segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Segunda divisão da ONU


Moradores de um vilarejo na separatista República da Somalilândia levam cabras até um barco para que sejam exportadas. Centenas de quilômetros separam essa antiga colônia britânica da turbulenta Somália meridional. Sem reconhecimento internacional e com pouca ajuda externa, os líderes da Somalilândia estabeleceram um governo operacional e estável.
Foto de Pascal Maitre
National Geographic Brasil



Segunda divisão da ONU
Toda a Terra está dividida entre os 192 membros da ONU. Toda? Não! Vários povos irredutíveis fizeram suas próprias nações em território alheio. Eles têm bandeira, hino... Só falta entrarem para o mapa

Nas ruas de Hargésia, capital da Somalilândia, mulheres trabalham trocando notas de dólar e euro por maços de xelim somalilandês ao lado de carrinhos de sorvete que aplacam os mais de 40 °C, lan houses e consultórios dentários. Já o governo, eleito democraticamente, consegue equilibrar a lei islâmica, costumes tribais e a tradição constitucional do Ocidente. E ele funciona tão bem que já conseguiu até quebrar algumas células da Al Qaeda, que faz a festa no irmão do sul, a Somália. O único problema é que a Somalilândia não existe.

Há muitos lugares como a Somalilândia. São os quase países, que vivem na 2ª divisão das relações internacionais: embora tenham um governo que, bem ou mal, funciona, não conseguem a ascensão para a "série A", onde estão os membros da ONU. Alguns são tão pequenos que você pode ser paciente do próprio ministro da Saúde. Mesmo assim, têm Câmara de Deputados e uma força policial independente.

A Somalilândia e a Transnístria possuem até moeda própria - coisa que mesmo alguns países reconhecidos não têm, como o Equador, o Timor Leste e, mais recentemente, o Zimbábue, que adotaram o dólar. Mas como assim "quase países"?

Bom, se você cercar o seu bairro, começar a ditar as leis ali, recolher impostos e tiver força militar para enfrentar o Exército quando o Brasil retaliar, terá criado um Estado nacional. Mas esse é só o primeiro passo. O outro é ser reconhecido como país pelas nações veteranas. Se isso não acontece, a comunidade internacional vai continuar considerando o seu bairro como parte do Brasil. Nisso você não poderá receber empréstimos de bancos mundiais nem participar de organizações de comércio internacional. É exatamente o que acontece com os países que não têm cadeira na ONU.

A exceção nesse clube é Taiwan. Quando Mao Tsé-tung tomou o poder na China, em 1949, o antigo governo, capitalista, se mudou para Taiwan. Até 1971, o país que não existia (para a ONU) era a China. E Taiwan tinha seu lugar (com o nome de República da China). Mas aí Mao conseguiu o reconhecimento de seu país e tomou a cadeira de Taiwan, que acabou no limbo. Mas um limbo de luxo: a nação é uma grande exportadora de eletrônicos e tem a própria China como parceira comercial. Seja como for, o mapa é mutante mesmo. Países como Alemanha e Itália só viraram nações no final do século 19. Quase todos os da África nasceram nos anos 60 e 70. E não faltam regiões em que uma parcela considerável da população está pronta para declarar independência: o País Basco e a Catalunha, na Espanha; Tibete e Xinjiang, na China; praticamente a Índia inteira... Mas por enquanto os quase países mais notórios são estes 9 aqui.

A SOMÁLIA QUE DÁ CERTO - SOMALILÂNDIA
Um Estado democrático numa região tomada por anarquia e violência. Declarou independência da Somália em 1991.

População - 3,5 milhões (um Uruguai)

Área - 137,6 mil km² (uma Grécia)

Religião - Islã

Moeda - Xelim da Somalilândia (SOS, da sigla em inglês)

Economia - O porto de Berbera, alugado pela Etiópia, e a pecuária rendem um PIB de US$ 800 milhões (1/3 do de Belford Roxo, na Baixada Fluminense)

O DE CIMA SOBE E O DEBAIXO DESCE
Seu governo criou uma democracia e instaurou polícia, escolas, hospitais e moeda própria no meio do país mais caótico do mundo, a Somália. Não que a Somália, embora tenha cadeira na ONU, seja exatamente um país. A última vez que o lugar teve algo parecido com um governo foi há 19 anos, quando a URSS ainda existia. Seu ditador, Siad Barre, tinha transformado o litoral do Chifre da África numa arma socialista contra a Etiópia e o Quênia, ambos pró-EUA. Hoje, a ex-colônia italiana é um picadinho acéfalo e sangrento de feudos defendidos por guerrilheiros tribais. E a capital mundial da pirataria: em 2009, seus piratas atacaram 214 navios. Comparada a isso, a Somalilândia é um respiro de paz. Mas nenhuma nação reconheceu sua independência. Resumindo: enquanto o Estado do país que existe, a Somália, não existe; o Estado do país que não existe, existe. Eita.

PAÍS DE AREIA - REPÚBLICA SAARÁUI
Seu governo é reconhecido por 49 países, a maioria africanos. Enquanto isso, quem manda ali é o Marrocos.

População - 405 mil (uma Florianópolis)

Área - 266 mil km² (um Reino Unido)

Religião - Islã

Moeda - Não tem; usa dinheiro marroquino

Economia - Tem só 0,02% de terra arável. A economia, pastoril, gera US$ 900 milhões de PIB (uma Juazeiro, BA)

CABO DE GUERRA
Este aqui é uma terra de ninguém mesmo. Não está dentro de país nenhum. A semiclandestina República Saaráui ocupa o território do Saara Ocidental, uma ex-colônia espanhola. Em 1976 a Espanha saiu de lá e combinou de dividir as terras entre a Mauritânia e o Marrocos. Só que às vezes você dá a mão e o país quer o braço: o Marrocos entrou e assumiu o controle de dois terços do território. Uma guerrilha de nativos do Saara Ocidental, a Frente Polissário, atacou a parte da Mauritânia e tomou o outro terço. Entre 1980 e 1987 o Marrocos construiu um muro e instalou 5 milhões de minas terrestres separando as duas áreas. O país continua a povoar o Saara Ocidental com marroquinos e não aceita a independência da região. Em 1991 as Nações Unidas prometeram organizar um plebiscito entre as populações dos dois lados para ver se o Saara Ocidental virava um novo país ou era anexado ao Marrocos de vez. Mas o referendo nunca veio.

PRESENTE DE GREGO - CHIPRE DO NORTE
É território de direito do Chipre, mas se declarou independente sob a tutela da Turquia - o único país a reconhecê-lo.

População - 265 mil (uma Volta Redonda, RJ)

Área - 3 335 m² (duas cidades de São Paulo)

Religião - Islã

Moeda - Não tem; usa a lira turca

Economia - 70% do PIB de US$ 3,6 bilhões (equivalente ao de Niterói, RJ) são serviços, incluindo turismo

O DE BAIXO SOBE E O DE CIMA DESCE
Sabe o problema entre israelenses e palestinos? No Chipre é mais ou menos assim, mas entre os cipriotas gregos e os cipriotas turcos. Em 1974, um grupo paramilitar grego tentou dar um golpe de Estado com o objetivo de anexar o Chipre à Grécia. A Turquia reagiu invadindo a parte norte da ilha e fundando um país novo ali, só para cipriotas turcos. Nenhum país reconheceu. Hoje ela banca a economia do lugar. O Chipre tem o aval da ONU para abrir fogo e estender sua soberania para a região. Para evitar isso, a Turquia mantém soldados ali. Uma situação que a comunidade internacional condena. Como resolver? "Com um plebiscito", propôs a ONU. O povo do norte votou "sim" para a unificação. Mas o do Chipre grego, mais rico e membro da União Europeia, preferiu que tudo continuasse como está, que o norte ficasse com as terras deles sem abocanhar impostos do sul. Presente de grego.

TERRA PROMETIDA - PALESTINA
É reconhecida por 94 países, incluindo China e Rússia. Mas a viabilidade de ela conviver em paz com Israel ainda é utopia.

População - 4,3 milhões (uma Irlanda)

Área - 5 970 km² (Cisjordânia) e 365 km² (Faixa de Gaza) - total: um Distrito Federal

Religião - Islã

Moeda - Não tem; usa o dinar jordaniano e o shekel israelense

Economia - Como Gaza e a Cisjordânia são separadas e controlados por Israel, a Palestina tem dificuldades em girar sua economia de US$ 4,6 bilhões (uma Caxias do Sul, RS)

GUERRA DOS MIL ANOS
Para uns, a região que abriga Israel e os territórios palestinos é terra de direito exclusivo do povo árabe, que sempre ocupou a região. Para outros, esse direito é do povo judeu, que sempre ocupou a região. Como não dá para ser as duas coisas ao mesmo tempo, está aí o lugar mais explosivo do mundo. Depois da 2ª Guerra, a ONU propôs partilhar a Palestina, então protetorado britânico, em dois Estados - um judeu e outro árabe. Israel declarou sua independência em 1948. Os países vizinhos declararam guerra. Israel ganhou. E o país assumiu a maior parte do antigo protetorado, com exceção da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Hoje, os palestinos menos radicais querem pelo menos um pedaço da israelense Jerusalém para formar seu país. Os mais querem tirar Israel do mapa. Do outro o lado o radicalismo também cresce... E o Estado palestino nunca aparece.

O NEGÓCIO TÁ RUSSO - REMINISCÊNCIAS DA URSS
Bastardos do império soviético querem tocar a vida sozinhos. São 4 nações menores que uma Grande São Paulo e com PIB somado igual ao de Ouro Preto (US$ 1 bilhão).

TRANSNÍSTRIA
O fim da República Soviética da Moldávia fez com que os 700 mil russos do país (de 3,5 milhões de habitantes) declarassem independência do território que habitavam, a Transnístria - uma faixa de terra industrializada na fronteira com a Ucrânia. Quando o império soviético ruiu, deixou uma unidade de seu Exército na Transnístria. E, com ela, 42 mil peças de armamento - bombas, foguetes, metralhadoras e minas que acabaram contrabandeados. Sua exportação de armas não faz mais tanto barulho, mas o papel estratégico não acabou. Com o plano americano de fazer um escudo antimísseis nas fronteiras da área de influência russa, o presidente transnístrio ofereceu seu território para abrigar mísseis russos. Mas nem a Rússia reconhece o país. E ele continua visto só como parte da Moldávia.

ABKHÁZIA
Quando a Geórgia se separou da URSS, em 1991, regiões que estavam dentro das fronteiras georgianas quiseram caminhar com as próprias pernas. Foi o caso da Abkházia. Seus 216 mil habitantes falam uma língua própria e se identificam mais com a Rússia - até porque o lugar era o resort de Stálin. É reconhecida pelo vizinho gigante e, de gaiato, por Nauru, Nicarágua e Venezuela.

OSSÉTIA DO SUL
Também declarou independência da Geórgia e acabou servindo como um enclave russo ali. O problema é que a Geórgia se tornou aliada dos EUA e, para mostrar força, atacou a Ossétia - o que diminuiria o poder russo na região. Como retaliação, o Kremlin mandou "tropas de paz" para o quase país de 70 mil habitantes e o reconheceu - junto com a Abkházia.

NAGORNO-KARABAKH
Encravado no muçulmano Azerbaidjão, que também foi uma república soviética, esse território povoado por armênios cristãos entrou em guerra com os azerbaidjanos e se autodeclarou independente em 1991. O quebra-pau durou 3 anos. E os nagornianos só não foram esmagados porque contaram com a ajuda da Armênia. Hoje é ela que sustenta Nagorno. A Rússia, que é quem apita por ali, estava interessada no fim do conflito. Então impôs um cessar-fogo na região, deixando-a sob controle dos armênios étnicos. Mas era só o começo do quiproquó: a decisão irritou a Turquia, inimiga da Armênia. Em 1994 os turcos retaliaram em favor do Azerbaidjão impondo um embargo comercial aos armênios. Enquanto isso, Nagorno, com seus 140 mil habitantes, não é reconhecido nem pela amiga Armênia.

ÚLTIMO SUSPIRO DA IUGOSLÁVIA - KOSOVO
A nação encravada em território sérvio declarou independência em 2008 e é reconhecida por 55 países. Mas a Rússia bloqueia sua entrada na ONU.

População - 2,4 milhões (uma Belo Horizonte, MG)

Área - 10 908 km² (meio Sergipe)

Religiões Igreja Ortodoxa

Moeda - Euro

Economia - O PIB é de US$ 3,2 bilhões (uma Foz do Iguaçu, PR). Emigrantes que enviam dinheiro para as famílias e doações internacionais complementam a receita com mais US$ 1 bilhão

PEQUENO DEMAIS PARA OS DOIS
Kosovo é mais uma das nações que formavam a antiga Iugoslávia, junto com Eslovênia, Croácia, Sérvia, Montenegro e Bósnia. Mas não virou um país à parte - ficou como um pedaço da Sérvia. Nos anos 90, um conflito separatista acabou num massacre de civis kosovares. Foi o maior crime de guerra da história recente, que acabou na condenação do ex-presidente iugoslavo, o sérvio Slobodan Milosevic. A Otan atacou a Sérvia em 1999 para conseguir um cessar-fogo. Nisso a ONU assumiu a administração da província. Há dois anos, fundaram a República do Kosovo, que logo ganhou reconhecimento do Ocidente. Mas a Rússia, aliada da Sérvia, usa seu poder de veto no Conselho de Segurança da ONU para bloquear a tentativa de Kosovo de conseguir sua cadeira na organização. E tudo indica que ela vai continuar agindo no tapetão para que os kosovares não saiam nunca da série B.
Revista Superinteressante - 2010

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