: tratava-se de uma verdadeira montanha de lixo – mais de mil toneladas, incluindo itens perigosos como pilhas, seringas, banheiros químicos e camisinhas usadas. Em meio a toda sorte de restos, havia inclusive um tonel com brinquedos. Nele constavam bilhetes pedindo a entrega dos mimos “para as crianças pobres do Brasil”.

No ano seguinte, em agosto de 2010, a história se repetiu: agentes alfandegários do Porto do Rio Grande interceptaram um contêiner oriundo da Alemanha, teoricamente com uma carga de restos de plásticos industriais. Na verdade, ele trazia ao país 22 toneladas de descartes domésticos, como fraldas usadas e ração para cachorros já em decomposição.

O tráfico de lixo é uma realidade crescente no cenário internacional (ver texto abaixo) e movimenta anualmente, segundo o governo americano, entre US$ 10 bilhões e US$ 12 bilhões, valor superior ao Produto Interno Bruto (PIB) de mais de 60 países. O governo dos Países Baixos estima que, a cada ano, cerca de 1,5 milhão de contêineres de resíduos sejam transportados ilegalmente no mundo – incluindo entre 1% e 2% de todos aqueles que saem dos portos internacionais da Europa. Se alinhados, eles cobririam uma distância enorme, equivalente à de Hamburgo, no norte da Alemanha, até a Cidade do Cabo, no extremo sul da África.

E o Brasil, com uma das maiores linhas costeiras do planeta, certamente tem motivos para se preocupar. Na avaliação de servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), por trás dos episódios recentes parece haver a intenção de testar a segurança dos portos nacionais. “Os europeus mandam muito lixo para a África e estavam tentando abrir esse mercado aqui no Brasil”, diz Fernando Marques, diretor de Qualidade Ambiental do instituto.

Aperto na fiscalização

Ainda em 2009, no furor da descoberta dos resíduos ingleses, o governo federal anunciou o estudo de medidas para inibir ingressos futuros de lixo estrangeiro. Como resultado, identificaram-se alguns códigos de classificação de cargas mais suscetíveis a encobrir seu trânsito – notadamente os de materiais para reciclagem, de uso internacional. Tais parâmetros foram integrados à central nacional de inteligência que cruza dados de origem, tipo de produto e outras características dos contêineres que chegam ao Brasil para selecionar aqueles que passarão por conferência – via de regra, a fiscalização aduaneira é feita por amostragem.

Marco Antônio Medeiros, inspetor-chefe da Alfândega no Porto do Rio Grande, conta que o flagrante de resíduos provenientes da Alemanha, em 2010, foi resultado direto desses avanços. “Quando aqui chega alguma mercadoria com código suspeito, todos os contêineres são inspecionados”, diz ele. Em junho de 2011, a aduana conseguiu inclusive identificar outra situação preocupante, quando uma carga com lodo de esgoto, vinda da Bélgica e originalmente destinada à Argentina, aportou ilegalmente em Santos.

De acordo com as autoridades ouvidas por Problemas Brasileiros, não há registros de outros episódios de chegada de lixo ilegal ao país. No entanto, é importante lembrar que aqui entram armas, entorpecentes e outros produtos contrabandeados – no último relatório mundial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre drogas, o Brasil figura como a terceira principal rota da cocaína que chega à Europa, fato que ajuda a dimensionar a vulnerabilidade das fronteiras nacionais. Nesse contexto, a notória escassez de fiscais aduaneiros é uma realidade preocupante. “As demandas no Porto do Rio Grande têm crescido de forma fantástica, e não conseguimos nos adequar tão rapidamente como a iniciativa privada, que contrata com mais agilidade”, exemplifica Medeiros.

Desde 1992, o trânsito internacional de resíduos domésticos ou considerados perigosos é regulado pela Convenção de Basileia, que reúne 176 países – entre eles o Brasil – e proíbe tais exportações sem o consentimento do Estado receptor. Além disso, em caso de tráfico ilegal, há a determinação de que o país de origem assegure o retorno da carga – o que de fato ocorreu nos episódios recentes envolvendo Inglaterra, Alemanha e Bélgica.

A convenção abrange inclusive resíduos de uso industrial, como, por exemplo, subprodutos metalúrgicos que contenham metais pesados cancerígenos. Até o início da década passada, importações de produtos em que houvesse substâncias como chumbo e cádmio – usadas na fabricação de fertilizantes – eram comuns no Brasil (ver a reportagem “Perigo Invisível”, PB nº 371). No entanto, segundo Luiz Antonio Palacio Filho, procurador da República em Santos, isso foi praticamente extinto a partir de 2004, quando a Receita Federal estendeu a todos os portos medidas para coibir a entrada desses itens.

Quase uma década depois, causa surpresa o fato de ainda permanecerem no Porto de Santos mais de 20 contêineres com cargas de metais pesados, apreendidos até 2003. A devolução do material, vindo de países como Espanha e Estados Unidos, foi requerida por meio do secretariado da Convenção de Basileia, mas ainda não há decisão a respeito. Cético quanto ao resultado da arbitragem internacional, Palacio Filho ajuizou este ano uma ação para que um dos importadores arcasse com a destinação final de parte do material – provavelmente em um aterro sanitário do país. “Lamentavelmente o Brasil vai acabar tendo de assumir esse passivo”, explica ele.

Em terras brasileiras e em outras regiões do mundo, assumir o passivo alheio não é uma preocupação relacionada apenas aos resíduos. Também a importação de bens de segunda mão é muitas vezes vista com maus olhos, já que por trás da legítima prática comercial da venda desses produtos estaria, na verdade, uma conveniente forma de os países ricos se livrarem de produtos já no fim da vida útil – e, não raro, com complexa e onerosa destinação final.

No Brasil, a importação de pneus remoldados e recauchutados é o maior exemplo dessa polêmica. Sua proibição, imposta por resoluções federais e ratificada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009, chegou a ser questionada pela União Europeia, sem sucesso, nos tribunais da Organização Mundial do Comércio (OMC). Corroborando a defesa brasileira no caso, dados divulgados pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) mostram inclusive que, em meados da década passada, de cada dez pneus que chegavam ao país, três eram completamente inutilizáveis.

À margem da lei, contudo, os pneus de segunda mão não deixaram de entrar no Brasil. Em março de 2010, durante a “Operação Carcaça”, a Polícia Federal apreendeu mais de 7 mil pneus usados em Foz do Iguaçu (PR), contrabandeados do Paraguai.

Lição de casa

Somente em 2010, o Brasil importou, segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), ao menos 300 mil toneladas de bens classificados como resíduos ou material para reciclagem. É um montante superior ao total dos resíduos sólidos coletados por dia no país – 195 mil toneladas, de acordo com o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2010, publicado pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Entre os itens trazidos do exterior há desde aparas de plástico e papelão a restos metalúrgicos e de madeira, passando por subprodutos da indústria alimentícia usados na nutrição de animais.

Mesmo em casos que não podem ser configurados como tráfico de lixo, importações de má qualidade também trazem passivos ambientais. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a Alfândega já devolveu ao local de origem plásticos para reciclagem que chegaram ao país sujos, em meio a fezes de animais. O Ibama, por sua vez, mantém registro de aparas de papel que desembarcaram imprestáveis após apodrecerem na viagem.

Os riscos inerentes à importação de recicláveis desnudam o atraso e as contradições na gestão nacional de resíduos sólidos. Em 2008, de acordo com os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 18% dos municípios brasileiros contavam com coleta seletiva – e, na imensa maioria deles, o serviço atende apenas uma parcela reduzida da população. Enquanto uma enorme quantidade de embalagens, sucata e diversos outros itens reaproveitáveis apodrece em aterros e lixões, alguns segmentos recicladores valem-se das importações para viabilizar suas atividades.

A falta de matéria-prima ajuda a explicar a ociosidade da indústria brasileira recicladora de plásticos – superior a 30%, segundo o Plastivida Instituto Socioambiental dos Plásticos. Nesse contexto, o ramo de embalagens PET é um dos mais afetados. De acordo com um censo da Associação Brasileira da Indústria do PET (Abipet), 44% das empresas do setor declararam, em 2009, enfrentar dificuldades para adquirir o insumo.

Hermes Contesini, porta-voz da entidade, espera que a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), sancionada em agosto de 2010, impulsione a superação dos gargalos nacionais. As metas são de fato ambiciosas: até 2014, ficam proibidos os lixões, todos os rejeitos deverão ir para aterros sanitários apropriados e os itens recicláveis ou reutilizáveis, por sua vez, precisarão ser reaproveitados. “Agora, como isso vai reverberar nos municípios, que são os responsáveis pela coleta seletiva, já é mais difícil de prever”, pondera Contesini. A política admite o repasse de recursos da União para o manejo de resíduos somente às prefeituras formalmente comprometidas com a adequação à norma.

As novas regras para o setor também inovam ao introduzir, na lei federal, o conceito de logística reversa – após o uso pelo consumidor, determinados ramos de atividade serão responsáveis pela coleta e destinação adequada de seus produtos. Terão de implementar sistemas do gênero fabricantes e comerciantes de agrotóxicos, pilhas, pneus, óleos lubrificantes, alguns tipos de lâmpadas e eletroeletrônicos.

Para eles, os passivos associados às importações ilegais também são motivo de preocupação. Temerosos de arcar com o ônus dos itens contrabandeados, representantes da iniciativa privada querem que a implantação da logística reversa no Brasil, ainda em debate, deixe clara a responsabilidade do poder público no gerenciamento de tais resíduos.

Briga de vizinhos

Em terras brasileiras, rusgas provocadas pelo lixo dos outros não são um problema apenas transnacional. Nos quatro cantos do país, diversas cidades encaminham seus resíduos sólidos a aterros e lixões de outros municípios. Além de gerar descontentamento popular, a prática, cada vez mais frequente, reflete decisões improvisadas e o “apagão” de planejamento na área de limpeza pública que se verifica em algumas localidades.

Em 2010, segundo a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), ao menos 172 dos 645 municípios paulistas encaminhavam seus resíduos domiciliares para fora de suas fronteiras – aproximadamente o triplo do verificado em 2003. E apesar de o transporte ser um dos principais custos da coleta, há situações em que os caminhões percorrem mais de 100 quilômetros entre a origem e o destino da disposição final.

Entre os “exportadores” de lixo está a própria capital paulista. Com o fim da vida útil do Aterro Bandeirantes, na zona norte do município, em 2007, parte dos resíduos da cidade é hoje levada para Caieiras (SP), na região metropolitana. Lá os habitantes de bairros próximos ao aterro queixam-se do odor forte trazido pelos rejeitos – e da consequente desvalorização dos imóveis. “O cheiro dá até dor de cabeça, e chego a me trancar em casa para amenizá-lo um pouco”, conta Aparecida de Oliveira, moradora do bairro Jardim Marcelino.

O trânsito de resíduos entre municípios também traz dor de cabeça a prefeitos. Processado pelo Ministério Público por descumprir uma decisão judicial que determinava o fechamento do lixão a céu aberto em sua cidade, o gestor de Paiçandu (PR), Vladimir da Silva (PMDB), passou a enviar, em março de 2011, os resíduos sólidos locais para um aterro privado na vizinha Sarandi (PR). Tal prática gerou queixas públicas do prefeito sarandiense, Carlos de Paula (PDT), que afirmou não ter sido consultado sobre o acerto.

Em vez do costumeiro empurra-empurra, quando o assunto é lixo, a cooperação entre vizinhos pode viabilizar soluções, tendo em vista os altos custos que aterragem e coleta seletiva representam para os apertados orçamentos das prefeituras. Já presentes em algumas regiões do país, sistemas intermunicipais para bancar a gestão dos resíduos permitem, com o aumento da escala, instalar aterros maiores – adequados a tecnologias de menor custo –, reduzir os custos operacionais e otimizar os não raro parcos recursos humanos locais. “Muitos municípios de pequeno porte têm apenas um engenheiro, em meio período, para atender a todas as suas demandas”, pondera Rosí da Silveira, coordenadora do Núcleo de Gestão Pública da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc).

Ela lembra, no entanto, que consulta, participação e respeito à vontade popular são fundamentais em tais arranjos, inclusive quanto à destinação dos resíduos. Nesse contexto, um exemplo bem-sucedido, cita Rosí, é o Consórcio Intermunicipal do Médio Vale do Itajaí, que dispõe seus resíduos em Timbó (SC). “Além de manter o aterro cercado por vegetação nativa, criando um barramento natural, juntamente com sua instalação foram feitas melhorias de infraestrutura para a população do entorno”, explica ela.

Restos indesejáveis

Apesar de abrigar apenas 15% da população mundial, as nações desenvolvidas geram metade dos resíduos sólidos urbanos do planeta, além da maior parte do lixo industrial. São países onde vigoram as mais severas normas quanto à gestão daquilo que é descartado pela sociedade. Na Europa, por exemplo, há anos existem leis que obrigam fabricantes a recolher até mesmo veículos no fim da vida útil, bem como a aumentar o uso de matérias-primas recicladas em novos produtos.

Os altos custos associados às medidas ambientais, no entanto, aumentam a atração econômica exercida pela exportação de resíduos – uma prática que se vale de artimanhas diversas para obter um verniz de legalidade. É o que ocorre, por exemplo, com o chamado “lixo eletrônico” – computadores, telefones celulares etc. –, que chega a países como Gana, Nigéria, Índia e China travestido de equipamento de segunda mão, material para reciclagem ou mesmo de doação humanitária. Grande parte vai direto para lixões a céu aberto, onde, não raro, crianças recolhem sucata, sujeitas à contaminação por metais pesados. O “e-lixo” está inclusive ligado a novos tipos de crimes cibernéticos, como a recuperação de senhas bancárias, fotos comprometedoras ou outros dados sigilosos em discos rígidos descartados.

Além de ataques à privacidade, os rejeitos alheios podem gerar crises de saúde pública. Foi o que ocorreu em 2006, quando 500 toneladas de resíduos químicos, pertencentes à multinacional petrolífera holandesa Trafigura, chegaram ao porto de Abidjan, na Costa do Marfim. Subcontratados locais despejaram a carga em diversas áreas da cidade – terrenos baldios, beira de estradas etc. Segundo estimativas divulgadas pela ONU, 15 pessoas morreram, 69 foram hospitalizadas e mais de 100 mil, acometidas de náusea e vômito, procuraram atendimento após inalar gases tóxicos provenientes do material.

Na Itália, os lucros associados ao “sumiço” de restos indesejáveis atraíram até mesmo a Máfia para o negócio. Ela é investigada por desovar lixo nuclear do país na Somália e por afundar, no mar Mediterrâneo, um navio que continha rejeitos radiativos. Empresas de limpeza pública supostamente ligadas a mafiosos também são acusadas de despejar resíduos clandestinamente, por exemplo, em áreas rurais das regiões mais pobres do país. Suspeita-se que a prática tenha sido responsável pelos altos níveis de toxinas identificados em 2008 na mozarela de búfala da região de Nápoles, fato que gerou o embargo de outros países ao produto.

Revista Problemas Brasileiros

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Quais são os objetos mais jogados no esgoto?



Nada de xixi e cocô. Estamos falando de bonecas, cápsulas de droga, cuecas, chinelos e otras cositas más

Faltam latas de lixo nas residências brasileiras? Pelo menos é o que parece, olhando para o levantamento inédito da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (a Sabesp), que recolheu e examinou os restos encontrados nos esgotos.

Como os sistemas de coleta de água são separados - o que vem da rua e o que vem das residências não se misturam -, é possível determinar quais são os detritos jogados nas privadas e nas pias das casas.

É tanto lixo que entre janeiro de 2007 e janeiro de 2011, o sistema sofreu em média 3 paralisações por mês.


Fonte: Pesquisa feita na Estação de Tratamento do ABC, que cuida do ABC paulista, e de Higienópolis e Sacomã, em São Paulo, durante o período de um mês.
http://planetasustentavel.abril.com.br

Reserva de carbono


A Amazônia emite milhões de toneladas de CO2 por ano. Mas absorve boa parte disso. O problema é que esse ciclo pode chegar ao fim

São 7 da manhã no centro de Manaus, no coração da Floresta Amazônica, mas o cenário é típico de uma metrópole. Ruas e avenidas estão coalhadas de carros, ônibus e caminhões, a maioria queimando combustíveis fósseis, como gasolina e óleo diesel. E, com isso, liberando na atmosfera dióxido de carbono, o mais conhecido dos gases de efeito estufa. Estamos a caminho da Estação Experimental de Silvicultura Tropical, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), distante 90 quilômetros da capital do Amazonas. Reduzir as causas e os efeitos do aquecimento global tem sido um dos maiores desafios da comunidade científica internacional. Não é diferente na Floresta Amazônica, em que o desmatamento é o grande vilão no que diz respeito à emissão de gases nocivos - a fumaça proveniente das queimadas libera o carbono armazenado na madeira. No ciclo natural do planeta, metade do carbono enviado à atmosfera é absorvida pelos oceanos, pela vegetação e pelo solo. A outra parcela estaciona no ambiente. É aí que mora o perigo, pois a influência do homem tem feito a concentração de CO2 aumentar de forma alarmante.



O acúmulo de CO2 na atmosfera começou a intensificar-se a partir da Revolução Industrial, no fim do século 18, época em que o homem passou a utilizar combustíveis fósseis - carvão mineral, gás natural, petróleo - para movimentar as fábricas. Com o tempo, o uso desse tipo de energia massificou-se. Durante toda a história, até os anos que antecederam as mudanças tecnológicas advindas das transformações industriais, o ar nunca teve mais que 275 partes por milhão (ppm) de dióxido de carbono. Em setembro deste ano, a taxa já havia saltado para 390 ppm - acima de 350 ppm, que é um limite seguro defendido por boa parcela da comunidade científica. O problema é que, quanto mais CO2 na atmosfera, maior é a possibilidade de aumento na temperatura média do planeta nas próximas décadas.

Os dados do último inventário brasileiro, divulgado no fim de 2010, dão conta de que o país é responsável pela emissão de 1,6 bilhão de toneladas de CO2 ao ano, o que nos coloca entre os maiores emissores globais. Ao contrário do que acontece nos dois maiores emissores, China e Estados Unidos (em que a queima de combustíveis fósseis é o grande vilão), nossas pedras no sapato são o desmatamento e as queimadas, que dão origem a 75% das emissões de dióxido de carbono, que ocorrem sobretudo na Amazônia. Se o Brasil controlasse ou zerasse o desflorestamento, já estaria dando enorme contribuição no esforço para reduzir a concentração de CO2.

Por outro lado, o país também abriga um gigantesco sorvedouro de carbono: a própria Floresta Amazônica, pois a vegetação precisa de gás carbônico para se alimentar e crescer. Além disso, há muito carbono estocado no solo, nos rios e nos igarapés do norte do país. Mas quanto cada árvore acumula de carbono? Qual é de verdade o estoque total da floresta? Com a expansão da pecuária, o que aconteceu com o carbono que estava no solo quando bois tomam o lugar das árvores? Encontrar respostas a essas e outras perguntas é um dos desafios dos pesquisadores que trabalham na região.

Vencemos o trânsito cidade. Estamos agora na BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, a capital de Roraima.

A exuberância da floresta se impõe pela janela do carro. É fim de julho. O dia está claro e, como de costume, muito quente. A luminosidade me faz recordar da conversa que tive com o agrônomo Jean Ometto, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ocorrida algumas semanas antes de meu desembarque no Amazonas. "A radiação solar é fundamental para que a vegetação realize a fotossíntese, um dos mecanismos mais maravilhosos da natureza. Por um processo bioquímico, cada folhinha, cada planta, cada árvore retira o carbono - um elemento essencial à vida - e transforma esse material inorgânico em orgânico. É assim que a planta produz glicose, seu alimento. É o primeiro passo de uma série de transformações metabólicas e produção de outros compostos. Assim a floresta cresce. Dessa forma ocorre a transferência do carbono da atmosfera para a biosfera." Esse mecanismo natural explica por que a Amazônia, cuja vegetação ocupa uma área de 6,2 milhões de quilômetros quadrados, é um grande sorvedouro de carbono.

Material vasto, portanto, para os pesquisadores da estação experimental do Inpa, entre eles Niro Higuchi, premiado engenheiro florestal que participou da elaboração do relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Apesar de estar no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) desde 1980, Higuchi ainda carrega no sotaque de sua cidade natal, Chavantes, no interior de São Paulo. É um cientista apaixonado pela floresta, capaz de interromper uma explicação para demonstrar sua admiração por um frondoso angelim-pedra plantado na estação ou fechar os olhos na tentativa de identificar qual espécie de pássaro está cantando.

Para Higuchi, é preciso repassar essa mesma devoção para as novas gerações de pesquisadores. Por isso, há oito anos ele coordena um curso de manejo florestal, que leva estudantes de graduação para uma temporada na estação. "Neste ano, recebemos 36 alunos de engenharia florestal de 14 estados e 19 instituições de ensino superior."

No mato, os jovens aprendem a calcular a quantidade de carbono de uma árvore - 95% da madeira é composta de derivados de carbono, tais como lignina, celulose e hemicelulose. Para isso, é preciso derrubar uma árvore, serrar seu tronco em várias partes e cortar os galhos. Depois é necessário extrair toda a água desse material para, então, pesar a biomassa. "Esses estudos nos levaram a concluir que uma árvore acumula, em carbono, uma média de 48,5% de seu peso", explica Higuchi. Para atingir essa precisão, o pesquisador e sua equipe derrubaram nos últimos anos 1 728 árvores (a mais leve com 5 quilos e a mais pesada com 30 toneladas) na estação experimental de Manaus e em outras localidades, como São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, e Tomé-Açu, no Pará.

Minucioso, Higuchi desenvolveu também uma equação matemática para descobrir - sem precisar cortar - quanto cada árvore tem de carbono. "Basta saber seu diâmetro na altura do peito de um homem adulto para se chegar ao resultado", diz. Simples assim. Esse parâmetro é essencial para estimar o total de carbono na floresta. Os estudos indicam que cada hectare amazônico contém cerca de 600 árvores com mais de 10 centímetros de diâmetro - apenas espécimes com essa espessura são contabilizados.

Diante disso, a Amazônia estoca hoje em torno de 50 bilhões de toneladas de carbono em sua vegetação. "Chegamos a esse valor ao extrapolar os dados coletados em 280 mil árvores do do Amazonas", conta. A reserva, porém, pode ser ainda maior. "Daqui a cinco anos, usaremos essa mesma metodologia em outras regiões. Aí sim teremos uma visão mais clara do que acontece".

A metodologia desenvolvida por Higuchi é valiosa. Se uma árvore de 100 quilos de carbono for queimada, ela acrescentará 367 quilos de CO2 na atmosfera. Baseado nos índices médios de desmatamento nos últimos 25 anos, o cientista acredita que a Amazônia emita por volta de 230 milhões de toneladas de gás carbônico ao ano. Mas quanto ela absorve? "Saber o número preciso é difícil. Acredito que aqui a vegetação fixe 1 tonelada de carbono por hectare ao ano. É uma média, claro. Como estimo haver cerca de 300 milhões de hectares de vegetação, creio que a Amazônia capte uma quantidade aproximada de 300 milhões de toneladas. Até que a floresta não é assim tão vilã nessa história, não é? O balanço é mais ou menos equilibrado. O que é emitido pelo desmatamento é neutralizado por meio do sequestro natural. Mas ninguém pode garantir que esse comportamento vai continuar nos próximos anos." Até porque, se o desmatamento prosseguir, a emissão aumentará, reduzindo, portanto, a absorção.

"É por isso", prossegue Higuchi, "que o Brasil comete um grave erro ao permitir que áreas de floresta sejam usadas pelo agronegócio." Segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), cerca de 15% do verde da Amazônia Legal foi dizimado entre 1994 e 2009, principalmente pelas queimadas que abrem espaço para pastos. "A Amazônia Legal, que corresponde a quase 60% do território brasileiro, contribui com 8% do produto interno bruto nacional. Mas ela polui três vezes mais que o resto do país. É muita poluição para pouca contribuição econômica. Em primeiro lugar, deveríamos zerar o desmatamento e depois investir em tecnologia, ou seja, tratar e fertilizar o solo em áreas já devastadas. Mas, em geral, o agricultor derruba uma floresta primária porque é mais barato."

Higuchi acredita também ser preciso descobrir quanto a Amazônia troca de carbono com a atmosfera. Ou seja, quanto ela captura, armazena e expele. Para explicar isso, ele faz uma analogia: "Um ser humano adulto, com peso médio de 80 quilos, consome cerca de 3 quilos de alimentos sólidos e líquidos por dia. Mas não acumula tudo o que come. Parte do alimento vira energia e parte é eliminada. Com as árvores é a mesma coisa. Para fazer esse estudo, deveríamos isolar algumas e monitorar sua fotossíntese e sua respiração. Ainda não fazemos isso. Espero que algum dia um de meus alunos comece essa pesquisa".

Volto a Manaus ao cair da tarde. Ainda na estrada, vejo pela janela do carro um dossel florestal com 30 metros de altura e começo a imaginar quanto cada uma daquelas árvores absorveu de carbono naquele dia. E como será em um futuro próximo se não desistirmos de queimar mais e mais combustíveis fósseis para mover veículos de passeio, ônibus, caminhões e gerar energia?

Algumas respostas podem ser encontradas no Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), que conta com uma rede de 11 torres distribuídas por vários pontos da selva.

Elas têm 50 metros de altura e abrigam diversos instrumentos, localizados entre 20 e 30 metros acima da copa das árvores, que aferem os fluxos entre a superfície e a atmosfera. Para levantar os dados, a equipe de pesquisadores se vale de um método de nome complicado: covariância de vórtices turbulentos.

São instrumentos do tipo anemômetros ultrassônicos tridimensionais que analisam todas as informações contidas nesses vórtices (fluxos de ar). "Esses aparelhos fazem medidas em alta frequência, cerca de dez vezes por segundo. Com isso, consegue-se aferir os fluxos ascendentes e descendentes. E, ao mesmo tempo, quantificar quantas moléculas de CO2 passam pelos sensores", explica o físico Antonio Ocimar Manzi, coordenador do LBA. "Durante o dia, com a fotossíntese, a copa das árvores funciona como grande esponja de gás carbônico. Sabemos disso porque, conforme as folhas o absorvem, a concentração do gás se reduz."

Manzi explica que as medidas realizadas de dia são mais confiáveis do que as feitas à noite. Mesmo assim, é possível saber que as árvores amazônicas aceleram a produção de CO2 depois que o sol se põe, transportado para a superfície no dia seguinte. "Isso acontece porque só com a luz solar ocorre o aquecimento das massas de ar próximas à superfície terrestre."

E tem mais. Como os instrumentos funcionam de forma contínua - todos os dias do ano, o tempo todo -, a coleta de dados permite aos pesquisadores saber o que acontece a cada momento e como isso se altera segundo variações diárias, alternância das estações do ano, condições climáticas. "Em 2005, quando a Amazônia passou por uma grande seca, a concentração de CO2 na atmosfera elevou-se muito, com índices superiores aos que a floresta pode sequestrar", diz Manzi. Na ocasião, a floresta deixou de absorver carbono e passou a ser uma fonte emissora ainda maior. Alguns estudos apontam que, há seis anos, as emissões foram de 1,6 bilhão de toneladas. O mesmo aconteceu na seca de 2010, quando a biomassa morta chegou a 2,2 bilhões de toneladas.

Em poucos anos, outras respostas poderão ser encontradas em uma estrutura gigantesca a ser construída no coração da floresta, resultado de um projeto ambicioso de cooperação científica reunindo várias instituições de pesquisa do Brasil e da Alemanha. O projeto, batizado de Observatório Amazônico da Torre Alta, é uma parceria entre o Instituto Max Planck de Química, em Berlim, e o Inpa, em associação com a Universidade do Estado do Amazonas. A ideia é instalar uma torre de 320 metros de altura (semelhante à Eiffel, em Paris) na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Atumã, 150 quilômetros a nordeste de Manaus e 50 quilômetros a sudeste da barragem de Balbina. "Ela deve ficar pronta no fim de 2012, e será um superlaboratório referência para as florestas úmidas. A torre terá instrumentos e sensores do solo até o alto, o que permitirá medidas de altíssima precisão em várias camadas da atmosfera", revela Manzi. A 100 metros de distância e ao redor desse cimo principal, haverá ainda outras quatro torres menores, com 80 metros de altura.

"Elas vão possibilitar a observação em tempo real. Iremos saber como as mudanças climáticas alteram os fluxos naturais e as interações entre a superfície e a atmosfera."

E ainda tem o solo. Pouca gente no mundo reflete sobre o carbono ali aprisionado. Não é o caso do engenheiro florestal Carlos Alberto Quesada, também do Inpa. Beto Quesada, como é mais conhecido, conta que "estudos indicam que o primeiro metro de solo da Amazônia inteira tem em volta de 67 bilhões de toneladas de carbono. Acho esse número é baixo. Nas minhas contas, deve chegar a 73 bilhões".

O solo amazônico é como esponja: absorve tudo o que cai nele. "Quando essa matéria orgânica morre, entra no solo, no qual sofre decomposição. Durante o processo, parte do carbono que havia é liberada como CO2, resultado da respiração dos micro-organismos. Mas o que sobrou penetra no solo e ali fica armazenado", explica Quesada. Ninguém ainda sabe quanto é liberado de carbono por ano e quanto o solo absorve. Monitorar essas mudanças é complicado e pouca gente investiu nisso. "Um de meus trabalhos consiste em desenvolver linhas de base em florestas nativas que servirão de parâmetro para comparações em 20 ou 30 anos."

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Quesada alerta que os solos amazônicos, embora não sejam homogêneos (no oeste são mais férteis que no leste), são frágeis. Uma vez que se retira a vegetação de cima, sua capacidade produtiva é mínima. "Os solos mais pobres dependem da reciclagem da matéria orgânica. Quando se remove a floresta, a fonte de nutrientes vai embora. As raízes desaparecem. A fauna e os micro-organismos também deixam de existir, e o estoque de carbono que havia sob e sobre o solo se reduz. É por isso que a mudança no uso da terra torna-se tão drástica para as reservas do elemento."

Um dos efeitos da crescente concentração de CO2 na atmosfera da Amazônia já foi captado pelos cientistas. Segundo dados do projeto Rainfor, que une vários pesquisadores do Brasil e de outros países, nos últimos 20 ou 30 anos a floresta ganhou biomassa. Ou seja, não apenas as árvores "engordaram" mais do que o previsto como também novos indivíduos apareceram. "Recruta" é o nome dado às árvores que, entre um censo e outro, atingiram 10 centímetros de diâmetro e, com isso, entraram na contagem. O fenômeno - chamado pelos pesquisadores de "efeito de fertilização atmosférica de CO2"- demonstra que a vegetação tem se beneficiado da fartura de carbono disponível, realizando fotossíntese mais eficiente. Por outro lado, a mortalidade nas mesmas áreas também cresceu.

Com o aumento da biomassa, cedo ou tarde esse material morrerá, irá se decompor, aumentando ainda mais os estoques de carbono. "Isso significa que nos próximos vinte ou trinta anos os solos receberão um gigantesco fluxo extra, o que não ocorreu nas décadas passadas", afirma Quesada. "Mas é preciso prestar muita atenção", completa o pesquisador. "Hoje, a floresta é um sistema que funciona como um dreno de carbono; porém, trata-se de um sistema delicado, complexo e não definitivo. Pode mudar a qualquer momento."
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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O passivo do fumante começa na roça

Antes de chegar aos pulmões do consumidor, cigarro já traz histórico de males como trabalho exaustivo, intoxicação por agrotóxicos, exploração e mão de obra infantil

Por: João Peres. Fotos de Gerardo Lazzari




Evaldo e a doença da folha verde: moleza nas pernas, ânsia, mal-estar e insônia



Começa agora um longo ano para Evaldo Gross. Ou vai ver nem terminou, e não termina nunca. Para esse agricultor de 47 anos, morador de Palmeira, a 80 quilômetros de Curitiba, produzir fumo significa emendar semeadura, plantio, lavoura, colheita, secagem e venda, tudo num só, ano após ano. “A gente vai trabalhandinho, trabalhandinho desde piá”, conta. Enquanto o leitor passa os olhos por aqui, as famílias de 185 mil brasileiros como Evaldo dão início a mais uma safra de fumo. A esta altura, as sementes aguardam em bandejas a hora de ser transferidas para a terra. Até o começo do próximo ano, Evaldo vai se virandinho com o dinheirinho que recebeu nos últimos meses. Só voltará a ver novas notas quando começar a venda de sua produção, não antes de março.

O Brasil produz 700 toneladas de fumo ao ano, mais de 80% para exportação, e o setor fatura em torno de R$ 15 bilhões. Evaldo e os demais produtores ficam com a menor fatia. Graças a campanhas de esclarecimento, o fumante contemporâneo tem consciência do mal que provoca à própria saúde e à de quem o rodeia. Mas ignora que a cadeia produtiva responsável pelo tabaco esteja repleta de violações. Fumandinho, fumandinho, contribui para trabalho degradante, remuneração injusta, intoxicação por agrotóxico e até mesmo uso de mão de obra infantil.

Nove em cada dez fumicultores brasileiros plantam em terras próprias. A produção se concentra no Sul, no geral em propriedades com no máximo 20 hectares. A produtividade e a área cultivada aumentaram notavelmente desde 1980 por conta de desenvolvimento tecnológico e de uma ofensiva das empresas. O contato das fumageiras na ponta da linha é o profissional conhecido como instrutor ou coordenador. “Ele disse que estava dando dinheiro”, resume Hamilton Paizani, agricultor de São João do Triunfo, vizinha a Palmeira. Hamilton ingressou na fumicultura na década de 1990. Acreditava em trabalhar menos e ganhar mais. Poucos anos depois, saiu com uma doença na frente e uma dívida atrás. Sua propriedade ficou penhorada. “Só arrumei problema.”

A relação de dependência tem início quando o produtor assina com a empresa o contrato de compra e venda. Ele “aceita”, com isso, plantar apenas as sementes que lhe forem fornecidas, comprando um kit tecnológico com agrotóxicos receitados pela contratante, a fumageira. A comercialização também é exclusividade da corporação, e ela mesma estabelece quanto vai pagar ao fim de um ano de trabalho.

Há dois pilares na vida de um caboclo: administrar o tempo e manejar a terra. Ao firmar esse acordo, ele perde os dois. Na avaliação do Ministério Público do Trabalho (MPT), o contrato não estabelece uma relação entre vendedor e comprador, mas entre patrão e empregado. “O produtor assina uma procuração para que a empresa faça o financiamento em nome dele. O pagamento é com o produto. São financiamentos de 10, 15, 20 anos, então durante todo esse tempo o produtor fica dependente da empresa”, lamenta Amadeu Bonatto, coordenador técnico do Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais (Deser). Ao pesquisar essa cadeia produtiva, a entidade constatou, entre 1.089 famílias, que 73% gostariam de mudar de atividade por causa do trabalho excessivo, da baixa rentabilidade e dos riscos à saúde.


Fumo puxado
A carga mais pesada são a colheita e a secagem, quase simultâneas, em pleno verão. Muitos se queixam de que as roupas de proteção queimam a pele. Mas, sem elas, ficariam expostos à doença da folha verde do tabaco. “Quando chega a tarde, começa a dar moleza nas pernas, dá ânsia. Um mal-estar tremendo. Te trava o sono, atravessa a noite inteira sem dormir”, conta Evaldo, dentro de um paiol em que o odor das folhas de tabaco invade as narinas e azeda a boca. A nicotina liberada pela folha provoca febre, desmaios, calafrios. Ao término de um dia de trabalho, o produtor fica exposto a 54 miligramas de nicotina, equivalentes a 36 cigarros. A secagem da folha é a pior das agruras. A cada hora da noite, ele levanta e repõe a lenha para manter a temperatura. Repete a operação de oito a dez vezes, entre janeiro e março. A folha vai amarelandinho, e a energia do produtor se esvai.

Recuperar-se é preciso. Passa o cansaço, começa a tensão. Um ano inteiro de saúde e suor se define em 60 segundos. O produtor consome algumas semanas embalando sua produção em fardos de 60 quilos, que rolam um após outro por uma esteira na sede da empresa. De cada fardo é retirada uma manoca, também chamada de “boneca”. A partir dessa amostra o classificador define quanto pagará ao fumicultor. Quem não se der por satisfeito que se queixe com o bispo.

“Rebaixaram a classificação. Menos de R$ 1 por quilo. Aí reclamei, não pedi nada além do que valia. Começaram a falar para todo mundo que quem reclamava sofria da ‘doença do Anderson’”, conta o “vírus” Anderson Sviech, que também responde pela profissão de fumicultor. “Dessa vez, se não pagarem o justo pelo meu produto, não vendo.” Ele sabe que não é simples assim. A hora da classificação é tensa, vale por um ano inteiro, e reclamar não adianta, já que há poucas corporações envolvidas nessa cadeia e o preço é muito parecido. “As empresas atuam em cartel. Muda só o nome, mas a relação é a mesma, não concorrem”, acusa Margaret Ramos de Carvalho, procuradora do Trabalho no Paraná.

Quem planta milho coloca o excedente na própria despensa ou alimenta a criação. Feijão, arroz, tomate, idem. Fumo, não. Se cozinhar, não vira sopa. Se moer, não vira ração.

A Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), vista como uma entidade próxima às fumageiras, não vê o problema como generalizado. O problema são as regras. Em 2007, o Ministério da Agricultura editou portaria para tentar disciplinar a questão. As folhas são avaliadas por classe, subclasse, grupo, subgrupo, tipo, subtipo, mistura, resíduos e umidade. São 41 classes. Mas como as interpretações podem ser subjetivas prevalece a do mais forte.

Em um ano como este, em que há oferta acima da demanda, é fácil pagar pouco. O preço médio do fumo está em R$ 4,96 o quilo, ante R$ 6,25 em 2010 e R$ 32 na década de 1980. A entidade aponta o dólar valorizado, o aumento da produção na África e a alta produtividade como fatores que explicam a queda na remuneração. “Temos um prejuízo na safra deste ano, mas isso não quebra o produtor porque ele é seu empregador”, avalia Benício Albano Werner, presidente da Afubra.

O MPT tem visão bem diferente, e indica que as fumageiras estão, na prática, utilizando mão de obra e terra alheias para aumentar os próprios lucros. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Palmeira pôs na ponta do lápis essa relação. Mesmo que se parta do pressuposto da indústria, de que o fumicultor tem uma renda de R$ 36 mil ao ano, a conta não fecha. O jovem produtor Anderson foi somandinho os gastos com semeadura, os investimentos em cada equipamento e a durabilidade deles, a manutenção da propriedade, a alimentação dos animais usados para tração, a energia elétrica e o custo de vida. Considerando a produtividade ideal e a classificação justa do produto, o sindicato concluiu que o ganho é de R$ 1,77 por dia trabalhado. Ou seja, a sensação de que se tem renda pode ser falsa.

A maior parte das famílias é pequena, com média de quatro pessoas. A mulher normalmente cuida das tarefas da casa, não podendo se dedicar integralmente ao trabalho na roça. “Não é que o fumicultor queira empregar seu filho nessa atividade, é que as exigências da empresa e a baixa rentabilidade não permitem contratar um trabalhador”, assinala Margaret. O MPT calculava haver 75 mil crianças, em 2007, na cadeia do fumo do Paraná e de Santa Catarina. Ações coordenadas entre as empresas e os governos podem ter levado à redução do número, mas o problema ainda existe.



Sem saída
Lídia Maria Bandacheski do Prado, de Rio Azul, a 190 quilômetros de Curitiba, perdeu o pai aos 9 anos. Para não sobrecarregar a mãe, assumiu a lida. Faz uma década que começou a sentir problemas, e durante muito tempo os médicos procuraram por uma depressão que não existia. Em 2007, sem tratamento adequado, o quadro piorou. “Fiquei quase dois anos sem dormir. Com dor nos braços, nas pernas. Era um fantasma dentro de casa”, conta essa moça que, aos 35, parece ter perdido a capacidade de sorrir. A conversa tensa toma conta do clima da casa. Lídia precisa da ajuda de um andador para se deslocar e os braços são frágeis. Tem apenas parte da visão e sofre com perdas ocasionais de memória. “Paguei minha dívida com a empresa e meu retorno foi o problema de saúde.”

O caso de Lídia chamou a atenção do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que tem analisado a situação dos produtores daquele município. A dificuldade em diagnosticar a intoxicação crônica e a subnotificação dos males provocados pelo agrotóxico são os problemas culturais, de produtores e de equipes médicas, com os quais depara a pesquisa. Paulo Perna, coordenador do núcleo e professor do Departamento de Enfermagem da UFPR, lembra que é inviável a exigência de que se fique sete dias longe da lavoura após a aplicação do agrotóxico, já que as propriedades são pequenas e as casas ficam ao lado da plantação.

“A indústria quer falar que foi o produtor que não usou equipamento de proteção, mas mesmo usando não protege. É uma condição imposta e o trabalhador não tem opções”, afirma o coordenador. Lídia e o marido não viram alternativa que não fosse o tabaco. Mas, após a confirmação de seus problemas de saúde, as empresas não quiseram mais estabelecer contratos. Com isso, a família pensa em engrossar a população urbana brasileira.

O Brasil ratificou em 2005 a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco. A Organização Mundial de Saúde (OMS) e parte da comunidade internacional assumiram o compromisso de reduzir a demanda por tabaco e a oferta dos produtos, além de assegurar a proteção social dos trabalhadores. Restrições à publicidade e ao consumo em lugares públicos, somadas ao corte de estímulos, como cigarros com sabor, fazem parte do pacote que prevê levar a uma drástica diminuição do número de fumantes. Obviamente, haverá necessidade de menos produtores. Em Rio Azul, cuja arrecadação depende em 45% do tabaco, muitos fumicultores foram avisados este ano que estão descredenciados.

Uma das necessidades reconhecidas pela OMS é a criação, pelos países, de alternativas financeiras à população rural. O Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas por Tabaco é coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e beneficia atualmente 30 mil famílias, a maioria no Rio Grande do Sul. Organizações não governamentais, secretarias estaduais e prefeituras têm buscado rotas de fuga. A maioria das propriedades é pequena, o que dificulta a rentabilidade de algumas culturas. “A gente quer sempre que a zona rural se desenvolva com qualidade de vida para as famílias”, resume Adriana Gregolin, coordenadora do programa do MDA, cujos limites são curtos. O orçamento para este ano é de R$ 5 milhões. Para se ter uma ideia da batalha, uma das grandes corporações tabagistas obteve, apenas na América Latina, lucro de R$ 1,6 bilhão em 2010.




Terra livre de agrotóxicos
A mesa de Hamilton Paizani é farta. Frutas, verduras, legumes e carne vêm da propriedade. A compra no mercado se restringe a sal e açúcar, situação diferente da que se vê na casa de um fumicultor. A expectativa agora é obter a certificação de produtor agroecológico. “Ter uma qualidade de vida melhor é fundamental.” O simpático Augustinho, de 76 anos, lamenta que o filho tenha se metido a produzir tabaco, mas está superada a tormenta. A propriedade dos Paizani é guardiã de uma das variedades de milho crioulo da região.

É a verdadeira riqueza de um caboclo, garantindo a próxima safra com uma semente de qualidade e sem modificação genética. “Esse tal de fumo foi um atraso de vida. O produtor fica devendo a vida toda.”

Uma das dificuldades de deixar o tabaco é o sistema de produção. Por piores que sejam as condições, há garantia de compra e de transporte. Sindicatos, ONGs e produtores vêm debatendo a criação de cooperativas e de mercados regionais.

A lei federal que determina a produção de 30% por agricultores familiares tem se desenhado como uma boa alternativa, mas ainda é cedo. Valdemar Leite, dono de três alqueires em São João do Triunfo, está de olho na movimentação. As íngremes terras não são obstáculo para o plantio de uva, milho, feijão, verdura, abóbora, mandioca. O filho Antônio, de 30 anos, chegou a ajudar um irmão durante cinco anos na plantação de fumo. Agora, ajuda o pai na agroecologia, que inclui ainda manejo sustentável da floresta e apicultura.

Os conhecimentos ancestrais dos caboclos somam-se às experiências trazidas pela ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA), de fomento à produção livre de agrotóxicos. Tudo dentro da propriedade é reutilizado, nem remédio se compra em farmácia. “Rico a gente não está, nem vai ficar. Mas tem o sustento, liberdade para trabalhar e não estar contaminando a saúde.”

A versão das empresas

O fato de esta reportagem não indicar o nome de nenhuma empresa não é casualidade. A intenção é mostrar os vícios da cadeia produtiva, e não apontar as falhas dessa ou daquela corporação. Para saber a versão do setor, a Revista do Brasil procurou o Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco) e enviou algumas perguntas:

O contrato de compra e venda estabelece uma relação empresa-colaborador ou uma relação patrão-empregado?
Como se dá, nesse momento, a relação entre empresas e fumicultores no que diz respeito à compra de agrotóxicos?
Em São João do Triunfo, alguns produtores de orgânicos alegam haver sofrido problemas com os vizinhos fumicultores por causa do Gamit 500. O produto foi recomendado pelas empresas?
A que se deve a queda nos preços pagos pela folha de tabaco este ano?
A portaria estabelecida em 2007 pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento é suficiente para eliminar a aplicação de critérios subjetivos na classificação do tabaco? O agricultor que se sinta injustiçado no momento da classificação dispõe de quais mecanismos?
A entidade não respondeu a nenhuma delas.

O perigo voa longe
Silvestre de Oliveira Santos mora em uma simpática casinha de madeira. Dentro dela, a iluminação mais fraca, as cores opacas das paredes, as flores e as gravuras suavizam o ambiente. Alto, de braços e pernas compridas, Silvestre parece até pequeno dentro dessa casa. A calma com que conversa nem dá o grau da dificuldade que passou. Ele caminha pelas terras e mostra árvores prejudicadas pelo agrotóxico empregado na plantação de fumo do vizinho.


Outros produtores de alimentos orgânicos notaram, na mesma época, que as folhas ficavam brancas, os frutos caíam, a grama queimava. Pássaros e peixes mortos completavam o quadro.

O camponês integra o Coletivo Triunfo, que denuncia o uso do Gamit 500, agrotóxico proibido pela Secretaria de Agricultura do Paraná. A bula do herbicida indica que deve ser aplicado num raio de 800 metros de outras culturas. E os produtores vislumbram o risco de perder um precioso mercado que valoriza a agroecologia. “A gente estava há dez anos trabalhando nisso. Agora ia certificar”, afirma Silvestre.



Além da compreensão dos vizinhos, o Coletivo quer fiscalização rigorosa e restrição clara à aplicação de agrotóxicos. Antônio Leite também viu a propriedade prejudicada pelo defensivo agrícola do vizinho. “A maioria está com a mente contaminada. Prejudica a gente, que não quer usar veneno.”


Revista Brasil Atual

Censo 2010 mostra desigualdade de renda ainda acentuada no país

Metade da população brasileira vivia com menos de um salário mínimo no ano passado

Por: Flávia Villela, da Agência Brasil




Apesar de melhoras em índices econômicos, país ainda mantém parte da população com renda abaixo da linha da pobreza (Foto: Danilo Ramos/AquivoRBA)



Rio de Janeiro – Resultados do Censo Demográfico 2010 mostram que metade da população recebeu mensalmente, durante o ano de 2010, até R$ 375 – valor inferior ao salário mínimo, de R$ 510 pagos na época, embora a média nacional de rendimento domiciliar per capita fosse R$ 668. Além disso, os 10% com maiores salários entre a população brasileira ficaram, em 2010, com 44,5% do total de rendimentos, enquanto os 10% com menor renda, 1,1%.

Os dados fazem parte dos resultados definitivos do universo do Censo 2010 divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE.

No que se refere ao rendimento médio mensal domiciliar per capta, os 10% com os rendimentos mais elevados ganhavam R$ 9.501, enquanto as famílias mais pobres viviam com apenas R$ 225 por mês.

De todos os brasileiros acima de 10 anos de idade que têm com rendimentos, 0,5% recebiam mais de R$ 10,2 mil mensais na cidades e 0,1% no campo. Na área rural, 46,1% recebiam R$ 596. Na zona urbana, esse valor alcançou R$ 1.294.

As desigualdades aumentam nas regiões Norte e Nordeste, onde os 10% mais pobres detêm 1% do total de rendimentos. A grande concentração de renda fez com que o país ficasse com número 0,526 no índice de Gini, que calcula a desigualdade de distribuição de renda, levando consideração uma variação de 0 a 1, em que 0 corresponde à completa igualdade de renda e 1 corresponde a total desigualdade. A concentração é maior nas áreas urbanas (0,521), embora as áreas rurais do país (0,453) detenham a maioria das pessoas sem rendimento ou com rendimento até R$ 510 (85,4%).

A parcela que ganhava mais de R$ 2.550 por mês representava 1% na área rural e 6% na área urbana. As regiões Norte e a Nordeste são as que registram menor número de trabalhadores com renda acima desse valor, com 2,6% e 3,1% respectivamente, bem abaixo das percentagens do Sudeste (6,7%), do Sul (6,1%) e Centro-Oeste (7,3%).

No Distrito Federal, o rendimento nominal médio mensal dos domicílios particulares era R$ 4.635 – o maior do país. No outro extremo, o Maranhão era a unidade da federação com menor rendimento domiciliar: R$ 1.274.

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