domingo, 17 de julho de 2011

O muro que dividiu o século


Denis Russo Burgierman

O jovem operário Peter Fechter, 18 anos, sabia que era proibido pular o muro que separava Berlim Ocidental de Berlim Oriental. Sabia também que o governo de seu país — a Alemanha Oriental — estava empenhado em evitar que milhares de emigrantes continuassem deixando o país todos os dias em busca de salários melhores e de mais liberdade do outro lado. Mas certamente não calculou direito o risco de afrontar as regras. Era o dia 17 de agosto de 1962. Fechter ultrapassou as cercas de arame farpado e se aproximou do paredão para pulá-lo.
O que se seguiu — uma saraivada de balas, 24 das quais cravadas no corpo do rapaz — marcou profundamente a história deste século. Fechter se tornou a primeira das mais de 800 vítimas do Muro de Berlim. Sangrou por quase 1 hora, até morrer. Nenhum dos soldados autores dos disparos ousou aproximar-se. Queriam que servisse de exemplo. Aquela fronteira era para valer.
Um ano antes, em 13 de agosto de 1961, ela fora levantada literalmente da noite para o dia. Não separava só a Alemanha Oriental da Ocidental. Até 9 de novembro de 1989 cortou o mundo em dois. De um lado, um bloco sob a influência capitalista dos Estados Unidos; do outro, os países comunistas liderados pela União Soviética.
Ambas as superpotências consolidaram-se em 1945 com a vitória na Segunda Guerra Mundial sobre a Alemanha. Mas a história da fronteira berlinense é bem mais antiga. Começou em 1918, no fim da Primeira Guerra, quando a União Soviética já adotara o comunismo; continuou com a Guerra Fria, o confronto permanente, embora não consumado, entre comunismo e capitalismo; e foi até 1989, quando finalmente caiu, sob os gritos de "viva!" da população. Símbolo de uma era, seus últimos nacos hoje são disputados em leilões. Custam milhares de dólares. Grupos de artistas também lutam para manter de pé os poucos trechos que não caíram. Claro, trata-se de uma ruína preciosa: conta, como nenhuma outra obra humana, a história tumultuada do século que está por terminar.

drusso@abril.com.br
O Muro de Berlim, com 155 quilômetros de extensão, rodeava toda a parte ocidental da cidade. Media 3 metros de altura e era vigiado do alto de 302 torres por 14 000 soldados. Cruzava um rio, dois lagos, quatro linhas de metrô e cinco trilhos de trem.
Um mundo separado do outro
Para ser bem preciso mesmo, é necessário estabelecer o início da história do Muro de Berlim em 1918, quando a capital alemã era ainda uma só, à mercê dos bombardeios ingleses. A Primeira Guerra Mundial, que deixou a Alemanha destruída e sedenta de vingança, estava no fim, a União Soviética já era comunista e os Estados Unidos temiam sua expansão.
Em 1933, um atentado terrorista até hoje não esclarecido incendiou o prédio do Parlamento alemão — o Reichstag —, que fica muito próximo da linha onde seria construída a fronteira de tijolos. Foi o pretexto que o primeiro-ministro Adolf Hitler esperava para se tornar um ditador de verdade.

Tiro pela culatra
Cinco anos depois, ele começa a invadir os países vizinhos da Alemanha, pensando em construir seu próprio império. Mesmo com as selvagerias que praticou, perdeu a guerra e acabou suicidando-se em 1945, depois de passar meses escondido em um buraco no chão. Bem abaixo de outro local perto de onde passaria o muro.
O ditador sonhava fazer de Berlim a capital do mundo, mas o tiro saiu pela culatra. A Segunda Guerra transformou Washington e Moscou nos centros de um planeta polarizado. A Berlim coube o menos nobre e mais terrível dos papéis — o de fronteira.
No fim da guerra, quase toda a Europa estava destruída. Estados Unidos e União Soviética se apressaram em recolher os cacos. A Alemanha, derrotada, foi fatiada entre os aliados. Berlim também. "O plano era transformar a Alemanha em um país agrário para sempre", diz Christian Lohbauer, especialista em política alemã da Universidade de São Paulo (USP).
Só que, temendo o crescimento da influência soviética, que já se espalhava por todo o leste da Europa, os americanos mudaram de tática. Começaram a dar dinheiro para os germânicos, ex-inimigos, reconstruírem seu país. "A idéia era fortalecer os países sob sua influência", diz a cientista política Cristina Soreanu Pecequilo, da USP. "Tentavam provar que ser capitalista era mais vantajoso que ser socialista." Deu resultado. Milhões de alemães da área soviética espiavam a prosperidade por cima do muro, então invisível, e corriam para o outro lado.

Saída para o oeste
Para frear o êxodo, em 1949 os alemães do Leste transformaram a área sob influência soviética em um país, a Alemanha Oriental, e fecharam suas fronteiras. Berlim Ocidental ficou ilhada na nova nação. Só que os alemães orientais, descontentes, continuaram cruzando a fronteira em massa.
A solução encontrada para estancar a sangria foi prosaica e, ao mesmo tempo, apavorante. Construiu-se um muro de 3 metros de altura, fatiando praças em duas, deslocando túmulos de cemitérios, cortando lagos, interditando avenidas movimentadas, separando famílias e impedindo que trabalhadores chegassem aos seus empregos. Em 1967, o governo comunista recuou uns 100 metros em seu território e fez um segundo muro, "por segurança". Qualquer um que entrasse nessa "terra de ninguém" entre os muros era fuzilado sem direito a explicações.
Ele era "maciço, como se tivesse sido construído para sempre", escreveu o escritor alemão Günter Grass, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura deste ano. Mesmo assim, não resistiu ao assoprão do premiê russo Mikhail Gorbatchev, que, no final de 1988, liberou os países aliados para decidirem seu próprio destino. Em setembro de 1989, a Hungria acatou as recomendações do líder soviético e abriu a fronteira com a Áustria. Na mesma hora, centenas de milhares de alemães orientais se precipitaram para a Hungria para fugir para o Ocidente por lá. De repente, a muralha indevassável tornara-se inútil. Não houve outro remédio senão derrubá-la. E isso foi feito. Sem guerra nem sangue, em meio à festa dos berlinenses novamente reunidos.
O muro caiu! Salve o muro!
Imagine uma parede rasgando a praça central de sua cidade. Pense na avenida mais movimentada deixada às moscas e aos soldados, a fronteira entre dois Estados inimigos passando entre vizinhos. Por 38 anos, os cidadãos de Berlim conviveram com essa situação. Uma década não bastou para cicatrizar a ferida. "Até hoje, existe um muro psicológico", atesta Lohbauer. "São povos diferentes, criados sob ideologias distintas. Até os sotaques são fáceis de notar."
Uma das vozes mais ácidas que se levantaram contra a festejada união das Alemanhas foi a do ex-alemão oriental Grass, um dos mais célebres inimigos do muro. Ele acusou os ocidentais de terem exultado com a queda porque queriam comprar as empresas estatais comunistas a preço de banana.
Como souvenir de luxo, o Muro de Berlim continua um bom símbolo dessa nova ordem que surgiu quando as picaretas o pulverizaram. Seus pedaços, já no Natal de 1989, eram vendidos por 20 dólares na Bloomingdale’s, em Nova York, uma espécie de Politburo (comitê central, em russo) do consumismo. E a região por onde ele passava tornou-se a área mais valorizada de Berlim. A especulação imobilária varreu do mapa quase toda a muralha. Os mesmos artistas e ambientalistas que lutaram pela queda brigam para manter em pé os pedaços que restam — pouco mais de 1 quilômetro, ao todo, forrado de grafites. Querem, agora, preservar a memória histórica. O garoto Peter Fechter hoje teria 55 anos. O que será que ele pensaria disso tudo? Um Campo Vasto, Günter Grass, Record, Rio de Janeiro, 1998.

Berlim, um Muro na Cara, Roberto Menna Barreto, Summus, São Paulo, 1988.
Entre 1949 e 1989, Berlim Ocidental ficou isolada dentro da Alemanha Oriental, na fronteira entre capitalismo e comunismo. 1945 - O bolo dividido
Os tanques soviéticos invadem Berlim, derrotam os nazistas e ocupam a sua capital. Como chegaram antes dos outros aliados, os russos escolheram as melhores fatias da cidade. Ficaram com todo o centro velho. Os americanos, franceses e ingleses assumiram depois suas áreas e o país foi oficialmente dividido em dois em 1949 — soviéticos de um lado, franceses, ingleses e americanos do outro. Até 1989, as duas partes da cidade permaneceram sob ocupação militar estrangeira.

1961 - Ninguém passa
O governo da Alemanha Oriental decide construir o muro para brecar a saída dos descontentes com o regime comunista para o outro lado. Entre 1949 e 1961, foram 2 milhões de fugas, o que era muito em um país com 18 milhões de habitantes. Na foto à esquerda, berlinenses orientais fogem pela janela para a parte ocidental da cidade. Acima, um soldado pula o arame farpado, durante a construção do muro, transformando-se no primeiro desertor dos novos tempos.

1962 - Mortes e fugas
O alemão oriental Peter Fechter, 18 anos, é assassinado ao tentar cruzar a barreira (à esquerda). Outros 800 morreriam nos 37 anos seguintes, embora o número oficial de vítimas seja 180. Mas houve quem passasse — num porta-malas, num ultraleve, nadando sob o arame farpado, cavando um túnel (à direita), escondido em materiais de construção transportados por caminhões (acima) ou simplesmente pulando o muro.

1963 - Tribuna
John Kennedy é o primeiro presidente americano a visitar o símbolo da Guerra Fria. Discursou na beirada, para ser ouvido do outro lado, e condenou o comunismo. As duas cidades transformam-se em um centro estratégico para o mundo todo. Berlim infestou-se de espiões. Quem queria saber os rumos da Guerra Fria tinha que bisbilhotar o que acontecia por lá.

1970 - Protestos
Enquanto o lado oriental era cuidadosamente vigiado, no ocidental cresciam os protestos contra a divisão. O muro transformou-se em tela para registrar o descontentamento. Este grafite famoso mostra Leonid Brejnev, então dirigente soviético, beijando Erich Hönecker, o chefe do Partido Comunista alemão que ordenou a construção do Muro de Berlim. Embaixo está escrito "Deus me ajude a sobreviver a esse amor fatal".

1989 - Tijolos abaixo
Após uma alucinante sucessão de surpresas, o muro cai. Em 1987, o presidente americano Ronald Reagan vai até lá e discursa: "Senhor Gorbatchev, derrube este muro". No ano seguinte, o soviético permite que seus aliados abram as fronteiras. Hungria e República Checa são as primeiras a fazê-lo, em meados de 1989. Em 9 de novembro, o governo oriental libera a travessia entre as duas Berlins. No dia seguinte, a população espontaneamente demole o monumento opressor com picaretas e martelos. Kurfurstendamm
Como o velho centro da cidade ficou no lado oriental, os ocidentais tiveram que criar um novo. Ironicamente, ele surgiu lá na periferia, ao lado do antigo zoológico. A prosperidade de Berlim Ocidental fez com que esse segundo centro se tornasse mais movimentado que o primeiro.

Reichstag
O prédio do Parlamento, queimado em 1933, foi abandonado na área de segurança vizinha ao muro, aonde ninguém podia ir. Até hoje conserva as pichações dos soldados russos que tomaram a cidade em 1945. Em setembro de 1999, reformado, sediou a primeira sessão do novo Congresso.

Ponte Glienicke
Conhecida como a Ponte dos Espiões, era por onde ocidentais e orientais trocavam prisioneiros, geralmente agentes secretos. Por dentro da água passava o arame farpado e o muro prosseguia pelas margens.

Área de risco
Os dois muros eram separados por 100 metros em média. Entre eles havia arame farpado, minas, metralhadoras acionadas por células fotoelétricas, pedaços de trilhos de trem para obstruir a passagem de carros e cães treinados.

Potsdamer Platz
Esta praça era o centro econômico da antiga capital. Foi destruída nos tempos do muro, tornando-se "terra de ninguém" entre as duas Berlins. Restaurada, ela agora abriga a sede de algumas das mais importantes empresas alemãs
Revista Superinteressante

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