sábado, 20 de novembro de 2010

O narcotráfico na estratégia imperial

Os EUA na América Latina / México, Colômbia e Peru

O narcotráfico na estratégia imperial

A “Iniciativa Mérida”, firmada com o México em 2008, as bases na Colômbia e a IV Frota estacionada no Peru não são projetos isolados, mas parte de uma arquitetura de segurança que se enquadra no que Thomas Shannon, membro da administração Bush, chamava de um “novo paradigma de cooperação regional”

por Adriana Rossi

A decisão colombiana de franquear aos Estados Unidos novas bases militares em seu território, sob o argumento da luta contra o narcotráfico e a insurgência, agitou as águas políticas na América Latina. Causou preocupação e fortes reações entre governos progressistas da União das Nações Sul-Americanas (Unasul).

A V Cúpula de Líderes da América do Norte, realizada entre 9 e 10 de agosto de 2009 em Guadalajara, e da qual participaram o primeiro-ministro do Canadá, Stephen Harper, e os presidentes Barack Obama, dos Estados Unidos, e Felipe Calderón, do México, foi, de certa maneira, decepcionante. O golpe de Estado em Honduras mereceu breve menção, sem muitos gestos significativos, e temas espinhosos e de grande interesse para os mexicanos, como a migração, ficaram para uma próxima vez.1 Apesar disso, Calderón mostrou-se satisfeito com o forte respaldo recebido de Obama sobre um problema que o incomoda muito e que, do seu ponto de vista, coloca o México sob o risco de ser considerado um “Estado fracassado”2: o combate ao narcotráfico.

Calderón, que mantém com as Forças Armadas de seu país uma relação especial de favoritismo, reforçou os efetivos militares desde o início de seu mandato e, em 2007, criou uma força especial do exército sob a sua supervisão3. Também pensou, ou recebeu ajuda para pensar, em um instrumento de maior alcance para reduzir e acabar com a onda de violência: o “Plano México”.

Rebatizada como “Iniciativa Mérida”, para evitar qualquer suspeita e os possíveis e pouco agradáveis paralelismos com o “Plano Colômbia”, essa ideia foi aprovada pelo Congresso estadunidense e assinada pelo presidente George W. Bush em 30 de junho de 2008.

Os objetivos da “Iniciativa” enfatizam a otimização das atividades de inteligência, o fortalecimento da coordenação das forças de segurança e de informações entre os dois países signatários e o fornecimento de novas tecnologias, com a finalidade de garantir a ordem pública, impedir o tráfico de drogas e atuar contra o crime organizado e outras ameaças4.

Foram previstos fundos de US$ 1,4 milhão para o triênio 2008-2010. A primeira remessa de US$ 400 milhões para o México, e US$ 60 milhões para os países da América Central e do Caribe, chegou com grande atraso. A crise econômico-financeira e a incerteza das eleições presidenciais estadunidenses impediram que fosse colocado em prática, dentro dos prazos previstos, esse grande plano que ultrapassa as fronteiras mexicanas e envolve toda a região.

Do total do pacote de ajuda, 60% estão destinados a uma grande variedade de programas: combate à corrupção, adoção de mecanismos de transparência, melhoria do sistema judicial e reorganização do temível Centro de Investigação e Segurança Nacional (CISN) mexicano, entre outros. Este último programa prevê a reestruturação dos bancos de dados do CISN e do Instituto Nacional de Migração (INM), que se integrarão à Plataforma México5. O CISN gerenciará todas as informações sobre os agentes a cargo de cada um dos órgãos mexicanos, junto com os Estados Unidos, países da América Central e outros parceiros potenciais na luta contra o crime organizado e pela manutenção da segurança. Com isso, criou-se uma enorme rede de espionagem.

Militarizar a sociedade

A “Iniciativa” não prevê instalação de bases ou presença de tropas estadunidenses. Entretanto, há a suspeita de que Washington possa recorrer, como faz com frequência nos conflitos nos quais interfere, a empresas de segurança privada, bastante atuantes no domínio da inteligência e na implementação de tecnologia de ponta.

De qualquer forma, com ou sem soldados estadunidenses, a “Iniciativa” tem um forte componente militar, além de policial: 30% do orçamento são destinados às Forças Armadas, que ao longo dos anos receberão equipamentos, tais como aviões de patrulha marítima, helicópteros, suprimentos e capacitação6. Elas são consideradas a espinha dorsal do programa, mesmo com a ameaça de se tornarem um problema para o governo mexicano.

No segundo semestre do ano passado, a autorização para o desembolso dos fundos passou a depender de um relatório sobre a situação dos direitos humanos no México, elaborado pelo Departamento de Estado e aprovado pelo Congresso estadunidense. O relatório não foi considerado satisfatório pelo senador democrata Patrick Leahy, presidente da Subcomissão de Operações Externas do Comitê de Apropriações, que analisou o pacote de ajuda ao México. Segundo declarações de Leahy, as conclusões do Departamento de Estado são contraditórias com as denúncias de repetidas violações dos direitos humanos, que incluem tortura e desaparecimentos forçados no cenário da luta contra o narcotráfico. De acordo com documentos oficiais, há 140 denúncias por mês, e as queixas contra a atuação do exército aumentaram 600% desde que Felipe Calderón assumiu a presidência7.

Ainda que esse tenha sido um grave revés para o governante mexicano, durante a Cúpula de Líderes, Obama louvou o desempenho e o compromisso de Calderón em matéria de segurança, afirmando que seus esforços estão na direção certa. O presidente dos Estados Unidos discordou sobre a “inevitabilidade” da violação dos direitos humanos na guerra contra as drogas, mas ao mesmo tempo afirmou que são os narcotraficantes os mais cruéis.

Sem dúvida, esse apoio verbal permite prever que a “Iniciativa” não sofrerá tropeços que a coloquem em perigo8. Além disso, ele foi acompanhado por medidas concretas, como o acordo bilateral assinado em San Antonio, Texas, em 13 de agosto de 2009, entre o procurador-geral mexicano, Eduardo Medina Mora e a secretária de segurança nacional estadunidense, Janet Reno. O pacto concentra-se nas medidas de controle do fluxo de armas que, a partir dos Estados Unidos, alimentam o muito bem nutrido arsenal dos grandes grupos criminosos9.

O presidente Calderón voltou a respirar graças a esse balão de oxigênio, e imediatamente solidarizou-se com um aliado-chave no continente: o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe.

Um acordo polêmico

No final de agosto último, a Colômbia assinou com os Estados Unidos um acordo mais que polêmico10, que prevê a utilização por tropas estadunidenses, durante dez anos, de sete bases militares espalhadas em território colombiano: Palanquero, no centro do país, Apiay e Malambo (as três da Força Aérea); Baía de Málaga, no Pacífico, a meio caminho entre Equador e Panamá, e Bolívar de Cartagena, no Atlântico (ambas navais); e ainda as instalações terrestres Larandia e Tolemaida. Na verdade, as de Apiay e Larandia já haviam sido utilizadas pelos Estados Unidos11 e há ainda a de Tres Esquinas, em Caquetá – sede do Joint Intelligence Center –, o que elevaria o número de locais para oito.

O objetivo declarado do acordo é o aprofundamento da luta contra o narcotráfico e o terrorismo, supostamente dentro da Colômbia. Não obstante às reiteradas afirmações, por parte das autoridades colombianas, de que não abrirão mão da soberania, de que as decisões sobre os agentes nas fronteiras serão tomadas conjuntamente pelos dois países e de que o comando das bases permanecerá em mãos colombianas, a região reagiu com estardalhaço ao anúncio. Existe a suspeita de que, a partir dessas bases, estariam previstas operações fora do território colombiano e sobre as quais o país sul-americano não teria a menor ingerência.

Vale lembrar que, em 2008, o Equador já havia sofrido uma incursão militar da Colômbia – por conta disso, aliás, o presidente Rafael Correa decidiu, em 2009, não renovar a permissão para os EUA utilizarem a base de Manta, em território equatoriano12. A agressão levou a uma ruptura nas relações diplomáticas entre os dois países. Nesse interím, o presidente Correa foi acusado pela Colômbia de ter recebido financiamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) para sua campanha eleitoral. A denúncia baseava-se num vídeo de origem duvidosa. Por sua vez, Hugo Chávez foi alvo de acusações relativas a armamento supostamente fornecido aos guerrilheiros, a partir da descoberta de lança-foguetes vendidos pela Suécia para o governo venezuelano na década de 1980. Tanto o Equador como a Venezuela veem a presença militar estadunidense na região como uma ameaça. O clima beligerante gerado por acusações cujos fundamentos suscitam mais que estranheza, nada mais faz que confirmar esta percepção.

Enquanto isso, o Brasil, cuja possibilidade de conflito reside na penetração de uma potência estrangeira na Amazônia, assiste à materialização dos seus piores receios. Uma das bases colombianas, a de Palanquero, provoca os principais temores. De acordo com um documento de planejamento do Comando de Mobilidade Aérea (AMC), o Comando Sul-estadunidense pretenderia, a partir de Palanquero, exercer o controle de quase metade do continente. Palanquero disporia do C-17, uma aeronave que pode cobrir toda a área sem reabastecer. Somente o Cabo Horn, na Terra do Fogo chilena, estaria fora do alcance do dispositivo13.

Segurança blindada

Na III Sessão Ordinária de Chefes de Estado da União Sul-Americana (Unasul), realizada em Quito, em 10 de agosto de 2009, o tema ocupou muito espaço, apesar de o presidente colombiano, Álvaro Uribe, ter optado por fazer uma turnê por sete países da região para tentar explicar o âmbito do acordo bilateral com os Estados Unidos. Apesar da recomendação de não abordar a questão, pela falta de uma posição consensual entre os chefes de Estado, ela não pôde ser evitada. Transgressor, como é seu estilo, Hugo Chávez colocou-a em discussão e, com a afirmação de que “sopram os ventos da guerra”, forçou, de certa maneira, o acerto de uma reunião a ser realizada em Bariloche, Argentina, em 28 de agosto de 2009. A reunião teria como objetivo obter garantias de Uribe e descontrair um clima que está se tornando cada vez mais tenso. O Brasil, por sua vez, sugeriu um encontro da Unasul, com o próprio presidente Obama.

Apenas duas vozes se levantaram a favor da Colômbia: uma de dentro da Unasul, do presidente peruano, Alan García, que compartilha com Uribe a visão de segurança made in USA e que concedeu aos Estados Unidos permissão para a fixação da sua IV Frota em dois portos – Callao e Salaverry, a 600 quilômetros ao norte de Lima; outra, vinda de fora, a do presidente do México. Numa visita a Bogotá, Calderón respaldou a decisão de Uribe sobre as bases e definiu com o presidente colombiano os termos de uma aliança entre os dois países. Em seguida, anunciou a criação de um “grupo de alto nível em matéria de segurança para enfrentar o crime organizado transnacional”14 e um acordo pelo qual se capacitariam, na Colômbia, 11 mil agentes da polícia federal mexicana no combate aos narcotraficantes e para formar grupos antissequestro.

A “Iniciativa Mérida”, as bases na Colômbia, a IV Frota estacionada no Peru, não são projetos isolados, mas parte de uma arquitetura de segurança que se enquadra no que Thomas Shannon, ex-secretário de Estado Adjunto para Assuntos do Hemisfério Ocidental durante a administração Bush, chamava de um novo paradigma de cooperação regional15. Trata-se de programas integrados que vão além dos âmbitos locais, que criam um sistema interligado e constituem um corredor blindado com múltiplos propósitos, se estendendo desde os Andes até a fronteira sudoeste dos Estados Unidos, com reflexos em todo o continente.

Uma arquitetura concebida para proporcionar segurança contra o narcotráfico, o crime organizado, as gangues da América Central, a insurgência e o terrorismo, que ameaçam a democracia e a governança. O argumento é sólido, mas os resultados concretos pelos meios escolhidos foram, até agora, paupérrimos.

Tendo em mente os antecedentes históricos, não se deve perder de vista que essa arquitetura é, ao mesmo tempo, o braço armado de um projeto hegemônico que busca a expansão de mercados, o controle de territórios, populações e recursos, e para o qual a segurança nunca é pensada em termos de justiça social. Uma arquitetura que se reforça e se expande justamente quando no continente surgem projetos políticos de cunho progressista: novas formas de governar, novas lideranças, novos atores sociais.

Finalmente, trata-se de uma arquitetura, de um modelo que, como tantas vezes foi demonstrado, não hesita em recorrer a qualquer tipo de instrumento – incluindo o terrorismo e até o narcotráfico que diz combater – para debilitar os oponentes, dividir as águas e dificultar os esforços de composição. Inclusive, como ocorreu em abril de 2002 na Venezuela, e recentemente em Honduras, concorrendo com o apoio ou a participação direta em um golpe de Estado. O conceito de segurança se transforma, assim, exatamente em seu oposto.

Esse artigo foi cedido pela edição argentina de Le Monde Diplomatique.
Adriana Rossi é doutora em filosofia, professora na Universidade Nacional de Rosário , na Argentina, e do Mestrado em Uso Indevido de Drogas da Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires. Ex-secretária executiva da Rede Latino-Americana de Redução de Danos (RELARD), é especialista na temática do narcotráfico e das doutrinas militares.

1 Os tópicos discutidos foram os acordos sobre migração, meio ambiente e alterações climáticas, recuperação econômica, gripe A (H1N1), crime organizado e terrorismo.
2 No sentido de países com b aixos níveis de institucionalidade e incapazes de se administrarem por si mesmos.
3 Laura Carlsen, “Um abecedário sobre o Plano México. Relatório especial do Programa das Américas”, 28/7/08, www.ircamericas.org4 Câmara dos Deputados, “Iniciativa Mérida. Compêndio”, Cidade do México, junho de 2008.
5 A Plataforma México é o sistema nacional de segurança para onde conflui a informação de todos os órgãos de ordem interna.
6 Vale ressaltar que os fundos para o equipamento nunca chegarão ao México, uma vez que irão diretamente para as contas bancárias das fornecedoras: as indústrias bélicas estadunidenses.
7 “Congressista dos Estados Unidos bloqueia US$ 100 milhões da Iniciativa Mérida”, 5/8/09, www.alertaperiodista.com.mx8 Chegou-se inclusive a cogitar uma possível extensão do acordo por parte do subsecretário de Segurança Interna para Assuntos Internacionais e Fronteiriços, Alan Bersin, “Os Estados Unidos poderiam expandir a Iniciativa Mérida”, 11/8/09, www.elreporterodelacomunidad.com
9 Ver Anne Vigna, “Viagem ao coração de Sinaloa,” Le Monde diplomatique, edição Cone Sul, Buenos Aires, novembro de 2008.
10 O acordo foi selado em 14 de agosto; presume-se que a assinatura se deu em duas semanas.
11 Todavia, ainda não está claro o número de militares que poderiam chegar à Colômbia. Supõe-se que não poderiam ser mais de 800, e os contratistas mais de 600, conforme acordos anteriores firmados pelos dois países.
12 A. Rossi, “Adeus à base de Manta no Equador?”, Le Monde diplomatique, edição Cone Sul, junho de 2008.
13 John Lindsay-Poland, “Uma nova base militar na Colômbia ampliaria o alcance do Pentágono através da América Latina”, www.ircamerica.org14 “México e Colômbia criam grupo de segurança de alto nível”, Notimex, 13/8/09.
15 Thomas A. Shannon, “Iniciativa Mérida. Depoimento à Comissão de Assuntos Externos da Câmara de Representantes dos Estados Unidos”, Washington, 14/11/07.
Le Monde Diplomatique Brasil

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