domingo, 25 de abril de 2010

Ouro líquido

De um dos países mais pobres do planeta, berço da organização terrorista Al Qaeda, o Iêmen, vem uma riqueza preciosa: o mel de Wadi Doan

Texto: Caio Vilela

O apicultor Tarik e suas colmeias em Al Khurayba

A região pela qual se estende o Rub Al Khali (que em árabe quer dizer “quarteirão vazio”), um dos maiores desertos de areia do mundo, é inóspita e agressivamente árida. Ocupa boa parte do sudeste da Península Árabe, avançando pela fronteira de um pequeno país situado já à beira do oceano Índico, num remoto e esquecido ponto do planeta: o Iêmen — mais especificamente na região de Hadramout. É lá que, entre paredões verticais de arenito que formam vales férteis insinuantes, se produz uma verdadeira joia da natureza, única em sua forma e qualidade: o famoso mel de Doan. A região desértica e muito pobre de Hadramout é cortada por alguns poucos rios sazonais em cujas margens florescem, uma ver por ano e por apenas um mês, três variedades de acácias, principal manjar de uma certa abelha endêmica muito especial. É um tipo escuro e bem adaptado ao trabalho sob calor e condições extremas do deserto. Em Wadi Doan (rio Doan em árabe), mais especificamente nas cidades Seef e Al Khurayba, concentram-se apicultores com tradições milenares que dão conta da pequena produção de mel local, chamado de Doani Assal (mel de Doan).

Estima-se que a região de Hadramout produza 35 toneladas de mel por ano, cuja melhor variedade é revendida diversas vezes a preços multiplicados até chegar aos países árabes ricos da região, como Dubai, Arábia Saudita e o Kuwait, onde é tido desde os tempos mais remotos como uma medicina milagrosa. Ironicamente, Wadi Doan, uma das regiões mais pobres do mundo árabe, é a produtora de uma de suas maiores riquezas culturais e mais valorizadas também. Nas festas dos xeques sauditas dos Emirados Árabes, por exemplo, são servidos doces refinados e elaborados a partir do mel do Iêmen. O preço de 1 litro de primeira qualidade pode chegar a US$ 150 no mercado árabe – valor muito diferente do que pede um apicultor de Al Khurayba: US$ 16 pelo mesmo litro. Nas lojas especializadas das grandes cidades, o valor já sobe para US$ 30, chegando a US$ 60 na capital do país, Sanaa. Os valores são altíssimos se comparados ao padrão de vida e renda mensal dos habitantes da região de Hadramout.

Os apicultores vivem na pobreza e na precariedade, como todo mundo na região. Mesmo assim, devotam ao produto grande admiração: “O mel, para nós, é um alimento nobre e uma medicina sagrada. Enquanto no Ocidente o mel é apenas um docinho que custa barato, aqui é como se fosse ouro líquido”, diz Tarik Abdullah, 52 anos, dono de um dos apiários primitivos de Al Khurayba, nos quais se espalham colmeias feitas com vasos de barro.Os apicultores guardam os enxames de abelhas em vasos de cerâmica feitos à mão e mantidos na horizontal. O mel é extraído apenas com a força da gravidade: os vasos têm buracos no fundo e basta colocá-los sobre barris vazios para o mel escorrer naturalmente, manobra que favorece a preservação da integridade das larvas em desenvolvimento e trabalho das abelhas operárias.

Assim como seus pais e avós, Tarik e sua família vivem do mel. Sua rotina em Al Khurayba começa muito cedo, às cinco da manhã, quando reza em família e orienta os filhos sobre as atividades do dia: manutenção das colmeias, limpeza do material, extração, verificação da produção.

É ele, no entanto, quem cuida dos negócios e vai para Al Mukalla a cada duas semanas, num trajeto de quatro horas de ônibus, vender sua produção de aproximadamente 50 litros – uma das maiores do local.Na cidade, faz uma refeição típica (pão com salta, um cozido ralo de vegetais) e reza na mesquita. Como todos os muçulmanos, reza cinco vezes ao dia, onde quer que esteja, até mesmo no campo, se tiver onde lavar as mãos e souber a direção de Meca, procedimentos essenciais ao ritual. No fim da tarde, volta para trabalhar nas colmeias com os quatro filhos, também apicultores. Enquanto isso a esposa, sempre coberta com o véu islâmico, faz trabalhos domésticos, busca água (pouca gente tem água corrente em Al Khurayba), vai ao mercado, limpa a casa e cuida dos animais com suas três filhas. É uma vida difícil e modesta. Todos os produtores trabalham muito e produzem pouquíssimo — ninguém ganha mais do que US$ 150 mensais. Os melhores momentos ocorrem durante os três meses em que o mel especial é produzido. No resto do ano, Tarik colhe o mel de outras flores silvestres, que vale menos, e cria cabras, faz tijolos e outros trabalhos manuais. “Não é muito rentável, mas é digno e é o que sei fazer. Filho meu aprende desde pequeno e assim sairá na frente quando chegar sua vez de vender no mercado”, diz ele.

Revista Horizonte Geográfico

quarta-feira, 21 de abril de 2010

O fantasma de Berlim

"O Muro". Vinte anos após sua queda, pouco resta da construção mais importante da capital alemã. E, mesmo assim, a antiga fronteira em torno da Berlim Ocidental ainda marca muitas biografias
Por Andreas Wenderoth (Texto) e Harf Zimmermann (Fotos Atuais)




A inda estão em pé duas das 302 torres de vigia que antigamente cercavam Berlim Ocidental. Em uma delas está sentado Jürgen Litfin, 69 anos, trajando jaqueta azul, ao lado de um manequim em tamanho natural. O boneco ostenta capacete e está metido em um velho uniforme militar da Alemanha Oriental. Equipado com um binóculo, Litfin espalha mal-estar. Suas lentes passam por placas blindadas, pela fenda produzida por um tiro, e se esvai por sobre o Rio Spree, para os lados da capital alemã que, durante anos, esteve sob o controle dos Estados Unidos, da França, da Inglaterra e de seus aliados. Seu olhar divagante pousa sobre uma misturadora de concreto, o hospital do Exército da extinta Alemanha Ocidental e as casas cor-de-rosa - de aluguel - que, após a virada política de 1989, surgiram ao redor.

"Antigamente", diz ele, "a vista era melhor". Na época da República Democrática Alemã (RDA), dois beliches ficavam ali, no quarto do primeiro andar da torre, guarnecida por uma dúzia de militares da tropa de fronteira. Litfin gosta de contar que às vezes, os soldados ficavam deitados bêbados nos campos, deixando a fronteira totalmente desprotegida. Mais tarde, porém, o governo colocou informantes da "Segurança Nacional" para reprimir o consumo de álcool entre os guardas. Mas essa é outra história.

Infelizmente, no episódio protagonizado pelo próprio berlinense oriental Litfin, os vigias da fronteira - "esses canalhas", nas palavras de Litfin - estavam bem acordados. Soldador de profissão, Litfin precisou do empenho do governo da República Federal da Alemanha (RFA), em 1981, para ser libertado de uma prisão política da Alemanha Democrática. O crime que cometera: tentar fugir da RDA para a RFA. Alguns anos depois da queda do muro, ele resolveu preservar a velha torre de fronteira Kieler Eck da destruição e fundar ali um minimuseu.

É "uma contribuição para a democracia", ele comenta acerca de seu memorial. Mas o lugar é também o seu local de trabalho, cujo objetivo parece ser a manutenção de um luto contínuo. Aqui em cima Jürgen Litfin conta todos os dias, ocasionalmente dúzias de vezes, a história de seu irmão Günter, o primeiro homem morto a tiros pelos guardas da RDA, em agosto de 1961, apenas 11 dias após o muro provisório ter sido levantado.

O irmão imaginara atravessar a nado as águas próximas ao porto Humboldt logo atrás do hospital universitário Charité. Günther, um alfaiate de 24 anos, nada sabia sobre a ordem de tiro, "senão ele não teria ousado", diz Jürgen. Muito menos que isso pudesse acontecer em plena luz do dia. A partir da ponte de ferro, a 40 metros de distância, os policiais o cercaram com uma barreira de fogo, de forma que ele não pudesse nem prosseguir nem voltar. Com um tiro direto na nuca o policial Herbert P. executou o fugitivo. Pelo feito ele recebeu do Ministro do Interior da RDA a condecoração de honra da Polícia Popular, mais um caro relógio e 200 marcos, além de uma medalha de bronze. "Esses patifes", irrita-se Litfin.


Naquela época, o jornal comunista Neues Deutschland (Nova Alemanha) retratou a morte de seu irmão dessa forma: Günter Litfin foi interceptado na tentativa de realizar um "ato criminoso". Com o salto no Spree quis fugir da prisão, momento em que "encontrou a morte".

O ex-prefeito da Berlim Ocidental, Willy Brandt, ordenou a construção de uma lápide em homenagem ao morto, mas ela desapareceu durante as obras nas margens do rio - e ficou perdida por quatro anos, até ser encontrada casualmente por um operário. Valendo-se de doações, Jürgen Litfin restaurou a lápide e providenciou para que a colocassem no lugar original. Entretanto, na luta pela preservação dessa memória, ele se sente abandonado - sobretudo pela prefeitura berlinense e pelos partidos políticos.

"O muro" - 156,4 km de fortificações com alturas que variam entre 3,40 e 4,20 m - possui, por trechos extensos, reforços de cercas de arame farpado, fossos, barreiras antitanque, passarelas que facilitam o controle à distância e torres de vigilância. Até o início dos anos de 1980, cerca de 1.000 cães de guarda circularam por corredores a eles destinados. O muro era considerado a construção de fronteira mais bem organizada do mundo. Ao longo de décadas esse sistema foi ampliado de forma contínua e metódica, o que implicava na implosão das casas existentes junto ao muro - cujos moradores foram obrigados a se mudar.

A derrubada dessas instalações praticamente levou a uma refundação da cidade de Berlim. Os berlinenses ocidentais exultaram em, finalmente, se livrar do muro; e a maioria dos orientais tinha ainda menos interesse em manter o símbolo de seu cativeiro para uma posteridade turística. Em 1990, iniciou-se um rápido desmonte da obra mais marcante da capital alemã. Em um trabalho ágil, marcado pela eficácia alemã, mal o fantasma da fronteira evaporara, os blocos de concreto, as torres de vigilância e as barricadas de controle foram sendo esmigalhados. A maior parte da tarefa foi realizada por ex-guardas - aqueles das tropas de fronteira da RDA. A eles coube dar ao "muro de proteção antifascista" sua nova função: de cascalho de rua. Os fragmentos restantes foram recolhidos por colecionadores do mundo todo, em Berlim conhecidos como os "pica-paus do muro".

Acima de tudo, decorridos 20 anos desde o desmonte, o vazio que ele deixou nos lembra o muro.

Muitas das histórias de fronteira mais conhecidas aconteceram na Bernauer Straße, rua em que as casas da parte sul pertenciam ao lado oriental; já a calçada à sua frente fazia parte do lado ocidental. Em 1963, Gertrud Kielberg teve que recorrer a um binóculo para acompanhar, de um ponto no alto, o enterro de sua mãe no cemitério Elisabeth, no bairro Mitte, situado do outro lado do muro.


E quem ainda se lembra do jovem turco de Kreuzberg que, em 1975, não muito longe da ponte Oberbaumbrücke, desapareceu nas águas escuras do Rio Spree e não pode ser resgatado, pois os guardas de fronteira da RDA, fortemente armados, proibiram os mergulhadores do corpo de bombeiros do lado ocidental de pular no rio?

A maioria das histórias é triste. E algumas verdadeiramente bizarras. Integra esse repertório de coisas estranhas o fato de o muro de Berlim não estar em quase nenhum local, assentado precisamente sobre a linha de fronteira entre as duas Alemanhas. O governo da RDA muitas vezes desistiu - por motivos de custo - de ocupar cada metro a que tinha direito. Especialmente se, para isso, o "muro de proteção antifascista" precisasse de novos ângulos e limites maiores. Esse fato ajudou, na década de 1980, não apenas a juventude disposta a se revoltar no bairro Kreuzberg - que, após os confrontos, podia sempre se refugiar em um terreno extraterritorial na praça Potsdamer. Um hortifrutigranjeiro turco também lucrou com ele.

Osman Kalin já era aposentado há vários anos, quando, um dia, olhando pela janela de sua casa em Bethaniendamm, avistou, à sombra do muro, um terreno baldio. Ele limpou a área, plantou cebolas, alho, repolho, e construiu uma casinha. Como o muro, nesse ponto, era recuado, ele se dedicava à jardinagem, literalmente, em território de Berlim Oriental. Por essa razão, certo dia um agente de fronteira da RDA atravessou uma porta no muro e exigiu a identidade de Kalin. Este retrucou, chamando seu visitante de "filho de um asno". Ambos se insultaram e, no fim da briga, o guarda autorizou o cultivo das verduras do teimoso jardineiro. Ele só não podia permitir que elas crescessem subindo pelo muro.

Kalin obedeceu e, uma vez por ano, no Natal, os guardas da fronteira enviavam ao seu vizinho aguardente e pães. Talvez o jardineiro não fosse mesmo inoportuno, pois, no fim das contas, ele amenizava um pouco do horror inerente ao muro.

Após o desmantelamento da muralha, o casebre ficou no meio da cidade que se refundia. A subprefeitura de Berlim-Mitte reclamou prontamente da utilização ilegal do terreno, mas como o bloco caiu em 2004, em decorrência de um alinhamento de fronteira em Kreuzberg, o então prefeito deixou que a família Kalin ali continuasse.

Nesse meio tempo, Osman Kalin tornou-se um ancião. É seu filho Mehmet que agora serra e parafusa até dez horas por dia, no lugar do pai, para contribuir com aquilo que se tornou o trabalho da vida do velho Osman: a melhoria do imóvel.

O casebre labiríntico, que jamais recebeu uma autorização da parte de algum órgão qualquer de fiscalização de edificações, consiste, basicamente, dos achados feitos na rua. Desses compensados, arames e tubos de ferro surgiu uma casinha quase que de contos de fada. Após a queda do muro, os Kalin ergueram um segundo pavimento, com área de piquenique interna e janela panorâmica. O balanço no jardim foi fixado em um tubo velho. E ali, onde o telhado apresenta algumas lacunas, um funil enorme direciona para fora as águas da chuva. Como houve preocupação com a solidez da casa, Mehmet Kalin reforçou a estrutura que a suporta. "Comporta três famílias", garante ele.

O ladrilhador de 43 três anos, com barba por fazer, não possui grande consciência histórica. "Estava lá em pé por acaso", diz ele. Para Mehmet, o sítio antes ocupado pelo muro não é um lugar de significado político-histórico, apenas um ponto geográfico. O local onde seu pai improvisou um abrigo.






Por 28 anos, dois meses e 28 dias o muro dividiu Berlim. Mas os poucos vestígios que restaram dessa construção perderam seu horror. As artérias nervosas da cidade incorporaram a ferida cicatrizada da faixa de morte. Contudo, em vez de estar cada vez mais disfarçada, diluída na expansão da cidade, essa cicatriz vem sendo, ultimamente, colocada de novo à mostra. A busca dos curiosos pelo muro desaparecido tem agora o auxílio de um caminho de paralelepípedos bem evidentes - por quase seis quilômetros ele mostra o antigo traçado da fronteira.

Há um caminho do muro. Ele circunda a antiga Berlim Ocidental, por quase 160 km, dividido em 14 estações. Atração especial são as ruínas da East Side Gallery, de 1.300 metros de extensão - o mais longo pedaço de muro conservado depois do desmonte, próximo à Estação Leste. Ali, os núcleos de ferro enferrujados são trocados, a superfície jateada com areia e pintada com novas cores. É como se agora a capital, que antigamente queria apenas esquecer, lutasse pela longevidade dos últimos restos de seu muro. Tarde demais.

E Pawlowski foi mais rápido. No jardim em frente ao prédio da empresa Souvenirs und Postkarten (Lembranças e Cartões Postais), no meio da área industrial de Berlim-Reinickendorf, ainda restam alguns elementos grandes do muro, com 3,40 m de altura e duas toneladas de peso. Um antigo comandante da tropa de Fronteira da RDA os descreveu, certa vez, como "de baixa manutenção e elegantes". Mas, a maior parte dessas peças Volker Pawlowski desmembrou - o que resultou em mais de 100 blocos cortados, desde a reunificação, em pequenos fragmentos. Por todos os lugares, protegidas sob coberturas, há caixas com pedaços de pedra. "Muro sem fim", comenta Pawlowski, 52 anos, com cabelos arrepiados e jeans. Nesse negócio bem berlinense, ele é líder de mercado mundial, por assim dizer. Ninguém possui tantos restos de concreto da RDA como ele - um patrimônio que não conseguirá nem mesmo processar em vida.


Para ele, o muro é uma ideia comercial, nada mais que isso. "Claro que se reflete sobre o que aconteceu lá", diz ele. "Mas em algum momento não se pensará mais tanto assim", completa, pragmático. Pawlowski cansou-se do muro. A barulheira do ar comprimido, a rotina diária de quebrar pedras, a poeira. "No fundo, estou cheio do muro", confessa. E, contudo, Pawlowski é seu prisioneiro, pois quase não lhe restam alternativas de sobrevivência. E ele nem é o seu principal comerciante: "É difícil de calcular o valor potencial do muro", diz ele. Pawlowski talvez seja responsável por 10% do que se fatura com os restos materiais e as lembranças dessa edificação. No máximo. De qualquer forma, ela é a origem de seu comércio, até o momento com quase 200 artigos.

Volker Pawlowski já acumulava um histórico de 18 anos de construção por empreitada, quando, em 1991, viu a chance de se tornar autônomo.

No início ele era apenas um das centenas de "pica-paus de muros" com martelo e cinzel (espécie de objeto perfurante). Contudo, quando em 1992 ele percebeu que isso lhe rendia pouco, percorreu os centros de reciclagem fazendo uma oferta em grande estilo: "comprei todos os restos de muro que estavam disponíveis!" - lembra. Interessavam-lhe, especialmente, as partes coloridas os restos grafitados da finada Berlim Ocidental.


Desde o momento em que percebeu que as peças maiores deixaram de ter saída ("Onde se pode colocá-las?"), Pawlowski vem priorizando os pedaços menores. Ele concebeu embalagens de acrílico e certificados de originalidade. E, em 1995, os cartões postais de Berlim com chip patenteado - o artigo mais vendido. Para tanto ele faz um orifício de três centímetros de largura em um cartão postal, e ali encaixa um envólucro plástico que contém um ou mais pedacinhos do Muro. "É a embalagem que decide a venda", diz o berlinense. Em dias especialmente produtivos ele consegue fabricar 150 dessas peças de história pronta. Elas são vendidas exclusivamente a atacadistas e lojas de souvenirs - que, de acordo com o artigo do Muro, as comercializam por preços que variam entre ? 2,00 e ? 4,50. Apesar desse empenho, o faturamento com os restos do muro vem caindo, e um aumento neste vigésimo aniversário da queda ainda não é perceptível. Não, Pwlowski não amealhou riqueza, mas está satisfeito.

Há pessoas que o acusam de processar as peças do muro, que ele aviva com a pistola de tinta onde as tonalidades originais já estão esmaecidas. Mas Pawlowski sabe que um pouco de cor faz bem para o negócio, "senão é apenas um pedaço cinza de concreto", observa. Ele não liga para o que os outros dizem. E, dessa forma - com a pistola de tinta -, talvez ajude a manter viva a lembrança do Muro, para que ela vá se apagando ainda mais devagar.

Caminhada na fronteira

Na trilha do Muro de Berlim

Despedaçado, martelado, fustigado - os berlinenses não deixaram de pé quase nada do muro de concreto que há muito os separava. Agora, o departamento de monumentos protege quase todas as partes remanescentes. Assim, além da torre de vigilância de Jürgen Litfin, em Kieler Eck, da Bernauer Straße, e do casebre da família Kalin em Bethaniendamm, esquina com a praça Mariannenplatz, ainda podem ser encontradas algumas outras relíquias.

Bernauer Strasse

Bernauer Str. 111, Tel.: +49/30/464 10 30, www.stiftung-berlinermauer. de (site em alemão, inglês, francês, italiano e espanhol); entrada gratuita, guia para adultos por ? 3,00 Dramáticas cenas de fuga pela janela ocorreram aqui, onde algumas casas pertenciam ao lado oriental, mas a calçada estava na Berlim Ocidental. Hoje em dia a Bernauer Straße abriga o mais importante memorial ao Muro.

Um trecho da fronteira original, com o Muro, as cercas de sinalização e a "faixa da morte", lembra a separação. Nas estações de audição do centro de documentação sobre o muro é possível escutar os depoimentos das testemunhas da época; na sala de leitura estão, entre outros, relatórios da "Segurança do Estado". Após registro prévio, crianças de oito a doze anos podem se tornar especialistas no Muro.

Checkpoint Charlie

Friedrichstr. 43-45, Tel. +49/30/253 72 50, www.mauermuseum.de (site em alemão, inglês e francês); Entrada ?5,50-12,50 A polícia popular ainda controla o Checkpoint. Nos uniformes estão os alunos de artes dramáticas. Por ?1,00 eles posam para foto. Ao lado, o Museu do Muro apresenta a história de forma mais realista. Além de fotos e narrativas das tentativas de fuga bem-sucedidas, são também mostrados os meios de escape: balões de ar quente, automóveis de fuga, teleféricos e até o minissubmarino, com o qual um fugitivo cruzou com sucesso o Mar Báltico.

O Museu do Muro está entre os museus berlinenses mais frequentados do ano de 2007, com 850 mil visitantes. A apresentação dos recursos de fuga reaviva o passado e protege esse trecho da história do esquecimento. Mas há também críticas: as salas de exposição são muito pequenas; o tipo de apresentação e também os textos expostos estão desatualizados e ideologicamente ultrapassados.

East Side Gallery

Mühlenstraße, Tel. +49/30/251 71 59, www.eastsidegallery-berlin. com (site em alemão) A poucos passos antes da Estação Oriental o muro cai todos os dias.

Ao menos na pintura de Kani Alavi, Aconteceu em novembro. Descubra na East Side Gallery, a faixa de muro que se estende por 1,3 km na cidade. A antiga parede de concreto sem adornos foi decorada em 1990 por artistas internacionais com 106 pinturas. Alavi esboçou sua obra, fácil de reconhecer, logo na noite da queda do muro. Siga pela Mühlenstraße, 170 m na direção da ponte Oberbaumbrücke, e encontrará os agrupamentos de pessoas do 9 de novembro, conservados para a eternidade. Acrílico sobre concreto.

Cemitério de Santa Edwiges

Liesenstr. 8, Tel. +49/30/97 10 41 05 Vinte e oito anos no meio da faixa da morte, e permaneceram ilesos - são os anjos de pedra do cemitério da catedral de Santa Edwiges (St. Hedwig). Na construção do muro, os soldados da RDA emparedaram os dois padroeiros de 3 m de altura - entre a parte frontal e traseira do muro.

Hoje, apenas restos da muralha na linha de bonde e na parte oriental do cemitério lembram a prisão dos anjos.

Torre de Vigilância da Fronteira

Flutgraben 3, Tel. +49/30/53 01 32 80, www.kunstfabrik.org (site em alemão); Entrada gratuita No térreo da antiga torre de fronteira em Schlesischer Busch lê-se "Próxima inspeção, março de 1991". Mas os inspetores de construção da RDA não voltaram para a manutenção - a queda do muro ocorrera nesse meio tempo. Apenas o holofote no teto ainda lembra a antiga função da torre de dez metros de altura. A associação Kunstfabrik am Flutgraben e.V. realiza exposições na torre.

Ciclovia do Muro

A melhor maneira de se descobrir os antigos limites é percorrendo a ciclovia em torno da Berlim Ocidental. Ponto de partida: por exemplo, praça Potsdamer . O especialista em Muro de Berlim, Ralf Gründer (tel.: +49/30/41 71 92 40), oferece passeio guiado. www.berlinermauer.de (site em alemão).



Revista GEO

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Azerbaijão – Uma Visão da Situação no Cáucaso (sobre os atentados em Moscou e Daguestão)



Azerbaijão – Uma Visão da Situação no Cáucaso (sobre os atentados em Moscou e Daguestão)
Paulo Antônio Pereira Pinto

Imagine-se uma região apertada pelo Irã – ao Sul – Rússia - ao Norte - e Turquia - a Oeste - banhada tanto pelo Mar Negro, quanto pelo Mar Cáspio. Se o Cáucaso já não fosse as mais alta cadeia de montanhas da Europa, tais pressões políticas, certamente, teriam forçado a terra a levantar-se e criar tal cordilheira.

Escolha, agora, um grande conquistador: Genghis Khan, Alexandre o Grande, Imperadores Persas, Pedro o Grande, Hitler e Stalin, todos reivindicaram ter conquistado a região caucasiana. Pense numa religião: Muçulmanos Shiitas, ao Sul, Sunnis, ao Norte, e três expressões do Cristinismo em diferentes localidades. Todas convivem nesta parte do mundo.

O escritor Essad Bey, a propósito de outras diversidades regionais, escreve amplamente sobre príncipes e ladrões, no Cáucaso.1 Revela, então, as diferentes formas que legitimavam as duas “categorias sociais”. Ademais, com frequência, segundo o autor, um membro de um grupo transitava para o outro, passando de príncipe a assaltante de caravana ou de saqueador a nobre, com perfeita naturalidade.

Um príncipe caucasiano distingue-se de um europeu, por diferentes razões, além da ausência de brazão de realeza.. Assim, no Azerbaijão, até o início do século XX, antes da invasão soviética, havia: príncipes com terras próprias e súditos; com terras, mas sem súditos; com súditos e sem terras; ou sem terras nem súditos. O ladrão poderia herdar sua profissão ou conquistá-la, por mérito pessoal. Cabia-lhe cobrar tributos dos mais favorecidos, em troca de proteção, ou simplesmente proceder ao saque, no caso de resistência do contribuinte. O Cáucaso, no momento, tem sido objeto de noticiário, não pelos roubos de seus príncipes ou méritos de seus ladrões, mas pelos atos terroristas em Moscou e no Daguestão.

Procuro expor, a seguir, que tais atos de violência são resultado, ainda, da forma desordenada como ocorreu o processo de desintegração da União Soviética. Isto porque, na medida em que o mecanismo ideológico que a sustentava desapareceu, sobreviveram rivalidades criadas e consolidadas pelo modelo de governança stalinista. Este privilegiava lideranças das chamadas “repúblicas soviéticas” que, após o desaparecimento da URSS, insistem em defender prerrogativas próprias que lhes foram outorgadas pelo “velho regime”.

Tais privilégios diziam respeito, principalmente, ao conceito de “autodeterminação”, que veio a provocar o surgimento de “repúblicas soviéticas” – etapa intermediária para a consolidação do socialismo – com capacidade de decisões próprias, com o emprego, até mesmo, de forças armadas a sua disposição. O objetivo final, após aquele período, seria a inserção de todos estes mini governos na moldura de governança maior da então poderosa União Soviética. A etapa posterior, sabe-se, ocorreria, com a universalização do poder do proletariado. A dialética marxista garantiria que, com o desaparecimeto da luta de classes, as referidas repúblicas se dissolveriam, em favor do interesse maior compartilhado por todos, ansiosos por serem conduzidos ao comunismo.

Nessa perspectiva, a origem dos problemas que ainda permanecem no Caúcaso, Norte e Sul – segundo literatura disponível sobre o assunto – encontra-se na complexa interpretação stalinista sobre o significado de “nação”. Em termos reconhecidamente simplificados, é possível entender que, para aquele líder soviético – natural, como se sabe, da Georgia caucasiana – caberia distinguir nação, de raças, tribos, grupos linguísticos ou pessoas que simplesmente habitassem o mesmo território. A nação, segundo ele, seria uma comunidade que teria “evoluído historicamente e se tornado estável”. Tal conceito poderia ser definido em termos de uma cultura comum, a incluir “idioma, território, vida econômica e características psicológicas semelhantes”.

Coerente com o raciocínio do “materialistmo histórico”, Stalin idenficaria, como contradição principal, o surgimento do nacionalismo, principalmente, como resposta à opressão por algum outro grupo social. Isto é, a consciência nacional – da mesma forma que a de classe – surgiria em função da circunstância de que uma comunidade nacional se encontrasse subordinada a outra.

A diferença entre o conceito stalinista de nação e o pensamento “burguês” sobre o tema é, como entendido aqui, que, para este “o nacionalismo seria o caminho para a guerra e o imperialismo”. Para os seguidores do líder soviético, no entanto, apenas um sistema político, que permitisse a nações exprimirem seu desejo de autodeterminação, evitaria conflitos e eliminaria a burguesia do poder. Tal autodeterminação, contudo, deveria ser claramente percebida como sendo “em benefício dos interesses do proletariado”.

Dessa forma, por exemplo, não seria permitido a líderes religiosos revindicarem autodeterminação de uma área, apenas para satisfazer anseios de muçulmanos ou cristãos. Os interesses dos trabalhadores, como um todo, deveriam ser levados em conta, para obter o benefício em questão.”

A integração do Cáucaso à União Soviética – objeto deste estudo – era descrita como “a determinação voluntária de seus povos de unirem-se à classe proletária ao Norte”. Na prática, tratava-se de reviver o antigo Império Russo. Nesse processo, houve tentativas de tratar a região como um agrupamento regional próprio, inclusive com a criação de uma Federação de Repúblicas Soviéticas do Transcáucaso, sobre a qual não haveria espaço para tratar neste texto, que pretende ser sucinto.

O importante para este exercício de reflexão, no entanto, é o fato de que, em meados da década de 1930, foram reconhecidas, em Moscou, três “Repúblicas Autônomas”, ao Sul do Cáucaso, a saber: Armênia, Georgia e Azerbaijão. Ao Norte das referidas montanhas, outras regiões – que interessam a esta pesquisa – foram criadas, com o mesmo nível de autonomia das vizinhas autrais e configuração territorial semelhante à existente nos dias atuais:a Noroeste, o Daguestão tornou-se unidade administrativa; e a Chechênia adquiriu status semelhante. Estas regiões administrativas ao Norte e ao Sul do Cáucaso podiam reivindicar algum nível de legitimidade, em termos de contornos étnicos e certo grau de vínculos culturais e econômicos entre seus habitantes.

Fica claro, hoje, que a liderança da URSS não poderia antecipar, então, que as fronteiras que estavam traçando, viriam, a partir da década de 1980, tornarem-se pretexto para explosões de violência, em defesa, justamente das prerrogativas que tais delimitações geográficas viriam a beneficiar pessoas ou grupos de indivíduos.

Na medida em que novas classes dirigentes foram se consolidando nessas “Repúblicas”, métodos de governança soviéticos vieram a ser adotados, tais como julgamentos e execuções sumários, e “desaparecimentos”. Enquanto estas “modalidades de controle social” íam se incorporando aos hábitos locais, vínculos de cumplicidades fortaleciam as elites que se mantinham no poder, às custas do emprego da violência contra seus próprios nacionais.

A fase pós-Stalin testemunhou a subida ao poder de nova geração, adepta de métodos menos truculentos para se preservar no Governo, na medida em que as repúblicas soviéticas foram se tornando estados-nações. Ao Sul do Cáucaso, “déspotas esclarecidos” assumiam a direção na Armênia – Karen Demirchian (1974-88) – no Azerbaijão – Heydar Aliyev (1969-82) – e na Georgia – Eduard Shervadnadze (1972-85) . Os três se beneficiaram da ânsia por estabilidade decorrente da turbulência e terror vigentes na fase stalinista. Todos consolidaram feudos virtuais em seus domínios. O problema é que, cada vez mais, grupos fortaleciam seus interesses recíprocos, em detrimento do benefício maior dos habitantes do territórios sobre sua autoridade.

Ao Norte da região, não se desfrutava de processo idêntico. Ao contrário da busca da estabilidade, mesmo que fosse com a consagração de ambições pessoais, Chechênia, e Daguestão – entre as áreas objeto deste estudo que, cabe reiterar, busca identificar explicações gerais para problemas atuais, sem reivindicar exatidão científica – foram marcadas por período de turbulência política, com o início da fase pós-soviética da década de 1990 e início do milênio.

A Rússia, como é sabido, envolveu-se em duas guerras na Chechênia, no período de 1994-96, durante o Governo de Yeltsin, e 1999, no de Putin. Desnecessário lembrar os massacres na escola de Beslan, Ossétia de Norte, e em teatro em Moscou, por combatentes pela independência daquela região ao Sul da Rússia..

De acordo com documentação aqui disponível, haveria três pricipais explicações para tais conflitos e atos de violência. A primeira diria respeito ao fato de que, no Norte do Cáucaso, como ao Sul, revindicações étnicas por antigas classes dominantes foram incorporadas por novas lideranças políticas – já referidas repetidas vezes acima – como argumentos legítimos, de forma a se perpetuarem no poder. A segunda envolve disputas fundiárias históricas, que passaram a alimentar ímpetos genocidas, no interesse de grupos sociais, sempre dispostos a consolidar suas prerrogativas. A terceira pode ser encontrada no repetido emprego da força, por governos de Moscou, tanto para eliminar opositores, quanto para manter governantes que lhe fossem simpáticos. Este último fator contribuiu, sem dúvida, para polarizar as tensões regionais.

Mais importante, com a fase pós-soviética, chegou ao Norte do Cáucaso outra forma de mobilização, expressa no fundamentalismo islâmico. Rapidamente, o discurso radical foi assimilado pelos militantes chechênios, com pesada herança de combate contra os russos, seja contra o Império, na década de 1840-50, seja contra a dominação soviética. Em momento algum – sempre de acordo com a literatura disponível aqui – tais lutas tiveram conotação religiosa, na forma adotada após a implosão da URSS.

Cabe notar, a propósito, que os guerrilheiros passaram a adotar vocabulário de combatentes islâmicos em outros cenários de guerra. Assim, os russos passaram a ser chamados de “infiéis”, seus mortos passaram a ser “mártires” e os simpatizantes de Moscou denominados “hipócritas”. Houve, no entanto, inovações nos procedimentos de relações públicas. Assim, enquanto o rebelde chechênio Imam Shamil 2, no século XIX, escrevia cartas ao Sultão Otomano, hoje, os líderes daquela região criam “sites”, como o “Book of a Mujahideen” e cobram acesso por múltiplos cartões de crédito.

Este texto tem procurado argumentar, portanto, que a violência ocorrida, no Cáucaso, após a desintegração da URSS, decorre, por um lado, da fraqueza e forma desordenada de extinção do Estado Soviético e, por outro, da determinação dos “governos nacionais” que o sucederam – tanto os que obtiveram reconhecimento internacional, quanto os que não o conseguiram, no sentido do emprego da força para preservarem seus egoismos pessoais ou regionais. Não representam, nessa perspectiva, exatamente a defesa histórica de identidade ou destino nacionais.

Assim, reitera-se, cada parte que se envolveu em conflito havia sido privilegiada, durante o período soviético, com uma chamada “administração autônoma”. Daí, a classe dirigente destes enclaves, sem querer renunciar a prerrogativas consagradas, decidiu recorrer ao emprego da força – com o benefício do abundante material militar deixado pelos exércitos soviéticos, em retirada – para transformar antigas instituições soviéticas em novos estados. Não fossem as estruturas administrativas herdadas e certas ambições pessoais que motivavam a preservação de privilégios adquiridos, as guerras pós-soviéticas talvez não tivessem ocorrido.

Na medida em que tais conflitos foram adquirindo vida própria, disputas que, conforme já reiterado, tinham origem pessoal ou regional, passaram a adquirir conotação étnica. Hoje, os conflitos são lembrados como lutas de libertação nacional ou lutas trágicas em defesa de integridade territorial da mãe pátria. Uma geração completa de crianças cresceu sustentada por tais afirmações patrióticas.

Segundo consta, em algumas regiões que hoje reivindicam autonomia, currículos escolares foram reescritos, para convencimento de gerações futuras de que haveria conecção entre supostos estados antigos e atuais.

Em resumo, a desordem pós-soviética no Caúcaso não foi resultado de rivalidades naturais, entre nações em busca de independência, mas, sim, o reflexo da capacidade da comunidade internacional de tolerar algumas formas de secessão e não outras. Assim, secessões bem sucedidas, como as da Armênia, Azerbaijão e Georgia, foram legitimizadas com o reconhecimento internacional e admissão em organizações internacionais.

Aqueles regimes não reconhecidos – Nagorno-Karabakh, Abcássia e Ossétia do Sul – foram vistos, no exterior, como tentativas desesperadas de racionalizar a secessão. Uma diferença óbvia, entre os reconhecidos e não reconhecidos foi, simplesmente, o tamanho. Os não reconhecidos eram insignificantes, em termos populacionais: menos de 200.000 na Abcássia e Nagorno-Kabakh, e talvez ao redor de 70.000 na Ossétia do Sul. Representavam, no entanto, parte expressiva do território dos países reconhecidos, dos quais queriam se separar: cerca de 15% da Georgia e do Azerbaijão.

No início do milênio – segundo dados disponíveis – era difícl para visitantes identificar diferenças de estilo de vida, a ponto de estabelecer identidades nacionais distintas, entre as terras ocupadas pelos habitantes de estados reconhecidos ou não. A falta de eletricidade e outras deficiências de infra-estrutura, a corrupção, a ausência de governança e de governabilidade eram as mesmas.

As diferenças se encontravam, apenas, entre os projetos dos personagens que não queriam renunciar aos privilégios e prerrogativas obtidos durante o período soviético. Suas ambições, no entanto, eram idênticas, através do Cáucaso, fossem seus países reais ou imaginários: manter-se no poder.

Conclui-se afirmando que, no final da década de 1990, e início dos anos 2000, reivindicações herdadas do período de hegemonia da URSS, sobre o Cáucaso, continuavam a ressugir, sem que modalidades de governança adotadas durante aquelas sete décadas de escuridão tivessem sido desmanteladas.

Assim, velhos hábitos ligados à doutrina stalinista perduravam, mesmo diante do colapso da estrutura do Estado Soviético. Ao mesmo tempo, partes do Caúcaso, vinculadas a estas práticas antigas mantinham mitos consgrados nos lugares de sempre. Isto tem sido possível, em virtude do legado do pensamento stalinista de vincular nações a territórios, bem como à disponibilidade de armamento soviético, deixado para trás, quando do recuo de seus exércitos, alimentando, assim, a capacidade de destruição mútua das partes que retomaram seus conflitos históricos.

Apenas quando houver o compromisso de desenterrar o passado recente e os responsáveis pelos erros cometidos, durante o período de dominação soviética, tenham seus erros devidamente avaliados, poderia haver mudanças significativas nas formas de governança ou desgovernança no Cáucaso, Sul e Norte.

Nesta região, o presente parece repetir o passado recente, enquanto príncipes e saqueadores continuariam a conviver e confundir-se, sempre em proveito de projetos pessoais.

Notas
1 Essad Bay, “Blood and Oil in the Orient”..Bridges Pulblishing. Germany. 2008.
2 Nicholas Griffin. “Caucasus – A Journey to the Land between Christianity and Islam”. The Chicago University Press. 2004.


Paulo Antônio Pereira Pinto é Diplomata. Primeiro Embaixador do Brasil residente em Baku, Azerbaijão. Serviu, anteriorimente, como Cônsul-Geral em Mumbai e, a partir da década de 1980, durante vinte anos, na Ásia Oriental, sucessivamente, em Pequim, Kuala Lumpur, Cingapura, Manila e Taipé. As opiniões expressas são de sua inteira responsabilidade e não refletem pontos de vista do Ministério das Relações Exteriores (papinto2006@gmail.com).

Meridiano 47

quinta-feira, 1 de abril de 2010

“Lagos” Oceânicos

“Lagos” Oceânicos
“Ruído” sísmico em dados de prospecção de petróleo pode decifrar o processo de mistura dos oceanos
por Lucas Laursen
BERTA BIESCAS E VALENTÍ SALLARÈS, Unidade de Tecnologia Marítima. Conselho Nacional de Pesquisas da Espanha.

SOANDO BEM: com cerca de 80 km de diâmetro, um anel de água quente e salgada no Atlântico, conhecido como meddy, foi detectado recentemente, com o uso de dados de pesquisas sismológicas realizadas há 15 anos.

Há três décadas pesquisadores descobriram aquilo que são essencialmente enormes lagos de água salgada no oceano Atlântico. Esses “lagos”, conhecidos em inglês como meddies, são lentes aquáticas em suave rotação, com até 100 km de diâmetro e 1 km de espessura. Eles fl utuam a algumas centenas de metros sob a superfície oceânica. Esses corpos grandes e cálidos, que, descobriu-se, vêm do mar Mediterrâneo, devem ter impacto sobre as trocas de calor no oceano – e sobre o clima do planeta. Mas os esforços para estudar os meddies – o que geralmente exige o emprego de sondas que medem diretamente a temperatura, salinidade e velocidade oceânicas – se mostraram muito dispendiosos, incomuns e esparsos para revelar como os meddies dissipam calor.

Agora, pesquisadores demonstraram que uma ferramenta emprestada da indústria petrolífera é capaz de gerar instantâneos rápidos e de alta resolução dos meddies. A técnica, utilizada inicialmente para encontrar reservas de petróleo sob o assoalho oceânico, emprega reflexões sonoras. Equipamentos de prospecção em navios disparam jatos de ar logo abaixo da superfície aquática; as ondas acústicas se propagam até o fundo e são refletidas para uma rede de microfones que vai a reboque do barco. O tempo de retorno das ondas sonoras revela a densidade do material pelo qual passaram.

As regiões de fronteira entre massas aquáticas também têm uma “assinatura” sonora, muito fraca, que a indústria petrolífera costumava tratar como simples ruído. Mas, em 2003, uma equipe liderada por W. Steven Holbrook, da University of Wyoming, nos Estados Unidos, adotou a técnica e criou imagens inesperadamente nítidas das fronteiras de densidade no oceano. Mudanças na densidade da água do mar resultam de mudanças de sua temperatura e salinidade. Como essas grandezas costumam ter valores específicos para cada corrente oceânica, os pesquisadores conseguiram visualizar interações entre frentes oceânicas, da mesma maneira que os climatologistas mapeiam as fronteiras entre regiões climáticas.

Desde então cientistas analisaram dados de antigas pesquisas da indústria petrolífera e improvisaram alguns experimentos que pegaram carona em expedições oceanográficas e petrolíferas. Utilizando dados de uma pesquisa sismológica da costa sudoeste da Espanha, realizada em 1993, uma equipe liderada por Valentí Sallarès, da Unidade de Tecnologia Marítima do Conselho Nacional de Pesquisas da Espanha, em Barcelona, relatou, na edição de 14 de junho da revista Geophysical Research Letters, que conseguiu capturar imagens com detalhes nunca antes vistos de três meddies.

As imagens sismológicas de Sallarès revelam “dedos salinos” e outras características da mistura entre as águas, com dimensões de até 10 m. “A princípio é muito instigante conseguir ver coisas desse tipo”, diz Raymond Schmitt, um oceanógrafo do Instituto Oceanográfico Woods Hole, nos Estados Unidos. Mas Schmitt diz que ele e seus colaboradores ainda estão tentando entender como interpretar imagens sismológicas de meddies e outras regiões de mistura oceânica, como ondas subaquáticas e fronteiras entre correntes.

Perfis sismológicos ainda não são amplamente utilizados na comunidade oceanográfica, em parte porque ninguém publicou uma fórmula quantitativa confiável para converter medidas sísmicas em grandezas oceanográficas tradicionais. A sismologia detecta reflexões originadas em locais onde a velocidade do som se altera. Sondas oceanográficas medem as condições aquáticas diretamente. Sallarès espera unificar os dois tipos de dados: “O primeiro passo foram as imagens, mas, se não formos capazes de quantificar os processos de mistura, não teremos conseguido coisa alguma”.

Sallarès avalia que os resultados preliminares de uma recente expedição oceanográfica sismológica sugerem que os valores de temperatura e salinidade podem ser mais difíceis de estabelecer que originalmente se imaginou. Holbrook, que liderou sua própria expedição oceanográfica sismológica no litoral de Costa Rica, em abril, escreveu, do navio, que a oceanografia sismológica precisa “gerar resultados quantitativos interessantes e úteis”, de modo que os oceanógrafos possam encará-la como “um acréscimo crucial a seu arsenal de técnicas, e não uma mera curiosidade”.

Ninguém sabe exatamente em que os meddies contribuem para a mistura no Atlântico, mas Sallarès diz que os perfis sismológicos “são um claro primeiro olhar, mais preciso do que os dados oceanográficos podem nos dar”.

Um Mar Quente e Salgado
O relativo isolamento do mar Mediterrâneo e seu clima ensolarado, o tornam propenso à evaporação rápida. Como resultado disso ele é muito mais salgado que o oceano Atlântico. Águas mediterrâneas penetram no Atlântico na forma de meddies, massas aquáticas que apresentam uma suave rotação, e possuem diâmetros de até 100 km e espessuras de 1 km. Os meddies carregam seu sal e calor para o mar aberto, de modo que suas fronteiras são vistas de modo particularmente intenso em imagens sísmicas.

Scientific American Brasil

Rompendo os Limites do Planeta

Rompendo os Limites do Planeta
Desafios do controle populacional e da produção de alimentos precisam ser vencidos de forma conjunta
por Jeffrey Sachs
Matt Collins

Estamos nos expulsando de nos so próprio planeta. Recentemente, na edição de setembro de 2009 da revista Nature, Johan Rockström e colegas propuseram os dez “limites planetários”, para definir os níveis seguros da atividade humana (a Scientific American faz parte do Nature Publishing Group). Nesses limites se incluem emissões críticas de gases causadores do efeito estufa; perda de biodiversidade; troca, em todo o mundo, da vegetação natural por plantação; e outros grandes impactos sobre os ecossistemas terrestres. A humanidade já ultrapassou vários desses marcos e caminha para extrapolar a maior parte dos restantes. E a demanda crescente por alimento contribui ainda mais para essas transgressões.

A revolução verde, responsável pelo aumento da produtividade dos grãos, deu à humanidade um certo tempo para respirar, mas o crescimento populacional contínuo e a demanda maior por carne abreviam essa fase. O pai dessa revolução, Norman Borlaug, morto em setembro do ano passado, aos 95 anos, ressaltou em 1970 exatamente essa ideia, ao aceitar o Prêmio Nobel da Paz: “Não haverá progresso duradouro na batalha contra a fome se as agências que lutam pelo aumento da produção alimentar e aquelas pró-controle populacional não unirem forças”.

Porém, essa união de forças é, na melhor das hipóteses, inconsistente e, por vezes, inexistente. Desde 1970, a população saltou de 3,7 bilhões para 6,9 bilhões e continua a crescer a uma
taxa anual de 80 milhões de pessoas. A produção de alimentos por habitante do planeta diminuiu em algumas grandes regiões, especialmente na África subsaariana. Na Índia, a duplicação
populacional absorveu quase totalmente o aumento da produtividade dos grãos.

A produção alimentar é responsável por um terço de toda a emissão de gases do efeito estufa; isso inclui os poluentes gerados pelos combustíveis fósseis utilizados na preparação e transporte dos alimentos, o dióxido de carbono liberado pela aragem da terra para a agricultura e pastagem, o metano produzido pelos arrozais e rebanhos de ruminantes, bem como o óxido nitroso proveniente do uso de fertilizantes.

Por devastar as matas, a produção de alimentos também responde por muito da perda de biodiversidade. Os fertilizantes químicos formam grandes depósitos de nitrogênio e fósforo, que agora destroem esteiros – trecho de rio ou mar que adentra na terra – de centenas de sistemas fluviais e ameaçando a química oceânica. Cerca de 70% do consumo mundial de água é destinado à produção alimentar, causando o esgotamento dos lençóis freáticos e uso ecologicamente predatório de água doce, desde a Califórnia até a planície indo-gangética, passando pela Ásia central e norte da China.

A revolução verde, em suma, não neutralizou os perigosos efeitos colaterais de um boom populacional humano, que se potencializarão ainda mais quando a população ultrapassar os 7 bilhões em 2012 e não parar de crescer, prevendo-se chegar aos 9 bilhões, em 2046. O consumo per capita de carne também aumenta. A carne bovina é uma das maiores ameaças, pois o gado
precisa consumir até 16 kg de grãos para produzir 1 kg de carne e emite grandes quantidades de metano. Além disso, o fertilizante utilizado nas plantações destinadas à alimentação desses animais contribui em muito para a produção de óxido nitroso.

Não basta somente produzir mais alimentos; devemos, ao mesmo tempo, estabilizar a população mundial e reduzir as consequências ecológicas da produção alimentar – um desafio triplo. Uma queda brusca e voluntária nas taxas de fertilidade de países subdesenvolvidos e em desenvolvimento - proporcionada por um maior acesso ao planejamento familiar, diminuição do índice de mortalidade infantil e educação de meninas – poderiam, em 2050, firmar a população em cerca de 8 bilhões de pessoas.

Incentivos financeiros a comunidades carentes, a fim de impedir o desmatamento, poderiam salvar hábitats de espécies. Sistemas de plantio direto e outros métodos preservariam não só o solo, mas também a biodiversidade. O uso de fertilizantes mais eficientes reduziria o transporte excessivo de nitrogênio e fósforo. Aperfeiçoamentos na irrigação e nas variedades de sementes poupariam água e reduziriam outras premências ecológicas. E uma dieta pobre em carne bovina conservaria os ecossistemas ao mesmo tempo em que melhoraria a saúde humana.

Essas mudanças exigirão um grande empenho (ainda a ser instigado) não só do setor público como do privado. Ao rememorarmos as grandes conquistas de Borlaug, devemos também redobrar nossos esforços para solucionar suas premonições. Está passando a oportunidade de alcançarmos um desenvolvimento sustentável.

Jeffrey Sachs é diretor do Earth Institute da Universidade de Columbia (www.earth.columbia.edu).

Scientific American Brasil

Sistemas de informação geográfica


Sistemas de informação geográfica
A maneira como o Google vai dominar as geotecnologias mostra como esta área evoluiu
por Eduardo Freitas
Quem nunca entrou no Google Earth ou Google Maps e foi direto fazer uma busca pelo próprio endereço, ou bisbilhotar o quintal do vizinho? Em contrapartida, quem ainda se dá ao trabalho de abrir uma pesada lista telefônica, pesquisar um endereço (geralmente em letras minúsculas), gravar o número e quadrante da página e verificar sua posição no mapa?

Esses dois lados de uma mesma moeda mostram como a geotecnologia evoluiu nos últimos anos, passando do uso restrito de alguns milhares de especialistas para o acesso diário
por milhões de pessoas. Só o Google Earth tem, hoje, mais de 500 milhões de usuários do globo virtual para visualização e análise geográfica, o que demonstra a popularidade desse tipo de ferramenta.

Mas nem sempre o uso de Sistemas de Informação Geográfica (SIG) foi popular. O primeiro exemplo de análise espacial corresponde à experiência do epidemiologista inglês John Snow (1813-1858). Para identificar o foco responsável pelo surto de cólera que afetou Londres em 1854, Snow cartografou as residências dos doentes e as sobrepôs aos poços de captação de água da cidade. Outro exemplo é o mapa de Charles Minard, de 1861, que representa a campanha de Napoleão na Rússia e exibe um conjunto de elementos gráficos associado ao modo como as tropas se deslocavam. Esses dois modelos são importantes marcos na história dos SIG, pois refletem a existência de uma base cartográfica de qualidade que permita operações de sobreposição de dados.

Existe um campo muito maior de estudo que vai além do SIG. A expressão “ciência da informação geográfica” (CIG) foi introduzida em 1992. Essa definição consta em um artigo do pesquisador Michael Goodchild, que posteriormente trabalhou com o ex-vice-presidente americano, Al Gore, no projeto Terra Digital. O estudo deu origem ao filme Uma verdade inconveniente, que expôs de forma incontestável os efeitos do aquecimento global com base em análises geoespaciais.

Entre a comunidade científica que estuda a CIG existe um consenso de que o grande salto evolutivo da própria ciência e dos sistemas de informação geográfica foi o Google Earth, em junho de 2005, que revolucionou a forma com que as pessoas se relacionam com mapas e imagens de satélites. Depois que a Google colocou geoinformação no cotidiano, o mundo nunca mais foi o mesmo.

Em 2004, a empresa Keyhole desenvolvia um globo virtual chamado Earth Viewer, que poderia ser acessado por qualquer internauta com banda larga, mas sua base de imagens de satélites e mapas ainda era pequena para o ambicioso projeto de cartografar todo o mundo. Foi quando o Google entrou em cena, comprou a empresa e lançou o Google Earth para o grande público, alcançando o esperado ganho de escala.

Mas, mesmo depois da massificação da tecnologia ainda existe muita confusão sobre o Google Earth. Afinal, as imagens são em tempo real? Quando o Google atualiza os mapas? É possível usar tudo de graça? As versões corporativas têm mapas mais recentes?

O principal mito sobre as imagens online deve muito a séries televisivas como 24 horas e a filmes como Inimigo de Estado, que mostram agências governamentais. As imagens do Google Maps e Earth são obtidas por satélites em órbita da Terra e por aviões equipados com câmaras digitais, geralmente de propriedade particular. Após a aquisição dessas fotos, o Google faz parcerias comerciais com as empresas e então oferece as imagens aos usuários.

Quanto à atualização dos dados, o Google nunca oferece uma previsão de quais áreas terão melhores informações. Só é possível saber que uma cidade ou área rural tem dados novos após a publicação das imagens de satélites ou fotos aéreas. Já os dados vetoriais, como ruas e limites de bairros, são obtidos por meio de parcerias com empresas que produzem mapas, mediante levantamentos em campo, por exemplo.

Outro mito das ferramentas de mapas online é que tudo está lá de graça. A versão free realmente está disponível para qualquer usuário. Mas, caso um aplicativo precise de login e senha para ser acessado é necessário uma licença profissional.

Com milhões de usuários em todo o mundo, o Google aproveita sua experiência com o mapeamento colaborativo e com o acesso simultâneo a dados para oferecer ferramentas corporativas do Google Earth e Maps. As opções para empresas têm alguns diferenciais, como a possibilidade de imprimir imagens de melhor qualidade ou suporte técnico; porém a base de dados com mapas e imagens de satélites é a mesma da versão free.

Os Serviços Baseados em Localização (LBS, na sigla em inglês) são a nova fronteira das ferramentas geoespaciais. A própria Google já lançou um navegador e o sistema operacional Android, para instalação em dispositivos móveis, mirando o uso de geotecnologia em tempo real. Definitivamente, a geoinformação saiu do gueto dos profissionais e agora está na palma da mão.

Eduardo Freitas é técnico em edificações, engenheiro cartógrafo, mestrando em CIG, editor do portal MundoGEO e autor do blog GeoDrops

Scientific American Brasil

Venezuela: um quase autorizado descaminho do MERCOSUL a vista


Venezuela: um quase autorizado descaminho do MERCOSUL a vista
por José Ribeiro Machado Neto
18/02/2010
O protocolo de adesão da Venezuela ao MERCOSUL foi assinado em 2006 e, desde então, a vizinha e conturbada nação vem envidando esforços políticos e diplomáticos para concretizar a sua entrada no bloco liderado pelo Brasil.

Em 29 outubro de 2009 a Comissão de Relações Exteriores do Senado brasileiro aprovou a entrada da Venezuela no MERCOSUL, decisão homologada em sessão plenária de 15 de dezembro do mesmo ano, faltando, apenas, portanto, para a sua concretização, a anuência do Parlamento paraguaio, que segundo observadores brasileiros, deverá seguir o exemplo dos parlamentos argentino e uruguaio. A aprovação facilitará assim, a extensão dos tentáculos do bloco dos limites caribenhos até a Patagônia, não obstante a existência de claras e conturbadas assimetrias dogmáticas, políticas e econômicas.

Com a admissão da Venezuela, o MERCOSUL passaria a contar com uma área comum de influência de aproximadamente 260 milhões de habitantes, sendo 190 milhões (73%) somente no Brasil; e com um PIB de US$ 1,0 trilhão (75% da América Latina), além de outros agregados econômicos expressivos, que garantiriam, ainda, algumas vantagens geoeconômicas e geoestratégicas apenas relativas. Entretanto, esses possíveis ganhos seriam contrabalançados por significativas e elevadas propensões marginais a consumir e a importar; taxas de desemprego superiores a 10% ao ano, a exemplo da própria Venezuela; uma inoportuna administração de dois câmbios com flutuações diferenciadas; e baixas taxas de investimento interno motivadas principalmente por uma constante ameaça de fuga de capitais externos.

Este quadro aumenta a instabilidade externa do regime econômico, mantido com altíssimos custos de oportunidade social que estão sendo transferidos unilateralmente às populações de menores níveis de renda, diminuindo assim, o poder de compra dos bolívares desses segmentos sociais, até agora sem quaisquer expectativas de contrapartidas.

Particularmente, o cenário da Venezuela não é um dos melhores da região, tendo em vista a degradação tarifária e o estreito comprometimento da manutenção de programas sociais com o curso das receitas petrolíferas em baixa – além das originárias das relações econômicas intra-bloco altamente diferenciadas das extra-bloco que dependem da estabilidade de preços dos principais mercados internacionais, mormente os inseridos na União Européia (UE), contrariamente a algumas teses mantenedoras do regime de Chávez.

A política de nacionalizações como meta do programa bolivariano não tem favorecido a necessária inversão interpretativa do coeficiente de GINI venezuelano, bem próximo de 50.0, considerado mundialmente um dos 30 piores em cenários de concentração de renda, pois seus efeitos já alcançam a maioria dos espaços sociais, limítrofes à linha da pobreza na América Latina.

A cada instante em que o clima político de deteriora internamente, o governo na maioria das vezes, responde com medidas radicais em determinados setores considerados estratégicos. O das comunicações têm sido o favorito e as empresas de rádio e TV, em contrapartida, unem-se e tendem a se transformar em novos partidos de oposição, aproximando-se da opinião pública internacional e, com isso, apresentar demonstrações de reação ao fechamento de emissoras, como também, novas tentativas de combate ao autoritarismo advindo de intenções de perpetuação de um monopólio estatal das comunicações.

Desta feita a oposição conta com um novo, sensível e esclarecido aliado que pode tornar-se numa força capaz de fazer renascer o espírito rebelde de 1968 que caminhou sobre o Sena, tornando aquele ano infindável, mesmo após a recente mudança secular. Os universitários venezuelanos estão nas ruas e os assassinatos não estão intimidando-os. Até agora as universidades Central de Venezuela, Caracas; de los Andes, Estado de Mérida; Católica Andrés Bello, Caracas; lideram o movimento que tende a se estender pelos demais Estados formando uma frente única com objetivos contundentes, tangíveis e acessíveis ao entendimento de todos os extratos sociais, à exceção dos trabalhadores das petrolíferas, cujos níveis salariais diferenciados da maioria da classe trabalhadora, absorvem a maior parte dos benefícios advindos do comércio exportador.

As conquistas ou externalidades advindas pela inserção do país no MERCOSUL certamente não diminuirão as tensões internas, pelo menos no curto prazo, pois essas dependem muito mais de impactos de políticas públicas. Além do mais, num segundo plano, de apaziguamentos políticos, o que não consta nas metas de Chávez, mesmo porque existe uma crescente fuga de ex-aliados para a oposição em crescimento. Uma contestação paralela, visível e clara tendência perpendicular à tese bolivariana de partido único apregoada há tempos por Chávez. A exemplo de Castro, transmitida em seus contumazes arroubos midiáticos que penalizam as mentes de diferentes gerações por mais de nove horas dominicais consecutivas para todos os umbrais venezuelanos.

A recente renúncia do vice-presidente da República, coronel Ramón Carrizález, também ministro da Defesa, nomeado por Chávez para ambas as funções teria o efeito multiplicador ao alcançar a esposa, a ministra do Meio Ambiente, Yubirí Ortega e o presidente do Banco da Venezuela, Eugenio Vázquez Orellana. Aos efeitos das renúncias no primeiro escalão político foi adicionado o descontentamento de jovens oficiais das forças armadas pela integração de oficiais cubanos às Forças Armadas Venezuelanas em um processo de decisão vertical, dando margem a novos e crescentes segmentos de interpretação da crise interna sob a ótica militar, cujos impactos já se fazem sentir na redução de ímpetos nos combates à oposição, que com isso, organiza-se e planeja ocupar espaços vazios dos partidos políticos progressivamente marginalizados.

O quadro político retrata a governabilidade confusa, descarrilada, sem bússola, mas não insolúvel para o contexto político latino-americano vigente, considerando-se que Caracas não alcançou ainda as fronteiras do isolamento e da institucionalização do desgoverno. A crise ainda não é global, pois se centra na esfera midiática contra os meios de comunicação privados, também oligopolizados, mas que não apóiam as tendências, ações e praticas governamentais, contrárias às praticadas nos mercados.

As dissociações políticas causadas pelos sucessivos embates entre as formas ou expressões de poder têm conduzido a Venezuela à fragmentação macroeconômica. Esta, por sua vez, trouxe desvios que vão desde os objetivos das políticas públicas à crescente perda da capacidade para importar, à fuga de recursos externos, ao desencadeamento da cadeia produtiva e, até à descabida utilização do poder militar para corrigir as falhas dos regimes de mercados. Neste caso, as leis que disciplinam os mercado tendem a ser substituídas por mecanismos unilaterais que são paradoxais às estruturas de preços, salários e contratos, que disciplinam a interação entre governo, agentes e mercados.

Produção, comercialização, distribuição de ganhos e, inclusive, o relacionamento com outros Estados com objetivos múltiplos de integração e complementaridade econômica, bem como de ações de fortalecimento de alianças para o progresso social tornam-se comprometidos com o distanciamento da liberdade dos capitais e da mobilidade dos recursos produtivos disponíveis, diante da vigência do autoritarismo.

A comunicação estatal na Venezuela é um segmento deveras expressivo e atuante para as dimensões e extratos sócio-econômicos do país. Engloba atualmente 34 empresas de TV, 500 estações de rádios comunitárias, diversos jornais de circulação regional e nacional e pequenas agências de notícias espalhadas pelo território. Trata-se de um notório oligopólio estatal de comunicações capaz de concorrer com o oligopólio privado que vem atuando com regularidade como um partido oposicionista no espaço sua ausência oficial no Parlamento. Observa-se, portanto, um choque de concentrações de mercado de igual significação, porém, com intensidades diferentes, não obstante atuarem em um mesmo espaço com clientelas idênticas e fins também análogos, porém, com mecanismos diferenciados.

Os mecanismos utilizados pelo governo no conflito são a nacionalização, o confisco e o monopólio político que visa o fim dos partidos políticos rivais. Busca-se assim a hegemonia de partido único, representativo do Estado e da revolução que, ao ultrapassar as fronteiras midiáticas, é vista como uma metamorfose à la cubana. Mas, o que se vê, de fato, não é uma revolução contra o capitalismo ou contra qualquer outro sistema ou regimes de mercado, mas apenas uma revolução midiática contra o desmanche de conquistas parciais num quadro social instável, onde as possibilidades de retorno ou de correção de curso estão cada dia mais distantes da realidade atual.

Ainda que não sejam distintos os hemisférios político e econômico na crise venezuelana, governo e mercado disputam suas respectivas hegemonias; decretos e mecanismos de preços contrapõem-se em espaços diminutos e em momentos nada oportunos. As perdas não são recíprocas, mas o povo é o maior perdedor. Cada agente age à sua maneira. O Estado com o poder de polícia, a intimidação e tentativas de descaracterização das instituições nacionais. O mercado, com a escassez, aumento geral dos preços domésticos e queda do bem-estar geral. Em ambas as situações prevalece a identidade do agente responsável em disputas silenciosas, onde cada qual busca a liderança, independentemente de mecanismos e objetivos.

O Estado e o mercado são exclusivos. A exemplo do que ocorreu no Leste europeu, Estado não deve substituir o mercado e este não deve, ainda que de maneira temporária, assumir funções estatais, como se pretende na Venezuela, onde nem o Estado e nem o mercado têm perfis definidos. O que se vislumbra é um jogo de intervenções de agentes contra agentes e de agentes contra consumidores e, em alguns casos, com convocações das Forças Armadas para garantir o abastecimento interno. Isso, sem qualquer sombra de dúvida é um atestado de indefinição de regime político, totalmente aleatório e agressivo ao clima reinante no MERCOSUL. Por outro lado, um leitmotiv aos agentes internacionais redirecionarem seus capitais compensatórios para outras praças captadoras, com sérios prejuízos para os programas sociais em vigor, além da manutenção da atual infra-estrutura básica que, há tempos, já emite sinais de deterioração. Em resumo, são primárias as características bolivarianas.

O atual nível de deterioração político-econômica que caracteriza o Estado venezuelano o coloca num prisma indefinido: nem capitalista, nem socialista e ainda um tanto longe de ser considerado politicamente organizado para ser visto como detentor de instituições democráticas. Trata-se de um Estado híbrido, um mix de autoritarismo – dependente de relações de intercâmbio nem sempre favoráveis – e de instituições compostas de forças minoritárias, sem expressão política, ou seja, forças autárquicas que internamente se limitam – independentemente da representatividade – a sempre referendar um processo decisório unilateral. Essa esfera de poder, entretanto, quando contrariada, provoca mutações na imagem representativa do Estado, fazendo prevalecer sempre o que mais representa o autoritarismo político sem a devida contrapartida conciliadora no âmbito interno, ou diplomática, com ênfase, na ótica externa.

Estaria, de fato, o atual Estado venezuelano sob a governabilidade de Chávez apto para ingressar no MERCOSUL, mantendo-se, a exemplo dos demais parceiros, sob a esfera democrática? O bloco arcaria com a responsabilidade de manter em seus limites um regime não democrático, assimétrico e comprometedor das instituições livres e mantenedoras de decisões políticas comuns ao bloco, com possibilidades de rupturas? Tais questionamentos retratam um elenco coletivo de preocupações, mantidas pelos responsáveis pela trajetória, há tempos, assumida pelo MERCOSUL.

Numa visão estritamente política e racional, o problema não parece ser a Venezuela, mas sim, a governabilidade de Chávez que tende a diferenciar-se, cada vez mais, da dos demais parceiros, limitando os avanços já alcançados para a integração política, econômica do bloco. Em uma etapa posterior, porém não conclusiva – com uma possível anuência extra-bloco e participação majoritária do Brasil – a integração energética do bloco poderia se tornar em uma utopia, apenas adicional ao elenco bolivariano de idéias, cada vez menos contributivo à política latino-americana.

O Protocolo de Ushuaia, parte integrante do Tratado de Assunção (1991), que criou MERCOSUL, destaca que a plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o implementação das ações de integração do bloco. Em caso de descumprimento das cláusulas democráticas, um país pode sofrer retaliação. O que se pode observar atualmente, é que a Venezuela se apresenta como uma democracia formal, com um governo autoritário, o que torna a sua governabilidade além de dual, híbrida em termos de representatividade, no concerto internacional.

A inserção da Venezuela no MERCOSUL numa situação de normalidade democrática, o bloco poderia sair ganhando politicamente, pois se tornaria mais coeso, mais consistente, tendo em vista a extensão da identidade geopolítica entre os demais parceiros. Entretanto, a rivalidade entre a Venezuela e a Colômbia e os EUA, além do aliciamento da Bolívia e do Equador, poderiam neutralizar as demais vantagens naturais de coesão, ao serem vistas apenas como fortes possibilidades de aumento de influência de Chávez na região. Também, bases para novos cânones disciplinadores do relacionamento comercial na região, acima de tudo, contestatórios à política externa dos EUA.

Mantido o discurso antiamericano de Chávez, sua contrapartida poderia, além de prejudicar as relações do bloco com os EUA e áreas de influência, postergar o desejado acordo de livre comércio entre o MERCOSUL e a UE. Negociações multilaterais antecipadas – vistas como preparatórias – seriam propícias e oportunas nessa fase de adormecimento da ALCA (Aliança de Livre Comércio das Américas) e de letargia da ALBA (Aliança Bolivariana para as Américas) e UNASUL (União de Nações Sul-Americanas). Seus efeitos poderiam salvaguardar os países do MERCOSUL da forma concorrencial distinta entre as tendências desses blocos – capaz de restringir externalidades advindas do progresso técnico do comércio internacional, ainda que crescentes, dispersas na região.

A entrada da Venezuela no MERCOSUL – mantendo-se o clima ideológico apregoado por Chávez – poderia se tornar numa arena para novos confrontos dogmáticos que certamente poderiam conduzir os representantes a exacerbações substitutivas dos debates econômicos, com sérios prejuízos aos países-membros.

A posse de grandes reservas petrolíferas e a localização estratégica na Bacia Amazônica, além das da ampliação de possibilidades de integração política e geoeconômica da América Latina, poderiam, em situação regular de governabilidade, creditar à Venezuela uma séria contribuição ao MERCOSUL, mediante a aproximação de novas fronteiras naturais, da incorporação de novos espaços políticos e de mercado para os países que o integram.

Existe ainda a possibilidade da entrance ser utilizada como mecanismo de defesa da candidatura da Venezuela ao Conselho de Segurança da ONU, além de se tornar subsídio para a ALCA e ALBA, onde os horizontes não ultrapassam as fronteiras das limitações naturais e demonstram o encolhimento de perspectivas contributivas do novo parceiro, cujos projetos econômicos não vão além dos da sobrevivência política.

Em síntese pode-se admitir que o socialismo para o século XXI proposto por Chávez – que agora insiste em representar o papel de um connétable bolivarien du Sud – deverá ser transferido para outra centúria temporal, não obstante o alargamento político da Venezuela no concerto externo, porém, com paradigmas sob questionamentos de outras nações politicamente organizadas.

José Ribeiro Machado Neto é pesquisador colaborador e coordenador de extensão e ensino do Centro Integrado de Ordenamento Territorial (CIORD), da Universidade de Brasília – UnB (jrmn1789@gmail.com).

Boletim de Relações Internacionais da UNB
Maridiano 47

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