sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Reserva de carbono


A Amazônia emite milhões de toneladas de CO2 por ano. Mas absorve boa parte disso. O problema é que esse ciclo pode chegar ao fim

São 7 da manhã no centro de Manaus, no coração da Floresta Amazônica, mas o cenário é típico de uma metrópole. Ruas e avenidas estão coalhadas de carros, ônibus e caminhões, a maioria queimando combustíveis fósseis, como gasolina e óleo diesel. E, com isso, liberando na atmosfera dióxido de carbono, o mais conhecido dos gases de efeito estufa. Estamos a caminho da Estação Experimental de Silvicultura Tropical, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), distante 90 quilômetros da capital do Amazonas. Reduzir as causas e os efeitos do aquecimento global tem sido um dos maiores desafios da comunidade científica internacional. Não é diferente na Floresta Amazônica, em que o desmatamento é o grande vilão no que diz respeito à emissão de gases nocivos - a fumaça proveniente das queimadas libera o carbono armazenado na madeira. No ciclo natural do planeta, metade do carbono enviado à atmosfera é absorvida pelos oceanos, pela vegetação e pelo solo. A outra parcela estaciona no ambiente. É aí que mora o perigo, pois a influência do homem tem feito a concentração de CO2 aumentar de forma alarmante.



O acúmulo de CO2 na atmosfera começou a intensificar-se a partir da Revolução Industrial, no fim do século 18, época em que o homem passou a utilizar combustíveis fósseis - carvão mineral, gás natural, petróleo - para movimentar as fábricas. Com o tempo, o uso desse tipo de energia massificou-se. Durante toda a história, até os anos que antecederam as mudanças tecnológicas advindas das transformações industriais, o ar nunca teve mais que 275 partes por milhão (ppm) de dióxido de carbono. Em setembro deste ano, a taxa já havia saltado para 390 ppm - acima de 350 ppm, que é um limite seguro defendido por boa parcela da comunidade científica. O problema é que, quanto mais CO2 na atmosfera, maior é a possibilidade de aumento na temperatura média do planeta nas próximas décadas.

Os dados do último inventário brasileiro, divulgado no fim de 2010, dão conta de que o país é responsável pela emissão de 1,6 bilhão de toneladas de CO2 ao ano, o que nos coloca entre os maiores emissores globais. Ao contrário do que acontece nos dois maiores emissores, China e Estados Unidos (em que a queima de combustíveis fósseis é o grande vilão), nossas pedras no sapato são o desmatamento e as queimadas, que dão origem a 75% das emissões de dióxido de carbono, que ocorrem sobretudo na Amazônia. Se o Brasil controlasse ou zerasse o desflorestamento, já estaria dando enorme contribuição no esforço para reduzir a concentração de CO2.

Por outro lado, o país também abriga um gigantesco sorvedouro de carbono: a própria Floresta Amazônica, pois a vegetação precisa de gás carbônico para se alimentar e crescer. Além disso, há muito carbono estocado no solo, nos rios e nos igarapés do norte do país. Mas quanto cada árvore acumula de carbono? Qual é de verdade o estoque total da floresta? Com a expansão da pecuária, o que aconteceu com o carbono que estava no solo quando bois tomam o lugar das árvores? Encontrar respostas a essas e outras perguntas é um dos desafios dos pesquisadores que trabalham na região.

Vencemos o trânsito cidade. Estamos agora na BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, a capital de Roraima.

A exuberância da floresta se impõe pela janela do carro. É fim de julho. O dia está claro e, como de costume, muito quente. A luminosidade me faz recordar da conversa que tive com o agrônomo Jean Ometto, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ocorrida algumas semanas antes de meu desembarque no Amazonas. "A radiação solar é fundamental para que a vegetação realize a fotossíntese, um dos mecanismos mais maravilhosos da natureza. Por um processo bioquímico, cada folhinha, cada planta, cada árvore retira o carbono - um elemento essencial à vida - e transforma esse material inorgânico em orgânico. É assim que a planta produz glicose, seu alimento. É o primeiro passo de uma série de transformações metabólicas e produção de outros compostos. Assim a floresta cresce. Dessa forma ocorre a transferência do carbono da atmosfera para a biosfera." Esse mecanismo natural explica por que a Amazônia, cuja vegetação ocupa uma área de 6,2 milhões de quilômetros quadrados, é um grande sorvedouro de carbono.

Material vasto, portanto, para os pesquisadores da estação experimental do Inpa, entre eles Niro Higuchi, premiado engenheiro florestal que participou da elaboração do relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Apesar de estar no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) desde 1980, Higuchi ainda carrega no sotaque de sua cidade natal, Chavantes, no interior de São Paulo. É um cientista apaixonado pela floresta, capaz de interromper uma explicação para demonstrar sua admiração por um frondoso angelim-pedra plantado na estação ou fechar os olhos na tentativa de identificar qual espécie de pássaro está cantando.

Para Higuchi, é preciso repassar essa mesma devoção para as novas gerações de pesquisadores. Por isso, há oito anos ele coordena um curso de manejo florestal, que leva estudantes de graduação para uma temporada na estação. "Neste ano, recebemos 36 alunos de engenharia florestal de 14 estados e 19 instituições de ensino superior."

No mato, os jovens aprendem a calcular a quantidade de carbono de uma árvore - 95% da madeira é composta de derivados de carbono, tais como lignina, celulose e hemicelulose. Para isso, é preciso derrubar uma árvore, serrar seu tronco em várias partes e cortar os galhos. Depois é necessário extrair toda a água desse material para, então, pesar a biomassa. "Esses estudos nos levaram a concluir que uma árvore acumula, em carbono, uma média de 48,5% de seu peso", explica Higuchi. Para atingir essa precisão, o pesquisador e sua equipe derrubaram nos últimos anos 1 728 árvores (a mais leve com 5 quilos e a mais pesada com 30 toneladas) na estação experimental de Manaus e em outras localidades, como São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, e Tomé-Açu, no Pará.

Minucioso, Higuchi desenvolveu também uma equação matemática para descobrir - sem precisar cortar - quanto cada árvore tem de carbono. "Basta saber seu diâmetro na altura do peito de um homem adulto para se chegar ao resultado", diz. Simples assim. Esse parâmetro é essencial para estimar o total de carbono na floresta. Os estudos indicam que cada hectare amazônico contém cerca de 600 árvores com mais de 10 centímetros de diâmetro - apenas espécimes com essa espessura são contabilizados.

Diante disso, a Amazônia estoca hoje em torno de 50 bilhões de toneladas de carbono em sua vegetação. "Chegamos a esse valor ao extrapolar os dados coletados em 280 mil árvores do do Amazonas", conta. A reserva, porém, pode ser ainda maior. "Daqui a cinco anos, usaremos essa mesma metodologia em outras regiões. Aí sim teremos uma visão mais clara do que acontece".

A metodologia desenvolvida por Higuchi é valiosa. Se uma árvore de 100 quilos de carbono for queimada, ela acrescentará 367 quilos de CO2 na atmosfera. Baseado nos índices médios de desmatamento nos últimos 25 anos, o cientista acredita que a Amazônia emita por volta de 230 milhões de toneladas de gás carbônico ao ano. Mas quanto ela absorve? "Saber o número preciso é difícil. Acredito que aqui a vegetação fixe 1 tonelada de carbono por hectare ao ano. É uma média, claro. Como estimo haver cerca de 300 milhões de hectares de vegetação, creio que a Amazônia capte uma quantidade aproximada de 300 milhões de toneladas. Até que a floresta não é assim tão vilã nessa história, não é? O balanço é mais ou menos equilibrado. O que é emitido pelo desmatamento é neutralizado por meio do sequestro natural. Mas ninguém pode garantir que esse comportamento vai continuar nos próximos anos." Até porque, se o desmatamento prosseguir, a emissão aumentará, reduzindo, portanto, a absorção.

"É por isso", prossegue Higuchi, "que o Brasil comete um grave erro ao permitir que áreas de floresta sejam usadas pelo agronegócio." Segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), cerca de 15% do verde da Amazônia Legal foi dizimado entre 1994 e 2009, principalmente pelas queimadas que abrem espaço para pastos. "A Amazônia Legal, que corresponde a quase 60% do território brasileiro, contribui com 8% do produto interno bruto nacional. Mas ela polui três vezes mais que o resto do país. É muita poluição para pouca contribuição econômica. Em primeiro lugar, deveríamos zerar o desmatamento e depois investir em tecnologia, ou seja, tratar e fertilizar o solo em áreas já devastadas. Mas, em geral, o agricultor derruba uma floresta primária porque é mais barato."

Higuchi acredita também ser preciso descobrir quanto a Amazônia troca de carbono com a atmosfera. Ou seja, quanto ela captura, armazena e expele. Para explicar isso, ele faz uma analogia: "Um ser humano adulto, com peso médio de 80 quilos, consome cerca de 3 quilos de alimentos sólidos e líquidos por dia. Mas não acumula tudo o que come. Parte do alimento vira energia e parte é eliminada. Com as árvores é a mesma coisa. Para fazer esse estudo, deveríamos isolar algumas e monitorar sua fotossíntese e sua respiração. Ainda não fazemos isso. Espero que algum dia um de meus alunos comece essa pesquisa".

Volto a Manaus ao cair da tarde. Ainda na estrada, vejo pela janela do carro um dossel florestal com 30 metros de altura e começo a imaginar quanto cada uma daquelas árvores absorveu de carbono naquele dia. E como será em um futuro próximo se não desistirmos de queimar mais e mais combustíveis fósseis para mover veículos de passeio, ônibus, caminhões e gerar energia?

Algumas respostas podem ser encontradas no Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), que conta com uma rede de 11 torres distribuídas por vários pontos da selva.

Elas têm 50 metros de altura e abrigam diversos instrumentos, localizados entre 20 e 30 metros acima da copa das árvores, que aferem os fluxos entre a superfície e a atmosfera. Para levantar os dados, a equipe de pesquisadores se vale de um método de nome complicado: covariância de vórtices turbulentos.

São instrumentos do tipo anemômetros ultrassônicos tridimensionais que analisam todas as informações contidas nesses vórtices (fluxos de ar). "Esses aparelhos fazem medidas em alta frequência, cerca de dez vezes por segundo. Com isso, consegue-se aferir os fluxos ascendentes e descendentes. E, ao mesmo tempo, quantificar quantas moléculas de CO2 passam pelos sensores", explica o físico Antonio Ocimar Manzi, coordenador do LBA. "Durante o dia, com a fotossíntese, a copa das árvores funciona como grande esponja de gás carbônico. Sabemos disso porque, conforme as folhas o absorvem, a concentração do gás se reduz."

Manzi explica que as medidas realizadas de dia são mais confiáveis do que as feitas à noite. Mesmo assim, é possível saber que as árvores amazônicas aceleram a produção de CO2 depois que o sol se põe, transportado para a superfície no dia seguinte. "Isso acontece porque só com a luz solar ocorre o aquecimento das massas de ar próximas à superfície terrestre."

E tem mais. Como os instrumentos funcionam de forma contínua - todos os dias do ano, o tempo todo -, a coleta de dados permite aos pesquisadores saber o que acontece a cada momento e como isso se altera segundo variações diárias, alternância das estações do ano, condições climáticas. "Em 2005, quando a Amazônia passou por uma grande seca, a concentração de CO2 na atmosfera elevou-se muito, com índices superiores aos que a floresta pode sequestrar", diz Manzi. Na ocasião, a floresta deixou de absorver carbono e passou a ser uma fonte emissora ainda maior. Alguns estudos apontam que, há seis anos, as emissões foram de 1,6 bilhão de toneladas. O mesmo aconteceu na seca de 2010, quando a biomassa morta chegou a 2,2 bilhões de toneladas.

Em poucos anos, outras respostas poderão ser encontradas em uma estrutura gigantesca a ser construída no coração da floresta, resultado de um projeto ambicioso de cooperação científica reunindo várias instituições de pesquisa do Brasil e da Alemanha. O projeto, batizado de Observatório Amazônico da Torre Alta, é uma parceria entre o Instituto Max Planck de Química, em Berlim, e o Inpa, em associação com a Universidade do Estado do Amazonas. A ideia é instalar uma torre de 320 metros de altura (semelhante à Eiffel, em Paris) na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Atumã, 150 quilômetros a nordeste de Manaus e 50 quilômetros a sudeste da barragem de Balbina. "Ela deve ficar pronta no fim de 2012, e será um superlaboratório referência para as florestas úmidas. A torre terá instrumentos e sensores do solo até o alto, o que permitirá medidas de altíssima precisão em várias camadas da atmosfera", revela Manzi. A 100 metros de distância e ao redor desse cimo principal, haverá ainda outras quatro torres menores, com 80 metros de altura.

"Elas vão possibilitar a observação em tempo real. Iremos saber como as mudanças climáticas alteram os fluxos naturais e as interações entre a superfície e a atmosfera."

E ainda tem o solo. Pouca gente no mundo reflete sobre o carbono ali aprisionado. Não é o caso do engenheiro florestal Carlos Alberto Quesada, também do Inpa. Beto Quesada, como é mais conhecido, conta que "estudos indicam que o primeiro metro de solo da Amazônia inteira tem em volta de 67 bilhões de toneladas de carbono. Acho esse número é baixo. Nas minhas contas, deve chegar a 73 bilhões".

O solo amazônico é como esponja: absorve tudo o que cai nele. "Quando essa matéria orgânica morre, entra no solo, no qual sofre decomposição. Durante o processo, parte do carbono que havia é liberada como CO2, resultado da respiração dos micro-organismos. Mas o que sobrou penetra no solo e ali fica armazenado", explica Quesada. Ninguém ainda sabe quanto é liberado de carbono por ano e quanto o solo absorve. Monitorar essas mudanças é complicado e pouca gente investiu nisso. "Um de meus trabalhos consiste em desenvolver linhas de base em florestas nativas que servirão de parâmetro para comparações em 20 ou 30 anos."

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Quesada alerta que os solos amazônicos, embora não sejam homogêneos (no oeste são mais férteis que no leste), são frágeis. Uma vez que se retira a vegetação de cima, sua capacidade produtiva é mínima. "Os solos mais pobres dependem da reciclagem da matéria orgânica. Quando se remove a floresta, a fonte de nutrientes vai embora. As raízes desaparecem. A fauna e os micro-organismos também deixam de existir, e o estoque de carbono que havia sob e sobre o solo se reduz. É por isso que a mudança no uso da terra torna-se tão drástica para as reservas do elemento."

Um dos efeitos da crescente concentração de CO2 na atmosfera da Amazônia já foi captado pelos cientistas. Segundo dados do projeto Rainfor, que une vários pesquisadores do Brasil e de outros países, nos últimos 20 ou 30 anos a floresta ganhou biomassa. Ou seja, não apenas as árvores "engordaram" mais do que o previsto como também novos indivíduos apareceram. "Recruta" é o nome dado às árvores que, entre um censo e outro, atingiram 10 centímetros de diâmetro e, com isso, entraram na contagem. O fenômeno - chamado pelos pesquisadores de "efeito de fertilização atmosférica de CO2"- demonstra que a vegetação tem se beneficiado da fartura de carbono disponível, realizando fotossíntese mais eficiente. Por outro lado, a mortalidade nas mesmas áreas também cresceu.

Com o aumento da biomassa, cedo ou tarde esse material morrerá, irá se decompor, aumentando ainda mais os estoques de carbono. "Isso significa que nos próximos vinte ou trinta anos os solos receberão um gigantesco fluxo extra, o que não ocorreu nas décadas passadas", afirma Quesada. "Mas é preciso prestar muita atenção", completa o pesquisador. "Hoje, a floresta é um sistema que funciona como um dreno de carbono; porém, trata-se de um sistema delicado, complexo e não definitivo. Pode mudar a qualquer momento."
http://planetasustentavel.abril.com.br

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