quarta-feira, 6 de julho de 2011

O reinado das commodities

Exatos 200 anos após o nascimento da primeira fábrica brasileira, surge a questão — corremos o risco da desindustrialização?
André Lahóz e José Roberto Caetano, da EXAME
Germano Lüders/EXAME.com
Contêineres no porto de Santos: a competição asiática não vai parar tão cedo

Em 1589, quando os portugueses já se embrenhavam pelo interior do Brasil à caça de ouro, o bandeirante Afonso Sardinha e seu filho se interessaram por um local conhecido como Morro de Ipanema, atual Serra de Araçoiaba, em Sorocaba, no interior de São Paulo. As escavações frustraram os sonhos dourados dos exploradores, mas acabaram revelando a presença de minério de ferro. Para explorá-lo, foram construídos os primeiros fornos metalúrgicos de toda a América — e assim o Brasil tornou-se pioneiro no Novo Mundo numa atividade que, com alguma imaginação, poderia ser chamada de industrial. Curiosamente, o mesmo local seria berço, muito tempo depois, da primeira indústria brasileira de verdade, a Fundição Ipanema.

Nascida por decreto de dom João VI em dezembro de 1810 — há exatos 200 anos —, a empresa tinha como sócios a Coroa portuguesa e investidores privados. A criação só foi possível graças a outra decisão do monarca, tomada dois anos antes, liberando a atividade manufatureira no Brasil, até então proscrita. O pontapé inicial à industrialização foi o segundo ato modernizador de dom João após sua chegada ao Rio de Janeiro — o primeiro, mais conhecido, foi a abertura dos portos às nações amigas em 28 de janeiro de 1808.

A Ipanema não sobreviveu ao teste do tempo. Depois de fornecer um pouco de tudo, de panelas e enxadas a engenhos de açúcar e canhões usados na Guerra do Paraguai, fechou as portas em 1895. Dela restou apenas o nome, eternizado na famosa praia que ajudou a batizar. Mas a indústria brasileira teve sorte diferente. Ao longo dos últimos 200 anos — e especialmente após 1950 —, o Brasil construiu um parque industrial respeitável, atualmente o décimo maior do mundo. Hoje, fazemos de pregos e chinelos a aviões e turbinas elétricas. Nas últimas semanas, porém, tem surgido com frequência preocupante no debate nacional o reverso da moeda — o medo, agora, é o da “desindustrialização”, um tema normalmente associado a economias em estágio de desenvolvimento bem superior.

Economistas de diferentes correntes têm mostrado um crescente incômodo com as dificuldades encontradas por produtores de manufaturas em competir no mercado externo, num momento em que o mundo se mostra extremamente receptivo às commodities produzidas pelo Brasil. Na mão oposta, vê-se um crescimento relevante de importações industriais chegando ao país. “O cenário externo é claro: enquanto China e Índia exportam cada vez mais manufaturas, o Brasil perde terreno e está se voltando para a venda de bens primários”, diz Maurício Mesquita Moreira, principal economista de integração comercial do Banco Interamericano de Desenvolvimento. “É realista esperar que o Brasil possa se consolidar como um grande exportador industrial, seguindo o exemplo dos chineses de hoje e dos coreanos do passado? Acho que não.”

O fortalecimento do real é um dado central nesse debate. A valorização da moeda responde, em parte, a fenômenos que extravasam nossas fronteiras, o que complica o cenário. Por um lado, o mundo vive um excesso de liquidez. Com algumas das principais economias do mundo em crise, o dinheiro flui com força para os países emergentes mais pujantes — e o Brasil é um dos principais. Isso se soma a outro movimento. A primeira década do novo século rompeu com uma tendência histórica de queda de preços de muitos dos produtos exportados pelo Brasil. Com uma fome insaciável de recursos naturais, China e Índia mudaram a relação de preços do mundo, favorecendo os produtores de commodities como soja, carne, ferro, aço, açúcar e celulose.

Todo o pensamento econômico latinoamericano partiu da premissa de que os preços das commodities perderiam força em relação aos industriais — daí a premência em industrializar, mesmo que a golpes de subsídio estatal e tarifas proibitivas de importação. O momento atual violou essa premissa. “Hoje, o mundo que cresce — a Ásia — puxa o preço dos produtos primários para cima”, diz o economista Samuel Pessoa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas. “E o mundo que não cresce — os países ricos — joga o preço dos produtos manufaturados para baixo.”

Em teoria, trata-se de uma ótima notícia para países ricos em recursos naturais. O bom momento, porém, esconde dilemas complexos. A renda extra dos brasileiros gera uma sensação boa na população, que tem mais dinheiro para ir às compras. Mas a demanda adicional pressiona o preço de muitas coisas, como os serviços. O resultado é que o Brasil vai ficando mais caro. Na comparação internacional, o Brasil já é apontado como um dos países mais caros — é o segundo, por exemplo, no famoso índice Big Mac, elaborado pela revista inglesa The Economist, que compara o preço do sanduíche em 120 países. O pesadelo evocado por alguns é conhecido na literatura econômica pelo nome de doença holandesa. RefeRefere-se a um momento histórico específico, a Holanda dos anos 70, enriquecida pela descoberta de gás natural no Mar do Norte. Mas serve para ilustrar um fenômeno mais amplo, quando países se veem diante de um súbito acúmulo de capital graças à venda de alguma riqueza natural.

Positivo no curto prazo, o ingresso de moeda forte pode virar doença se desestimular atividades produtivas devido à valorização cambial que se segue. Com muito dinheiro no caixa, passa a ser mais confortável comprar tudo de fora — e o preço no longo prazo é um gradual declínio econômico e uma dependência de recursos que não duram para sempre. Historicamente, não faltam exemplos de países nos quais os recursos naturais abundantes se mostraram mais uma maldição do que uma bênção. A cidade boliviana de Potosí, com 200 000 habitantes no século 17, chegou a ser uma das maiores do mundo graças às minas de prata que fizeram fama na Europa e, segundo alguns historiadores, ajudaram a financiar a Revolução Industrial. Hoje é uma das áreas mais miseráveis de um dos mais pobres países da América Latina. Impressionado com a abundância efêmera dos metais na Espanha colonial, o escritor Miguel de Cervantes escreveu na época que os países não podiam ficar dependentes de riquezas passageiras. O filósofo político francês Montesquieu escreveu no século 18 que as riquezas naturais favoreciam a “indolência” da população — o que minaria o verdadeiro desenvolvimento.

O Brasil, felizmente, encontra-se em estágio muito mais avançado. Por isso, os temores de doença holandesa parecem fora de lugar. É o que sugere um extenso estudo elaborado pelo Banco Mundial sobre a influência de recursos naturais na América Latina. Na comparação com outros países, o Brasil se beneficia por contar com uma ampla gama de produtos primários, a maioria dos quais com um ganho recorrente de tecnologia na produção — é o que explica o incrível sucesso brasileiro no agronegócio. Também é difícil afirmar — pelo menos com as evidências de hoje — que há um processo generalizado de desindustrialização. A indústria responde, é verdade, por uma fatia muito menor do PIB na comparação com os anos 80. Mas o grande ajuste se deu após a abertura econômica promovida nos anos 90, quando a participação industrial caiu de 46% do PIB para 26%, e desde então não houve grandes mudanças. “Tínhamos uma economia com padrão soviético”, diz Samuel Pessoa. Com a competição externa, houve uma saudável depuração. O que ainda não está claro é qual a intensidade do movimento mais recente.

Os indícios são de dificuldades crescentes em áreas específicas da indústria. A de bens de capital é um dos setores que mais vêm sofrendo com a competição asiática. “Não há como brigar com os chineses, o jeito é unir-se a eles”, diz Marcelo Cruañes Filho, de 30 anos, diretor da Kone Máquinas Industriais, de Limeira, no interior paulista, e representante da quarta geração de uma família ligada à produção de máquinas no Brasil. Até 2003, a Kone só vendia o que produzia em seus próprios galpões. A participação dos produtos importados foi aumentando gradualmente e hoje representa 70% das cerca de 200 máquinas vendidas por mês. O tempo dirá se a empresa irá conseguir manter os 30% de produção local. Química, eletroeletrônica, automóveis, autopeças, têxtil e calçados são outros setores que têm perdido parte de sua capacidade de produção, substituída por importados. Eles respondem pela maior parte do déficit da balança comercial de manufaturados, que chegou a 26 bilhões de dólares nos nove primeiros meses do ano — revertendo o superávit de 22 bilhões em 2005.

Não é simples o cenário que se desenha, mas é com ele que a presidente Dilma Rousseff e sua equipe terão de lidar. Em jogo está a própria vocação do Brasil. Seremos um país cada vez mais focado em produtos primários? Muito provavelmente, sim, pois aí residem muitas de nossas vantagens. Segundo estimativas, a produção agrícola poderá dobrar nos próximos 15 anos. Um crescimento semelhante se vislumbra para muitos minérios, como o de ferro. E há, claro, a perspectiva de um salto formidável na produção de petróleo. Por isso, seria recomendável aproveitar da melhor maneira esse fato — por exemplo, investindo pesadamente em tecnologia para incorporar valor à produção nacional. O sucesso na área de commodities, afinal, não é sinônimo de perda da indústria. A história dos Estados Unidos, a maior economia do planeta, mostra isso.

Tudo vai depender do que fizermos para fortalecê-la, melhorando as condições gerais de competitividade do país. “Enquanto perdemos tempo falando da doença holandesa, deixamos de cuidar da doença brasileira”, diz o economista Paulo Rabello de Castro, da RC Consultores. Ele se refere a uma combinação perversa de governo inchado e caro com infraestrutura débil e burocracia caótica. Num mundo complexo e em franca transformação, enfrentar seriamente uma agenda modernizadora seria o melhor antídoto em favor das empresas brasileiras — de todos os setores. 01/12/2010

Revista Exame

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