quinta-feira, 8 de julho de 2010

Bem-vindo à África


COPA DO MUNDO

Bem-vindo à África

Ansiosos por sediarem o primeiro mundial do continente, os sul-africanos convivem também com um temor de que os jogos sejam ofuscados pelos problemas políticos locais. Os dirigentes do país são incapazes de lidar com as demandas domésticas, e uma nova onda de violência é esperada para depois do torneio

por Patrick Bond

No começo de março, durante um comício na cidade litorânea de Durban, baluarte eleitoral do presidente Jacob Zuma, o líder do terceiro maior partido político da África do Sul foi totalmente franco: Mosioua Lekota [ex-presidente do Congresso Nacional Africano (CNA) antes de tornar-se um dissidente, em 2007] acusou Zuma de transformar o país em “alvo internacional de piadas, com mais de uma pessoa vendo os sul-africanos como palhaços internacionais”. Na semana anterior, Zuma havia sido ridicularizado pela imprensa britânica durante sua visita oficial a Londres, em parte devido a suas fraquezas sexuais pessoais1, mas também por ter defendido vigorosamente Robert Mugabe2, exigindo que as sanções financeiras e as limitações de viagens contra o autoritário líder do Zimbábue e outros 200 seguidores fossem revistas.


Além disso, a África do Sul sofre com a preocupação de que os jogos da Copa do Mundo de futebol, que começam em 11 de junho, sejam ofuscados pelas querelas políticas locais entre os três “círculos” que cercam Zuma: os legalistas étnicos de Durban e da província de KwaZulu-Natal; a burguesia negra alinhada com Zuma (que apoia a ascensão das elites aspirantes da controversa Liga Jovem da CNA); e, por fim, os sindicalistas de centro-esquerda e o núcleo do Partido Comunista sul-africano, que exigem rápidas mudanças em relação à política econômica e ao desenvolvimento liberal herdado. Enquanto isso, protestos sociais insurgentes através do país continuam a provocar revolta, principalmente com relação à falta de serviços básicos (água, eletricidade, habitação, educação e saúde). Quatro grupos comunitários que têm graves queixas contra as prefeituras ameaçam fazer manifestações durante as cerimônias de abertura do torneio.


Se os dirigentes do país são incapazes de lidar com as intensas demandas domésticas, não é de se admirar que Zuma mal tenha mencionado a política externa em seu discurso sobre o estado do país – em contraste com seu predecessor, Thabo Mbeki, que, de acordo com a opinião geral, passava tempo demais viajando. A corrupta CNA foi sacudida, em dezembro de 2007, quando Lekota – então ministro da Defesa – e Mbeki foram expulsos da liderança do partido. Dez meses depois, Mbeki foi destituído da presidência pela CNA e Lekota pediu demissão, juntamente com um pequeno grupo de políticos depostos.


Nesse ínterim, assuntos internacionais de parte do Zimbábue desapareceram das telas de radares de Pretória. Nos três encontros do G-20 em 2008 e 2009 – em Washington, Londres e Pittsburgh –, a África do Sul manteve silêncio (e o mesmo acontecerá em junho, nos arredores de Toronto). Zuma assinou o controverso Acordo de Copenhague em dezembro de 2009, ainda que, para a maioria de seus eleitores, esse tratado aponte para um desastre. A ameaça de ruína da economia e do meio ambiente mundiais seria uma ótima oportunidade para reviver o idealismo sul-africano, que será deixado de lado pela mesma razão que, basicamente, atrapalhou Mbeki: as alianças entre Pretória e as grandes corporações.

Antes de 2007, a crítica generalizada à política externa de Mbeki era a falta de importância atribuída aos direitos humanos, devido a negociações com países do Leste Asiático, por meio das quais a CNA levantou fundos, abrindo mão de seus princípios morais. Com um presente de 25 milhões de dólares, Taiwan comprou alguns anos extras de reconhecimento oficial, contra meros 10 milhões de dólares oferecidos por Pequim. Depois de algum tempo, os cálculos mudaram, e a China conseguiu de Pretória a expulsão oficial de Taiwan. Da mesma forma, Hadji Suharto, o corrupto ditador da Indonésia, ofereceu a Nelson Mandela 25 milhões de dólares para a campanha da eleição de 1994 – quando ele conseguiu 65% dos votos na primeira eleição democrática – e, em retribuição, Mandela o condecorou com a Medalha do Cabo da Boa Esperança, em 1997, poucas semanas antes da derrubada de Suharto por uma revolta popular. Tais manchas, na versão definida por Mandela, de uma política externa baseada em direitos humanos não são nada raras. Em meados de 1994, Mandela reconheceu a Junta Militar de Mianmar como governo legítimo; em 1998, permitiu que Lesoto fosse invadido, sob pretexto de um golpe (na verdade, para proteger as reservas de água de Joannesburgo), e vendeu armas a regimes repressivos.


Ao mesmo tempo, pressões internacionais se acumulavam sobre o governo do pós-apartheid3. De 1990 a 1994, a transição da separação de raças para a de classes podia ser notada pelas dezenas de “missões de reconhecimento” em todas as principais áreas setoriais, quando a CNA fustigava seus aliados mais radicais do Movimento Democrático das Massas, forçando-os a cooperar em vez de confrontar.


Mesmo antes da liberação, um acordo de outubro de 1993 para pagamento de dívidas do apartheid – 25 bilhões de dólares em empréstimos externos de bancos comerciais e um tanto a mais internamente – impediu que o governo subsequente da CNA cumprisse metas de despesas sociais. Uma constituição interina de novembro daquele ano assegurou os direitos de propriedade e um Banco Central independente (de tendência favorável aos banqueiros). O Fundo Monetário Internacional (FMI) tinha definido o cenário para outras políticas econômicas neoliberais – por exemplo, cortes nas despesas e salários do setor público – como condição para um empréstimo de 850 milhões de dólares em dezembro de 1993, e o gerente do Fundo, Michel Camdessus, forçou inclusive Mandela a renomear o ministro das Finanças e o governador do Banco Central da época do apartheid, quando a CNA tomou posse, em maio de 1994. O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, substituído em seguida pela OMC, a Organização Mundial do Comércio) atingiu fortemente a África do Sul, quando o rápido declínio das barreiras de proteção da indústria reverteu os ganhos previstos da liberação para os trabalhadores.


No começo de 1995, a dissolução do sistema duplo de controle do câmbio (um ‘rand financeiro’ usado para deter a fuga de capitais internacionais durante a década anterior) e o incentivo para investimentos no mercado de valores pelas finanças internacionais significaram, em um primeiro momento, uma forte entrada de capitais e, posteriormente, nos quinze anos seguintes, dramáticas saídas e quedas da moeda de no mínimo 25%. A primeira dessas fugas, em fevereiro de 1996, seguiu-se a um boato (infundado) de que Mandela estaria doente, o que deixou o presidente e sua equipe tão abalados psicologicamente que eles se livraram do último vestígio de esquerda, o ministro do Programa de Desenvolvimento e Reconstrução, impondo em quatro meses a odiosa agenda neoliberal “Crescimento, emprego e redistribuição”. Dentro do mesmo espírito, o ministro das Finanças, Trevot Manuel, e o ministro do Comércio, Alec Erwin, tentaram fazer reformas pirotécnicas, ainda que inúteis e de pouca importância, em instituições multilaterais.

União africana


A política externa não fez mais do que acomodar a política econômica, deixando os direitos humanos como uma consideração distante e retórica. Mbeki foi dispensado das negociações de paz da Costa do Marfim, acusado de favorecimento do governo e capitais sul-africanos. Por razões similares, tentativas de assegurar a paz na República Democrática do Congo (RDC)4 falharam, causando um dramático fluxo de refugiados. Após uma débil atuação do chanceler Alfred Nzo, a ex-esposa de Zuma, Nkosazana Dlamini-Zuma passou a ocupar o cargo, de 1999 a 2009. Ela foi substituída por Maite Nkoana-Mashabane – com o novo título de ministra das Relações Exteriores e da Cooperação, cuja atuação medíocre só é igualada por suas discretíssimas aparições. De acordo com Tim Hughes, representante do Instituto Sul-Africano de Relações Exteriores (a principal corrente de pensamento do país), o governo de Zuma verá uma “redução do alcance e das ambições diplomáticas da África do Sul”. Hughes argumenta que, apesar de ter “enfrentado o colapso quase fatal do Zimbábue em seu período, Mbeki, o presidente de política externa tecnocrata por excelência, conquistou mais reformas políticas e institucionais no continente africano do que qualquer outro líder. Mbeki deixou o brilhante arcabouço institucional da União Africana (UA)5, mas quão duradouro será esse legado, agora que ele e sua corte de lideranças africanas reformistas, tais como Olusegun Obasanjo (Nigéria), John Kufuor (Gana) e Benjamin Mkapa (Tanzânia) deixaram a cena continental?”


“Os céticos, entretanto, veem a UA como fatalmente atingida não somente por causa do recente papel desempenhado por Muammar Gaddafi (chefe de Estado da Líbia), mas porque ela é um sindicato de ditadores”, para citar um democrata do Zimbábue, Tendai Biti (atual ministro das Finanças do combalido governo de coalizão). A UA também abriga a Nova Sociedade para o Desenvolvimento da África (Nepad), frequentemente considerada como estratégia de gargalo para canalizar ajuda externa e investimentos para aliados. Na reunião de 2007 do Fórum Econômico Mundial, na Cidade do Cabo, Abdoulaye Wade, presidente do Senegal, reconheceu que a Nepad nada havia feito para melhorar a vida dos pobres do continente.


Os pesquisadores do Instituto da África do Norte, Charles Manga Fombad e Zein Kebonang, ressaltam que a partir de 1990 a segunda onda de democratização do continente (tendo sido a primeira a descolonização) atestou um aumento não somente das eleições (embora “a maioria dos pleitos do período pós-1990 tenham sido manchados por fraudes”), mas também de golpes, especialmente no período de 1995 a 2001: “Muitos dos antigos ditadores ainda estão firmemente entrincheirados, enquanto alguns dos novos líderes se juntaram ao ‘clube’ em anos recentes, desenvolvendo maneiras sofisticadas de se perpetuar no poder e usando o slogan da democracia como um disfarce para suas práticas despóticas.”


Um dos favoritos de Washington, Bruxelas e especialmente Paris é o primeiro-ministro etíope Meles Zenawi, presidente da Nepad até esta última ser rebaixada e reconstituída sob a égide da UA, no início de 2010. Ele conspirou com George W. Bush para invadir a Somália em 2007, com a conivência de Mbeki, logo depois de uma guerra insensata por uma faixa de terra arenosa na fronteira da Eritreia, que matou no mínimo 70 mil combatentes e civis, entre 1988 e 2000. Além disso, ele instalou uma ‘Guantánamo africana’ para reprimir seus próprios cidadãos e ‘vendeu’ a África quando, um pouco antes da Conferência de Copenhague, Nicolas Sarkozy exigiu que Zenawi reduzisse as exigências de pagamento, pelos países industrializados, de dívidas do clima aos africanos, de acordo com a Aliança Pan-africana para a Justiça no Clima.


Nesse cenário, a própria posição da África do Sul não é promissora, em parte devido a falhas de liderança bastante difundidas. A alegação de corrupção que levou Mbeki a destituir Zuma como vice-presidente em 2005 foi investigada, levando a uma companhia francesa de armas, a Thint, como parte de uma enorme negociata com a indústria bélica estrangeira, com evidências de suborno que o próprio Mbeki forçou no orçamento do país, apesar das inúmeras objeções. Ao mesmo tempo, Mbeki protegeu o comissário de polícia e presidente da Interpol, Jackie Selebi, que estava a ponto de ser processado por suas ligações com a máfia sul-africana e internacional. E se a continuação dos eventos no Zimbábue não é suficiente para confirmar o descaso de Pretória com os direitos humanos, a recusa de visto para o Dalai Lama, em 2009, resultou seguramente da pressão que o governo chinês – um grande contribuinte do Congresso Nacional Africano – admite ter exercido sobre os sucessores de Mbeki.

Xenofobia


Mas a pior manifestação de falhas na política externa pós-apartheid assume um formato doméstico: a xenofobia. Foi chocante o fracasso de Pretória em avaliar a ameaça aos imigrantes por parte da classe trabalhadora e pobre. Quando as tendências xenófobas da sociedade foram formalmente levadas ao conhecimento de Mbeki, no final de 2007, ele replicou que isso era “simplesmente inverídico”. A eclosão da violência xenofóbica começou apenas cinco meses mais tarde, em maio de 2008, desalojando centenas de milhares de imigrantes e fazendo mais de 60 mortos.


Se Zuma tiver de enfrentar uma nova onda de violência xenófoba em julho de 2010, após a Copa do Mundo, como está previsto, será que ele estará apto para lidar com suas causas básicas, incluindo o estresse socioeconômico? Uma pesquisa da ‘FutureFact’ perguntou aos sul-africanos se eles concordavam com a seguinte afirmação: “Muitos dos problemas da África do Sul são causados por estrangeiros e imigrantes ilegais.” Em 2006, “67% concordaram, o que equivale a um aumento substancial, se comparado aos dados de poucos anos atrás, quando esse percentual era de 47%”. A FutureFact também pesquisou se os sul-africanos concordavam com afirmação que se segue: “Imigrantes são uma ameaça aos empregos dos sul-africanos e eles não deveriam ser admitidos na África do Sul.” O índice de concordância foi de 69%.

Zuma não está disposto a lidar com os problemas estruturais, tanto da economia regional como mundial, que criam condições para a xenofobia, incluindo o aumento do número de trabalhadores migrantes em desespero de causa, vindos do Zimbábue, Maláui, Moçambique e Zâmbia. Esses países foram parcialmente desindustrializados pela expansão comercial sul-africana no continente, em parte por meio das redes de varejo, que roubam produtos do relativamente imenso setor industrial sul-africano – até mesmo tomates e galinhas – em vez de comprar de fontes locais6. O efeito bumerangue é grave, pois enfraquece a bem organizada classe trabalhadora proletária da África do Sul.

RIQUEZAS NATURAIS


Esses fluxos migratórios representam laços cruciais que limitam a África do Sul. Entretanto, muito mais poderoso é o fluxo do lucro que deixa a região, por meio das corporações multinacionais de mineração, varejo, turismo e construção, sediadas em Joannesburgo, rumo a suas matrizes financeiras ainda mais distantes. Antigamente, eram os brancos sul-africanos que se beneficiavam do saque do apartheid; mas, depois disso, eles levaram sua riqueza para Londres e Melbourne. A miséria e a destruição em áreas como o Zimbábue e a zona fronteiriça oriental da RDC estão relacionadas ao acúmulo de empresas que saqueiam as riquezas naturais dessas áreas. Isso inclui as recentes descobertas de diamantes no Zimbábue oriental, além de ouro e coltan (columbita-tantalita) na RDC. Estas últimas áreas são tão atraentes que asseguraram a notória cooperação da Corporação Anglo-americana com chefes assassinos. A política externa sul-africana foi orientada no sentido de não perturbar essas relações – evitando apoiar forças como os refugiados da RDC e os democratas do Zimbábue, que exigem que o imenso poder de Pretória seja exercido com responsabilidade.


Infelizmente, o papel de Zuma tem sido o de manter essas práticas da dominação sul-africana sem se importar com o custo para a sociedade e para o equilíbrio econômico no longo prazo. Nesse sentido, a política externa de Zuma representa a mesma tendência subimperialista de Mbeki: estabelecer condições nas quais as corporações possam prosperar em seu país. Além da ressurgente xenofobia e da revolta crescente, a maior contradição que Zuma enfrentará é a remessa do lucro dessas mesmas corporações para suas matrizes no exterior. No começo de 2009, o déficit em conta corrente era tão elevado que a revista The Economist taxou a África do Sul como sendo o mercado emergente de maior risco em todo o mundo. Ao enfrentar essas rupturas políticas e econômicas, o governo sul-africano enfrentará uma pressão significativa nos próximos meses, deixando a política externa ao léu.




Patrick Bond é professor na Escola de Estudos do Desenvolvimento, an Universidade de KwaZulu-Natal, na África do Sul


1 O presidente Zuma é polígamo e está envolvido em vários assuntos escandalosos.
2 O presidente Mugabe dirige um regime autoritário, ao qual a comunidade internacional pretende impor uma “transição democrática”.
3 “África do Sul, a alternância ardilosa”, Achille Mbembe, Le Monde Diplomatique Brasil (edição 23, junho de 2009).
4 Depois da morte de Joseph Mobutu, em 1997 – quando o Zaire mudou de nome, para República Democrática do Congo (RDC) –, o país atravessou um longo período de instabilidade política e de guerra civil durante a presidência de Laurent-Desiré Kabila (1997-2001).
5 Em 2002, a União Africana (UA) sucedeu à Organização da Unidade Africana (OUA). Na época, supunha-se que suas instituições preparariam uma unificação continental.
6 “Transição e dependência em Moçambique”, Augusta Conchiglia, Le Monde Diplomatique Brasil (edição 29, dezembro de 2009).

Palavras chave: Africa, Apartheid, Congresso Nacional Africano, Uniao Africana

Le Monde Diplomatique Brasi

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