quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Trabalho: o que mudou?

Trabalho: o que mudou?
Raquel Torres - Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
Pesquisadores analisam as novas configurações do mundo do trabalho



“A felicidade da empresa é a felicidade de mercado, que está ligada a sua capacidade competitiva, que está ligada, por sua vez, à felicidade dos empregados, e todos juntos formam a imagem da empresa. O principal objetivo da comunicação interna é a manutenção dessa envolvente cadeia de felicidade”. Esse pequeno trecho do artigo ‘Imagem corporativa: marketing da ilusão’, de Elizabeth Brandão e Bruno Carvalho, explicita uma das mudanças mais ou menos recentes pelas quais o trabalho – e a vida dos trabalhadores – têm passado: a busca por estratégias que façam os empregados ‘vestirem a camisa da firma’ e se envolverem pessoalmente com as empresas.

Há outras. Entre elas, está a distribuição da força de trabalho entre os setores primário, secundário e terciário: não é de hoje que se aponta a diminuição da mão de obra na indústria e no campo devido à mecanização dos processos, enquanto o trabalho no setor de serviços parece inchar — mas será que isso é verdade no mundo todo? Por outro lado, a própria separação entre esses três setores parece não ser mais tão rígida, num momento em que ganham força, por exemplo, a agroindústria e a indústria de serviços. Aliás, o aumento da terceirização – e até da quarteirização – é cada vez mais evidente. Tudo isso gera transformações nas relações entre os trabalhadores, no seu modo de organização e na atuação de suas entidades representativas. Nesta reportagem, os pesquisadores ouvidos pela Poli buscam explicar essas e outras mudanças e analisar suas implicações.

Novas configurações

O professor Marcelo Badaró, da Universidade Federal Fluminense, acredita que a grande sofisticação tecnológica alcançada hoje, sobretudo na área informacional, tem um objetivo muito nítido na sociedade capitalista: “Diminuir o custo da força de trabalho, diminuindo o número de trabalhadores necessários para produzir e fazer circular e mesma quantidade de mercadorias”.

José Maria de Almeida, membro da coordenação nacional da Central Sindical e Popular Conlutas, diz que essa finalidade foi alcançada fundamentalmente por meio de três mecanismos: a robotização, a busca de envolvimento ideológico do trabalhador pelos objetivos da empresa e a reorganização do processo de produção. Ele explica que a robotização, uma das estratégias mais conhecidas, não se restringe apenas ao setor industrial, onde esse processo é mais evidente: “O sistema financeiro no Brasil, no começo dos anos 1990, tinha 800 mil empregados. Hoje, o sistema instalado é muito maior e temos apenas 370 mil trabalhadores, o que se deve em grande medida à mecanização”, exemplifica.

Ele diz também que o que chama de envolvimento ideológico tem um papel cada vez mais importante, e que uma das formas de se conseguir isso é dar ao trabalhador uma recompensa econômica pelo seu envolvimento. “A participação nos lucros da empresa é muito adequada a isso. Vende-se para o trabalhador a ideia de que, quanto maior é a sua produção, mais dinheiro ele ganha. Esse ganho da participação dos lucros é concreto: todos os anos, o empregado é premiado pelo aumento da produtividade da empresa. Há uma propaganda ideológica no sentido de que o trabalhador se veja como responsável pelas conquistas da empresa e se beneficie delas, e a remuneração ajuda a consolidar essa ideia. O trabalhador acaba se tornando escravo de si próprio: ganha pouco e fica refém da participação dos lucros – para receber mais, explora-se mais”.

Isso também tem tudo a ver com aquela passagem sobre comunicação interna que você leu no início desta reportagem. De acordo com Zé Maria, a “disputa pela consciência do trabalhador” se dá, também, por meio da propaganda. Nesse sentido, os jornaizinhos internos, newsletters e até mesmo festas da empresa têm um papel fundamental para gerar maior comprometimento dos funcionários, produzir uma sensação de pertencimento ao local de trabalho e, consequentemente, aumentar seus índices de produtividade. “Quase toda empresa tem um departamento voltado à propaganda, ao envolvimento do trabalhador em atividades internas, em fazer contato com a família”, diz Zé Maria.

Elizabeth Brandão e Bruno Carvalho mostram, no artigo já citado, o quanto isso é sério: “A imagem corporativa exige que os funcionários-parceiros espelhem a felicidade da empresa pelo testemunho individual, pois a imagem de sucesso e bem-estar de um deve ser a de outro. Para isso, o marketing cria realidades idílicas que transformam o trabalho em uma nova ideologia, na qual o excesso de dedicação não se paga com hora extra, mas com polpudas vantagens e facilidades que, além do ganho econômico, significam também alcançar poder, status e carisma – enfim, os atributos da imagem do vencedor”. E completam: “Nas empresas que encarnam no imaginário da sociedade atual o progresso tecnológico e social, a forma de lidar com seus empregados é suprir suas necessidades materiais, psicológicas e afetivas. (...) Segundo a cartilha da Cisco [Cisco System, empresa de tecnologias de informação e comunicação], não se deve buscar um equilíbrio entre trabalho e família e sim a integração entre os dois”, escrevem.

Zé Maria fala também sobre a importância da terceira estratégia: a reorganização da produção, que diz respeito à intensificação do trabalho. “Hoje se fala muito em trabalhadores multifuncionais, polivalentes. Dizer que o aumento da produtividade tem a ver só com a robotização é uma ingenuidade: analisando o setor automotivo, por exemplo, vemos que nos anos 1980 havia cerca de 125 mil trabalhadores no Brasil, e as indústrias produziam um milhão de automóveis por ano. Hoje com menos de 120 mil empregados, a produção triplicou. Não tem como fazer isso só com a robotização – a exploração do trabalho também aumentou. Prova disso é que o Brasil tem 35% dos trabalhadores do setor metalúrgico sofrendo de doenças ligadas ao excesso de trabalho”, aponta.

Mortes por excesso de trabalho

Essa também é uma questão apontada pelo sociólogo Sadi dal Rosso, professor da Universidade de Brasília (UnB). Segundo ele, as empresas hoje se centralizam numa política de exigência de cumprimento de metas. “Há demandas cada vez maiores sobre o ritmo, sobre a velocidade e sobre a quantidade de coisas que o trabalhador precisa fazer ao mesmo tempo. A intensificação pode estar ligada ao tamanho da jornada de trabalho, mas não necessariamente. Às vezes, mesmo em uma jornada não muito longa, o trabalhador tem que apresentar mais resultados, e isso em qualquer área: seja uma produtividade maior na indústria, seja o numero de consultas na área de saúde, sejam aulas e correções de trabalhos de alunos no caso de professores, sejam atividades na música, na arte”, diz.

E, de acordo com Sadi, essa intensificação acarreta não apenas o aparecimento de problemas de saúde citados por Zé Maria, mas também outro fenômeno: a morte por excesso de trabalho, que já é bem conhecida no Japão, onde tem o nome karoshi. O primeiro caso foi registrado no fim dos anos 1960, e hoje o Ministério do Trabalho do país publica estatísticas sobre o tema. Os estudos indicam que o karoshi costuma ser associado a longas jornadas e a trabalho por turnos e em horários irregulares, e que a maior parte das vítimas trabalha mais de três mil horas por ano – o equivalente a trabalhar, sem descanso semanal, sem folgas nem férias, mais de oito horas por dia. Para se ter uma ideia, no Brasil, respeitando-se a legislação que permite uma jornada máxima de 44 horas por semana, a carga horária anual de um trabalhador chega a, no máximo, 2.400 horas, mesmo se ele não tirar férias.

O professor acrescenta que, apesar de ser mais conhecido no Japão, o problema não está muito distante do Brasil, onde se tem constatado que más condições de trabalho no campo também podem levar à morte. “Cortadores de cana, por exemplo, se submetem a uma rotina absolutamente exaustiva para atenderem metas e conseguirem ganhar um salário melhor, pago por toneladas de cana cortadas”, diz Sadi. No artigo ´Por que morrem os cortadores de cana?’, o professor da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) Francisco Alves escreve que na década de 1950 cada trabalhador cortava em média três toneladas de cana por dia; em 1980, o número passou para seis toneladas e, no início dos anos 2000, a produtividade já era de 12 toneladas por dia de trabalho. “É necessário ter maior resistência física para a realização de uma atividade repetitiva e exaustiva, realizada a céu aberto, sob o sol, na presença de fuligem, poeira e fumaça, por um período que varia entre 8 e 12 horas”, diz o autor. Ele cita um levantamento do Serviço Pastoral do Migrante de Guariba, em São Paulo, que diz que entre 2004 e 2007 isso levou à morte 14 cortadores de cana, migrantes e jovens, na região.

Sadi observa que, no caso do Japão, alguns tribunais reconhecem hoje a morte por excesso de trabalho e estabelecem compensações para a família do trabalhador. “Com isso, reconhece-se formalmente um fenômeno que pensávamos que existisse só no tempo da escravidão. Agora, que estamos na suposta era dos trabalhadores livres, eles morrem em função do trabalho exigido”, completa.

Mais flexível

Além de mais intenso, o trabalho também tem, em muitos casos, se tornado mais flexível no que diz respeito aos horários. Isso significa que mais gente continua trabalhando depois do expediente ou leva trabalho pra casa, porque a produção não se mede especificamente em carga horária, mas em metas. “Essa flexibilidade poderia ser útil tanto para a empresa quanto para o trabalhador. Em princípio, se o trabalhador tem uma emergência doméstica ou precisa ir ao médico, por exemplo, seria bom poder chegar duas horas mais tarde e compensá-las no fim do expediente”, pondera Sadi. Mas ele diz que existe outro lado: “As empresas acabam adaptando isso apenas às suas próprias necessidades. O trabalho tem que ser flexível para as suas demandas: quando aumenta a demanda pelo seu serviço ou pelo seu produto, o empregado precisa trabalhar mais. A flexibilidade é entendida como aquilo que permite adaptar a quantidade de mão de obra às exigências do mercado”, afirma.

De acordo com o professor, prova de que a flexibilidade beneficia pouco o trabalhador é que, em suas pesquisas, ele encontrou poucos casos brasileiros de negociações para o estabelecimento de flexibilidade para empregados que querem estudar, por exemplo. Por outro lado, a flexibilização baseada em banco de horas é imposta em inúmeras empresas, tanto industriais como do setor de serviços. “Esse sistema foi criado em 1998 com o objetivo de diminuir o gasto das empresas, para que elas parassem de pagar horas extras”, conta Sadi.

Essas mudanças não ocorrem apenas no setor privado. “Nos setores empresarias estatais, isso não muda nada. Tanto nos bancos como em empresas como a Petrobras, os objetivos são os mesmos”, afirma Sadi. De acordo com ele, o problema também ocorre em áreas não empresariais, como a educação, onde também há flexibilização e intensificação do trabalho.

Nova divisão internacional do trabalho

Marcelo Badaró considera que a renovação dessas “formas mais arcaicas da exploração da força de trabalho representam a combinação mais complexa e mais perversa da alta tecnologia”. Ele lembra que muitas vezes empresas altamente modernizadas estão intimamente ligadas à manutenção de trabalho análogo ao escravo: “As mesmas montadoras de automóveis ou grandes bancos são sócios de megaempresas agropecuárias, muitas das quais responsabilizadas pelo emprego de trabalhadores em condições análogas à escravidão. Empresas como as de material esportivo organizam em escala global a propaganda de suas mercadorias, usando os grandes esportistas como garotos-propaganda, ao mesmo tempo em que, também em escala global, remuneram de forma aviltante a força de trabalho mais precária – muitas vezes crianças – para produzirem em qualquer lugar do mundo seus tênis e agasalhos. As grandes cadeias de lojas de roupa, de capital europeu, anunciam suas coleções com as mais caras modelos e encomendam a produção de suas roupas a pequenas oficinas de fundo de quintal na Índia, no Vietnã, ou a pequenas instalações dirigidas por imigrantes orientais que exploram imigrantes sulamericanos em pleno centro de São Paulo”, diz.

O professor aponta que o sistema de produção atual continua baseado na valorização do capital por meio da exploração do trabalho no processo de produção de mercadorias. Por isso, por mais que o capitalismo esteja ‘financeirizado’, a produção continua muito importante: “Por mais que fábricas tenham sido fechadas em áreas do hemisfério Norte, há hoje, em números absolutos, uma quantidade de trabalhadores assalariados nas indústrias – operários típicos – maior do que em qualquer outro momento da história, embora agora mais numerosos no hemisfério Sul”.

A afirmação leva a uma reflexão sobre uma realidade que o senso comum costuma ter como certa, e que está relacionada a fatores já discutidos nesta mesma matéria, como a robotização: costuma-se acreditar que o número de trabalhadores nas indústrias e no campo tem diminuído em todo o mundo, em detrimento do trabalho no setor de serviços. Isso é verdade para países de economias centrais, como Estados Unidos e Inglaterra, mas não é um fenômeno observado mundialmente, como aponta Badaró.

Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) confirmam a afirmação do pesquisador. Nos países de economia central, o trabalho no setor primário caiu de 32,8% em 1950 para apenas 5% em 1998. Na indústria ele também diminuiu de 30,8% para 23%. Enquanto isso, no mesmo período, no setor de serviços, houve uma grande expansão, de 36,4% para 72%. A surpresa se dá quando olhamos para os números dos países de economia periférica: o trabalho nas indústrias aumentou de 9,4% para 15% e, embora no setor primário ele tenha diminuído de 73,9% para 55%, continuou muito alto em relação aos dos países centrais. No setor terciário houve aumento, mas não tão intenso como nos outros países: de 16,7% para 30%. A OIT tem poucos dados atualizados a esse respeito, mas alguns deles são significativos: em 2005, o trabalho no setor primário representava quase 80% do total na Etiópia e, na Tanzânia, ele empregava 75% dos trabalhadores em 2006. No Brasil, o MTE mostra que o trabalho no setor secundário vem aumentando gradativamente: em 2006, representava 22,7% do total e, em 2010, passou para 23,6%.

No artigo ‘Economia global e a nova Divisão Internacional do Trabalho’, o economista Márcio Pochmann explica como e por que isso acontece. De acordo com ele, desde a década de 1970 se percebe uma mudança na Divisão Internacional do Trabalho relacionada a transformações no centro do capitalismo mundial. Ele diz que a competição por novos mercados e a procura por menores custos de produção fizeram com que grandes empresas começassem a se expandir para os países periféricos e semiperiféricos. Segundo Pochmann, isso proporcionou o reforço na industrialização em países de renda per capita mais baixa.

Assim, ele escreve: “Nas economias semiperiféricas, a especialização em torno das atividades da indústria de transformação resulta, cada vez mais, proveniente da migração da produção de menor valor agregado e baixo coeficiente tecnológico do centro capitalista, que requer a utilização de mão de obra mais barata possível e qualificação não elevada, além do uso extensivo de matéria-prima e de energia, em grande parte sustentada em atividades insalubres e poluidoras do ambiente, não mais aceitas nos países ricos”. Por outro lado, no centro do capitalismo, a maior parte da ocupação está no setor de serviços, que, segundo Pochmann, é “mais protegido” que os setores industriais e agropecuários.

Embora Pochmann considere que o setor de serviços é mais protegido, Huw Beynon, professor da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Cardiff, no Reino Unido, apresenta uma ressalva quanto a isso. “Alguns desses serviços têm sido associados a uma maior estabilidade e a uma fonte e segurança. Entretanto, hoje tem se tornado claro que os serviços que envolvem tecnologias da informação podem ser ‘globalizados’: exemplo disso é que muitas centrais de atendimento [telemarketing] do Reino Unido e dos Estados Unidos foram fechadas e reabertas na Índia, empregando trabalhadores que sabiam falar inglês nesse país”, observa.

De acordo com Beynon, as novas estratégias de localização das empresas se unem à flexibilidade garantida pelas novas tecnologias da informação para recuperar o crescimento. “Juntas, essas estratégias levaram a um novo crescimento econômico por meio da produção de novos tipos de mercadorias – desde smartphones até contratos de crédito aos consumidores – produzidos ao redor do mundo e também vendidos ao redor do mundo”, afirma o professor.

Novo proletariado

O que será que essas mudanças no trabalho significam para as relações entre trabalhadores, propriamente? Será que existe proletariado fora do campo e da indústria?

Alguns pesquisadores defendem que o ‘verdadeiro’ trabalho é apenas o manual. O professor Sergio Lessa, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), por exemplo, diz: “O trabalho é sempre e necessariamente trabalho manual, mesmo que entre o corpo humano e a natureza a ser transformada se interponha o maquinário ou a tecnologia mais desenvolvidas”. E ele vai além: “Todas as vezes em que se quer ampliar o trabalho, de tal modo a nele incluir as relações assalariadas ou as demais ações humanas, o resultado é, por um lado, a perda de especificidade ontológica do trabalho frente às outras práxis e, por outro, a impossibilidade de se compreender as classes sociais em suas articulações e diferenças, contradições e antagonismos”. De acordo com Lessa, o proletariado se referiria apenas a esses trabalhadores manuais – aos operários do campo e da cidade.

Mas essa visão não é unânime. Para Marcelo Badaró, o termo proletariado se refere ao conjunto de homens e mulheres expropriados de seu acesso à terra, de suas ferramentas de trabalho ou mesmo do controle sobre o seu trabalho. “Em Marx, o termo aparece quase sempre como sinônimo de classe trabalhadora: o conjunto dos que, por falta de alternativas, têm que vender sua força de trabalho para garantir a subsistência”, explica. Por isso, para o professor, o proletariado pode estar presente em todos os setores da atividade econômica.

O sociólogo Ricardo Antunes, sociólogo e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também defende esta posição. “As atividades de escritório, por exemplo, se proletarizaram, assim como há uma tendência de proletarização dos assalariados médios, como médicos, professores, funcionários públicos”, diz. E ele ressalta que, mesmo dentro das indústrias, o tipo de trabalho mudou. “Hoje, quando se entra numa fábrica de automóveis, existe um proletariado que opera com máquinas digitalizadas, com tecnologia informacional. Algumas fábricas exigem metalúrgicos que tenham conhecimentos básicos de inglês e de computação, porque eles não vão mais necessariamente operar transformando a matéria prima diretamente. Há siderúrgicas em que operários trabalham em terminais de computador, e já não mais em cima da caldeira – eles operam os equipamentos que vão transformando a matéria”, pontua.

Para Ricardo, o importante é compreender que existe uma nova morfologia do tabalho, mas que “permanece a tendência à exploração, à intensificação do trabalho e à proletarização de amplos contingentes”. O pesquisador cita o caso dos atendentes de telemarketing –trabalhadores do setor de serviços que, de acordo com ele, são proletários. “Não se pode dizer, de forma alguma, que são trabalhadores dotados de autonomia. Atuam com tecnologia informacional e precisam vender serviços ou resolver problemas, mas têm um trabalho prescrito, padronizado: esses atendentes são os típicos proletários de um novo setor de serviços”, defende. Sadi dal Rosso lembra também que, em muitos casos, as condições de trabalho dos empregados do setor de serviços são tão ou mais precárias que os das atividades industriais.

Mudanças nas lutas de trabalhadores

Outra decorrência inevitável das mudanças do mundo do trabalho são as transformações nos movimentos trabalhistas. O professor Armando Boito Júnior, da Unicamp, lembra que durante toda a década de 1990 houve um debate sobre a crise ou o declínio do movimento sindical no Brasil. “Dizia-se que o movimento ficaria frágil. Como razões para isso, apresentava-se a redução do número de trabalhadores nas indústrias – como se apenas os industriais fizessem sindicalismo”, critica. Ele diz ainda que se falava na heterogeneidade dos trabalhadores, que teriam dificuldade de se perceberem enquanto classe. Mas, na análise do pesquisador, a década de 2000 foi um período de recuperação para o movimento sindical brasileiro. “Acredito que isso tenha a ver com o momento vivido pelo país. O crescimento econômico e o aumento do emprego aumentaram o moral dos trabalhadores para a luta”, diz.

De acordo com ele, no setor de serviços a organização dos trabalhadores ainda não é muito intensa, mas é por uma questão de tempo. “Qualquer novo setor demora um pouco para começar”, defende. Emanuel Melato, representante da Intersindical – organização nacional que atua com sindicatos –, considera que o setor de serviços é o que tem maior dificuldade de organização. “É muito amplo, os trabalhadores muitas vezes estão dispersos, o que dificulta a organização. Ao mesmo tempo, são fundados sindicatos para esse setor de um dia para o outro, sem a menor representatividade”, diz. Messias Melo, secretário de Relações do Trabalho da Central Única dos Trabalhadores (CUT), concorda: “Os sindicatos são muito pulverizados. Exemplo disso é que quase toda cidade tem um sindicato dos trabalhadores do comércio – se houvesse estaduais ou regionais, poderiam ser mais fortes”.

Apesar de avaliar que o movimento sindical esteja se recuperando no país, Boito Jr também tem críticas. De acordo com ele, a política de envolvimento das empresas acabou incluindo boa parte dos sindicatos. “Ocorreu uma mudança de prática do sindicalismo combativo, surgido nos anos 1980 e que acabou originando a CUT. Na década seguinte, houve uma adaptação. De um sindicalismo voltado para a resistência, para a luta e contra os interesses das empresas, ele passou a se adaptar”, diz, exemplificando: “A começar pelos metalúrgicos do ABC paulista, na década de 1990, que se dispuseram a negociar a implantação da reestruturação produtiva e difundiram a ideia de que os trabalhadores precisavam se preocupar com a produtividade da empresa como forma de garantir seu emprego. Hoje, com a produção triplicada e o faturamento mais ainda, as empresas mantiveram o mesmo número de empregados. Como os convenceram a suportar a exploração? Com o apoio dos sindicatos. Houve uma cooptação muito ampla que continua acontecendo”, critica.

Hoje, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), há quase 10 mil sindicatos registrados oficialmente. Além disso, são seis centrais sindicais – CUT, representando 38,23% dos trabalhadores; Força Sindical, com 13,71%; Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), com 7,55%; União Geral dos Trabalhadores (UGT), com 7,19%; Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST), com 6,69%; e Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), com 5,04%. Mas há outras tantas ainda não registradas, como a Central Sindical e Popular Conlutas e a União Sindical dos Trabalhadores.

Para Sadi dal Rosso, esse número elevado de centrais pode ser um problema. “Isso poderia indicar um caminho mais forte de organização de base, mas muitas vezes significa a ocupação do espaço por grupos políticos. A verdade é que cada partido político grande tem uma central correspondente. Nesse sentido, essa fragmentação não contribui para o aumento da força nem para a melhoria das condições de trabalho”, critica.

O que é trabalho?

O professor Marcelo Badaró, da UFF, explica que há muitas definições, mas, em geral, elas se articulam em dois grandes eixos não excludentes entre si. “Um deles diz respeito à natureza do ser humano. Nesse caso, o que se define como trabalho é a atividade social que os seres humanos estabelecem entre si para produzirem as condições de sua sobrevivência”, diz. De acordo com ele, outras espécies animais têm formas cooperativas para garantir a sobrevivência, mas “só os homens e as mulheres desenvolveram relações sociais complexas para tanto, caracterizadas por um agir racionalmente orientado, ou seja, planejando com vistas a um fim essa sua atividade social produtiva”. Ele diz que, por isso, Karl Marx define o trabalho como condição de existência do homem.

Já o segundo eixo trata da forma que o trabalho adquire em determinadas sociedades, como aquelas divididas em classes. Na sociedade capitalista, por exemplo, trabalho passa a ser compreendido como trabalho assalariado. “Neste caso, o trabalho é associado à exploração de seres humanos por outros seres humanos. Os que trabalham diretamente, a classe trabalhadora, o fazem porque não possuem os meios necessários a manter sua subsistência fora do mercado, quer dizer, precisam vender de alguma forma a sua força de trabalho no mercado, para, com o dinheiro que recebem em troca dessa venda (normalmente chamado de salário) voltarem ao mercado como compradores de mercadorias necessárias à sua sobrevivência”, afirma o professor.

De acordo com o Ricardo Antunes, da Unicamp, isso faz com que o trabalho se torne uma atividade compulsória: “Se o trabalhador não executa o trabalho assalariado, não recebe a remuneração e morre de fome. Por isso, a ideia que temos de trabalho livre só é aparente. O trabalhador é livre para vender sua força de trabalho – mas, se não fizer isso, morre”, observa. Badaró completa: “Vivendo em função dessa troca, aparentemente equivalente, de mercadorias, o trabalhador não pode identificar em seu trabalho algo que faça sentido para ele, já que não controla o tempo durante o qual despende sua força de trabalho, nem o produto desse trabalho, nem a relação social que estabelece com os outros trabalhadores para produzir. Assim, aquele sentido original do trabalho como estruturante das relações sociais, portanto humanas, não desaparece na sociedade capitalista, mas está completamente subsumido ao sentido histórico do trabalho para o capital”.

Trabalho produtivo X trabalho improdutivo

Sergio Lessa, da Ufal, explica que trabalho produtivo para o capital é aquele que gera ‘mais valia’, que é a diferença entre o custo da força de trabalho e o valor que ela produz – ou seja, é a base do lucro no sistema capitalista. A geração de mais valia acontece porque a força de trabalho consegue produzir um valor maior do que o necessário para comprá-la. Por exemplo: um operário que trabalha oito horas por dia pode produzir coisas que serão vendidas por um valor muito mais alto que a soma do seu salário com o valor dos meios de produção.

E, para ser produtivo, não importa se o trabalho produz bens materiais, como no caso do operário do exemplo, ou imateriais, como na saúde e na educação. No verbete ‘Trabalho produtivo e trabalho improdutivo’, do Dicionário da Educação Profissional em Saúde editado pela EPSJV, Lessa explica que “com o desenvolvimento das relações mercantis, expande-se uma nova possibilidade de valorização de capital pela exploração de alguns serviços”. “O exemplo de Marx é o do professor em uma escola privada. Outros muitos exemplos podem ser dados, inclusive os dos profissionais da saúde que trabalham nos planos de saúde e hospitais privados”, escreve Lessa. Isso porque, nesses casos – mas não quando se trata de profissionais que trabalham para o Estado – o capital vende o serviço por um valor maior do que o da força de trabalho empregada: o preço da aula é maior que o salário do professor, e o preço da consulta é maior que o do trabalho do médico.

Para Ricardo Antunes, professor da Unicamp, a diferença entre trabalho produtivo e improdutivo é uma das questões mais importantes hoje. Mas ele diz que é preciso também fazer uma distinção: “Uma coisa é o que é produtivo para a humanidade, e outra é o que é produtivo para o capital. O exemplo clássico é o da bomba – destrutiva para a humanidade, é claro, mas produtiva para o capital”.

Ricardo também observa que a separação entre trabalho produtivo e improdutivo não é mais muito clara. “Agricultura, indústria e serviços não são mais três círculos totalmente separados um do outro, mas três áreas com uma grande interseção entre si. A telefonia, por exemplo, foi totalmente privatizada e criou-se uma indústria de serviços que enriquece e que trata o serviço como mercadoria”, aponta. Ele diz ainda que, hoje, o mesmo trabalhador que produz numa fábrica, por exemplo, muitas vezes é instigado a inspecionar seu próprio trabalho. “Ou seja, ele realiza horas de trabalho improdutivo dentro de uma jornada prevalentemente produtiva. O capital precisa dos dois tipos de trabalho”, defende.

Globalização e mobilidade

A livre circulação de mercadorias e de capital é um tema recorrente quando se fala de globalização e de uniões supranacionais, como a União Europeia e o Mercosul. Marcela Pronko, pesquisadora da EPSJV, diz que, junto a isso, nos processos de integração supranacional há uma meta de livre circulação de trabalhadores que complementaria o ciclo de livre circulação de capital e de fatores produtivos. “No caso do Mercosul, o objetivo é que isso aconteça até 2015”, afirma a pesquisadora. Mas ela questiona como será feita essa circulação. De acordo com Marcela, levantar simplesmente as fronteiras só beneficiaria o capital, porque poderia generalizar em todos os países as desigualdades que hoje existem entre as fronteiras.

A pesquisadora diz que um exemplo claro pode ser visto no caso dos trabalhadores técnicos em saúde. “No Mercosul, temos duas situações extremas em termos dessa formação. De um lado, o Brasil, onde a formação se realiza em nível médio, com uma carga horária relativamente pequena e onde o técnico se insere no processo de trabalho com alto grau de subordinação ao profissional de nível superior. Do outro lado, o Uruguai, onde todos os técnicos também se formam, historicamente, no nível superior universitário, com formações de quatro a cinco anos de duração. Seu grau de autonomia é muito maior em relação as outros profissionais. O que aconteceria se, de repente, as fronteiras deixassem de existir?”, questiona.

Ela explica que há alguns cenários possíveis, e um deles seria o seguinte: “No Uruguai, os técnicos devem receber uma remuneração de acordo com sua formação. Se as fronteiras se levantam, o sistema de saúde do país pode ser inundado por técnicos brasileiros, cujo custo é menor, o que desestruturaria o sistema uruguaio e criaria grandes confusões no nível das corporações”, imagina a pesquisadora. De acordo com ela, para que isso não aconteça, é preciso primeiro se conhecer como é feita a formação de trabalhadores no Mercosul, nivelando a formação ‘por cima’, e não ‘por baixo’. “Caso contrário, o processo só vai beneficiar quem tem no lucro o objetivo central da sua atuação social”, observa.

Marcela diz que o processo europeu também propiciou uma circulação intensa de trabalhadores, e que o que ocorreu no continente foi algo bem próximo à situação hipotética que ela descreveu para o Mercosul. “Trabalhadores menos qualificados de países do Leste começaram a assumir tarefas mais simples nos países ricos. Com isso, houve efeitos diversos. Em algumas ocupações, houve queda de salários e em muitos países há reações xenófobas por parte das populações. Esse tipo de reação também pode ser alimentada ao levantarmos as fronteiras do Mercosul sem cuidado”, alerta, completando: “Os mais interessados no Mercosul não estão preocupados com os trabalhadores, mas com a ampliação de mercado, com a livre circulação de mercadorias e com a ampliação de vantagens comparativas de produção”.
FIOCRUZ

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