quarta-feira, 31 de março de 2010

O fator Cingapura

O fator Cingapura
Como essa ilhota se transformou em usina de força high-tech em apenas uma geração? Simples: foi tudo planejado.
Por Mark Jacobson
Foto de David McLain

A imagem de um soldado avulta sobre contingentes militares que ensaiam para o desfile do Dia da Pátria.

Se você quer fazer um cingapuriano interromper sua adorada refeição de cabeça de peixe ao curry ou que um estressado chofer de táxi enfie o pé no breque, basta dizer que você vai entrevistar o "Ministro Mentor" do país, Lee Kuan Yew, e pedir sugestões sobre o que perguntar ao homem. "O MM? Wah lau! Você vai ver o MM?" MM ou LKY, como ele é conhecido em um país maníaco por siglas, é mais que o "pai da nação".

LKY é seu inventor, como se houvesse formulado cientificamente um país juntando porções exatas da República de Platão, do elitismo anglófilo, de um infatigável pragmatismo econômico e de uma repressiva e antiquada mão de ferro.

As pessoas gostam de chamar Cingapura de Suíça do Sudeste Asiático, e quem poderia contestá-las? Essa ilhota situada na ponta da península Malaia conquistou sua independência da Grã-Bretanha em 1963 para, em apenas uma geração, se transformar em um lugar de legendária eficiência, em que a renda per capita de seus 3,7 milhões de cidadãos ultrapassa a de muitos países europeus. Os sistemas de educação e saúde locais rivalizam com os de qualquer país ocidental, e o aparato governamental se acha, em grande medida, livre de corrupção. Cerca de 90% dos lares são casa própria, os impostos são relativamente baixos e as ruas e calçadas são impecáveis, sem mendigos ou favelas à vista.

Se tudo isso, mais uma taxa de desemprego em torno de 3% e uma pilha de dinheiro dos cidadãos guardada no banco graças ao plano oficial de poupança compulsória, não soa como música a seus ouvidos, experimente viajar 950 quilômetros ao sul e tente se virar num favelão de Jacarta, capital da vizinha Indonésia.

Atingir tal estágio demandou delicado e contraditório equilíbrio entre incentivo e punição ou, como os cingapurianos costumam dizer, entre "o longo porrete e a grande cenoura". O que causa admiração, em primeiro lugar, é a cenoura: um vertiginoso crescimento financeiro a sustentar o consumo e o setor imobiliário. O lado B disso é o longo porrete, em geral simbolizado pela infame proibição do chiclete e a aplicação de surras de vara em pichadores. E quanto a situações conturbadoras, como tensões religiosas ou raciais? Elas simplesmente não são permitidas. E mais: ninguém bate a carteira de ninguém.

Cingapura, talvez mais que qualquer outro lugar no mundo, enseja uma questão fundamental: prosperidade e segurança sim, mas a que preço? Será que para obtê-las vale a pena viver em um ambiente que, aos olhos de muita gente, é uma sociedade de proveta, baseada na labuta incessante, numa briga de foice entre workaholics, em que o partido que se autoperpetua no poder impõe leis draconianas (o cartão de entrada ao aeroporto local, por exemplo, informa, em letras vermelhas, que a pena para o tráfico de drogas é simplesmente a "MORTE") e reprime a liberdade de imprensa, oferecendo um nível questionável de transparência financeira?

Dizem que Lee Kuan Yew abrandou com o passar dos anos. Mas, quando ele chega envergando um blusão azul de zíper e um cenho franzido, com pinta de Clint Eastwood em Gran Torino, você percebe que ele não está lá para brincadeiras. Embora não estejam bem claras as funções de um "Ministro Mentor", é difícil encontrar quem não acredite que o Velho ainda é o mandachuva no pedaço. Ao saber que a maioria das perguntas saiu da boca de cingapurianos, MM, de 86 anos, afiado e prático como um canivete suíço, abre seu sorriso "deixa comigo" e diz: "Na minha idade, já me jogaram muito ovo".

Poucos líderes ainda vivos - Fidel Castro, em Cuba, Nelson Mandela, na África do Sul, e Robert Mugabe, no Zimbábue, me vêm à mente - dominaram a crônica histórica de seus países do mesmo jeito que Lee Kuan Yew. Nascido em uma família chinesa abastada, em 1923, sob a profunda influência tanto da sociedade colonial britânica quanto da brutal ocupação japonesa que chacinou algo como 50 mil pessoas na ilha na década de 1940, o outrora chamado "Harry Lee", com seu diploma de Cambridge na mão, começou assumindo proeminência como líder de um movimento anticolonial de tendências esquerdistas nos anos 1950. Vendo se solidificar seu poder pessoal com a ascensão do Partido da Ação Popular, LKY tornou-se o primeiro-ministro inaugural da ilha, posto que ocupou por 26 anos. Depois, foi ministro sênior por mais 15 anos. Seu atual status de Ministro Mentor foi-lhe atribuído quando seu filho, Lee Hsien Loong, assumiu o cargo de primeiro-ministro em 2004.

No início de seu governo, LKY concebeu o celebrado "modelo de Cingapura", que converteu um país de 697 quilômetros quadrados (cerca de 3% da área de Sergipe, o menor estado brasileiro), sem recursos naturais e com uma miscelânea de etnias, numa espécie de "Cingapura S/A". Ao construir uma infraestrutura de transportes e comunicações, atraiu investimentos estrangeiros, ao mesmo tempo que estabelecia o inglês como língua oficial e criava um governo eficiente, com administradores recebendo salários equivalentes aos das empresas privadas. LKY também caiu de pau na corrupção, até extingui-la. Esse modelo - mistura singular de estímulo econômico e estrito controle das liberdades pessoais - inspirou imitações na China, na Rússia e na Europa.

Para liderar uma sociedade, diz LKY em seu inglês vitoriano, "é preciso entender a natureza humana. Sempre achei que a humanidade parecia o mundo animal. A teoria de Confúcio reza que o homem pode ser aperfeiçoado, mas não tenho certeza. O que ele pode é ser disciplinado".

Em Cingapura, isso se traduziu em leis que proíbem jogar lixo e cuspir nas ruas e deixar de dar a descarga nos toaletes públicos, com multas e denúncias nos jornais contra os infratores. Significou também educar o povo, industrioso por natureza, convertendo lojistas em trabalhadores high-tech no espaço de poucas décadas.

Com o tempo, diz o MM, os cingapurianos tornaram-se "menos empenhados, menos obcecados pelo trabalho". Por essa razão, foi uma boa ideia, segundo ele, acolher no país tantos chineses (25% da população atual nasceu no estrangeiro). Ele está ciente de que muitos cingapurianos se mostram descontentes com o afluxo de imigrantes, sobretudo os mais graduados que vêm disputar os empregos mais bem remunerados. No entanto, ele descreve os novos súditos da nação como "famintos por sucesso", com pais que "estimulam ao máximo seus filhos". Se os cidadãos nativos estão ficando para trás é porque "não estão dando no couro" - eis o problema.

Se existe uma palavra para sintetizar a condição existencial de Cingapura, ela é kiasu, termo chinês que significa "medo de perder". Em uma sociedade que começa a monitorar seus estudantes desde os 10 anos de idade, agrupando-os pelos resultados de testes ("especial" e "expresso" estão no topo da lista; "normal" designa aqueles que seguirão como mão de obra para as fábricas e o setor de serviços), o kiasu é internalizado desde cedo, germinando sob a forma de brilhantes alunos de engenharia e de arranha-céus fálicos com uma loja da Bulgari no térreo.

Os cingapurianos são craques em obter o primeiro lugar em tudo, mas, em um mundo regido pelo kiasu, ganhar nunca traz plenitude, pois é uma experiência que carrega com ela o pavor de parar de ganhar. Quando o porto de Cingapura, com o maior tráfego de contêineres no mundo, ficou atrás de Xangai, em 2005, em tonelagem total de carga, foi uma calamidade nacional.

Em um ensaio para as comemorações do Dia da Pátria, presenciei uma espantosa celebração dos valores antifracasso. As Forças Armadas de Cingapura encenaram uma operação para subjugar uma camarilha de terroristas que havia fuzilado meia dúzia de criancinhas em trajes vermelhos de ginasta e portando flores, abandonando-as "mortas" no palco. "Não somos a Coreia do Norte, mas bem que tentamos", diz um observador ao comentar o desfile de tanques, helicópteros Apache e salvas de 21 tiros de canhão. Em todo lugar você ouve alguém dizer que o único jeito de Cingapura sobreviver, rodeada como está de vizinhos peso pesados, é manter-se em constante vigilância. O orçamento militar de 2009 foi de 11,4 bilhões de dólares - 5% do PIB do país, uma das maiores taxas mundiais.

Você nunca sabe de onde virá a ameaça ou que forma ela assumirá. No verão passado todo mundo entrou em pânico por causa da gripe suína. Inspetores usando máscara se posicionaram pela cidade. Num sábado à noite, não havia jeito de entrar em uma das boates do Clarke Quay, o reurbanizado cais do rio Cingapura, sem que uma hostess pressionasse uma pistola-termômetro contra a sua testa. Isso fazia parte do interminável estado de sítio cingapuriano. Muitos dos novos conjuntos habitacionais dispõem de um abrigo antibomba completo, inclusive com porta de aço. Depois de algum tempo, a percepção do perigo e a complacência com as regras são internalizadas pelas pessoas. Uma das coisas que você menos vê em Cingapura é polícia. "O tira está dentro da nossa cabeça", afirma um morador.

A autocensura é feroz. Lidar com os poderes constituídos é "uma dança", comenta Alvin Tan, diretor artístico do Necessary Stage, grupo teatral sem fins lucrativos que já encenou várias peças que abordam temas sensíveis, como pena de morte e sexualidade. Tan gasta muito tempo com os censores do governo. "Você precisa se valer de uma abordagem apropriada", diz. "Se eles dizem ‘sul’, você não deve dizer ‘norte’. Você diz ‘nordeste’. Comece por aí. É uma negociação."

Aqueles que não dançam conforme a música logo se tocam do que está acontecendo. Veja o caso de Siew Kum Hong, um cingapuriano de 35 anos que imaginava estar servindo à causa da liberdade ao assumir o cargo de MNP - ou Membro Nomeado do Parlamento. Com apenas quatro parlamentares de oposição eleitos na história do país, o partido no poder achou que os MNPs emprestariam ao sistema político uma aparência de "estilo mais consensual de governo, em que os pontos de vista são ouvidos, e as dissensões construtivas, acomodadas." Era assim, conta Siew Kum Hong, que ele encarava seu cargo, antes de ser preterido em um novo mandato.

"Eu imaginava estar fazendo um bom trabalho", diz Hong. Mas, quando ele deu seu primeiro voto negativo, relativo a uma resolução que lhe parecia discriminativa contra os gays, seus colegas "permaneceram em absoluto silêncio. Era a primeira vez, desde que entrei para o Parlamento, que alguém votava pelo ‘não’." Quando ele votou negativo pela segunda vez, para uma lei diminuindo o número de pessoas que poderiam se reunir para um protesto, a reação foi igualmente fria. "É assim que eles encaram os pontos de vista alternativos", conclui Hong.

O governo de cingapura não se mostra indiferente às desvantagens de ter uma sociedade sob intenso controle. O Estado empreendeu uma campanha contra a grande conquista linguística de Cingapura, o singlish, um patuá multiculturalista que fusiona malaio, chinês hokkien (falado fora da China por todo o Sudeste Asiático), tâmil e o inglês rueiro. Para quem se senta em um Starbucks e ouve os adolescentes dizendo coisas como "You blur like sotong, lah!" (algo como "Você é mais tonto que uma lula, cara!"), o singlish soa como um veemente ataque subversivo ao espírito de conformidade que o governo tenta superar. Por outro lado, uma das maiores contradições do singlish é a irônica clonagem que ele faz da popularesca e cafona cultura "Ah Beng", trazida pelos imigrantes chineses e seus equivalentes malaios envergando óculos escuros. Logo se vê que isso não tem futuro num ambiente em que o MM vem advogando o "acasalamento seletivo", a ideia de que os universitários deveriam se casar apenas com outros colegas universitários, de maneira a elevar o nível da população.

Talvez o problema mais inquietante com o qual o país se defronta derive de seu programa de controle populacional, de flagrante sucesso, que nos anos 1970 adotou o slogan "Dois é o bastante". Hoje em dia os cingapurianos simplesmente não estão mais se reproduzindo, e a nação depende dos imigrantes para manter a população em crescimento. O governo oferece bônus atrelados aos nascimentos, além de longa licença-maternidade. Mas nada disso vai ajudar muito se os cingapurianos não começarem a fazer mais sexo. Segundo pesquisa encomendada por uma fábrica de preservativos, os habitantes de Cingapura têm menos relações sexuais que qualquer outro povo da Terra. "Nossa população está encolhendo", diz o MM. "Nossa taxa de fertilidade é de 1,29. Esse é um fator preocupante." E poderia ser o erro fatal do modelo de Cingapura: a eventual extinção dos cingapurianos.

Há, contudo, um aspecto positivo nessa engenharia social. Dava para sentir isso durante a produção das atrações no estilo "We are the World" para o show no Dia da Pátria. No palco havia representantes dos grupos étnicos majoritários de Cingapura, chineses, malaios e indianos, todos envergando vestes coloridas. Depois da onda de distúrbios nos anos 1960, o governo instalou um estrito sistema de cotas nos conjuntos habitacionais, de modo a assegurar que os grupos étnicos não viessem a criar seus próprios bairros monolíticos. Tal prática pode ter mais a ver com controle social que com verdadeira harmonia multirracial, mas, durante os ensaios, era difícil deixar de se comover diante do esforçado show de fraternidade. Apesar de toda a artificialidade, existe algo no país que pode ser chamado de cingapuriano para valer. O povo vive reclamando, mas Cingapura é a terra deles e todos a amam, a despeito das mazelas. Isso faz com que você também goste do lugar.

A grande questão é que as coisas estão a ponto de mudar. "Todos sabemos que o MM vai morrer um dia", comenta Calvin Fones, psiquiatra que presta atendimento em uma clínica no Hospital Gleneagles. Fones compara sua pátria a uma família. "Quando o país era jovem, havia a necessidade de supervisão - de mão firme. Agora chegamos à adolescência, que pode ser um período de questionamentos e agitações. Atravessá-lo sem a presença do patriarca será um teste."

O grande motor da mudança cultural, com certeza, é a internet, essa mosca cibernética que posou na sopa autoritária. Lee Kuan Yew reconhece a ameaça. "Banimos a Playboy nos anos 1960, e ela ainda se encontra banida. Mas agora, com a internet, você tem acesso a muito mais." Tentar uma censura à internet, como tem sido feito na China, não teria sentido, afirma LKY, demonstrando peculiar pragmatismo.

Assim, os blogueiros, como o satírico Mr. Brown e o combativo Yawning Bread (Pão Amanhecido), estão liberados para divulgar opiniões que não se encontram nas páginas do jornal pró-governamental Straits Times. Como resultado, os jovens começam a demandar mais liberdade política e menos controles sociais.

Cingapura pode ser um lugar desconcertante, mesmo para os que a chamam de lar, embora ninguém pense em deixá-la. Como diz um morador, "Cingapura é como um banho quente. Você afunda n’água, corta seus pulsos, vê sua vida se escoar em sangue, mas, tudo bem, a água está quentinha". Se for esse o caso, a maioria dos cingapurianos se imagina mergulhando em banheiras enquanto saboreiam caranguejos na pimenta com uns pasteizinhos de frango ao curry para acompanhar. Comer é o verdadeiro passatempo, o refúgio da nação. Digo por mim mesmo: quanto mais me demorava ali, mais eu comia. Chegou a um ponto em que, depois de ficar 20 minutos em uma fila para conseguir saborear um prato no estande da Tian Tian, no Maxwell Road Food Center, apinhado de gente, me vi entrando de novo na fila.

Em meu último dia ali, subi a colina da Reserva Natural de Bukit Timah, próxima ao centro da cidade, o ponto mais elevado da ilha, com seus 163 metros de altura, e o lugar mais parecido com a selva que ela foi um dia. Na inesperada quietude do lugar, lembrei-me do que o MM havia dito sobre a crença confuciana de que "o homem pode ser aperfeiçoado". Isso, dissera o velho ministro depois de exalar um suspiro, não passava de um jeito otimista de encarar a vida. Porque, de fato, as pessoas abusam da liberdade.

Essa é a pinimba que ele tem com os Estados Unidos: os direitos dos indivíduos de fazer o que bem entendem permitem que eles se comportem mal às expensas de uma sociedade ordeira. Como se diz em Cingapura, de que valem todos esses direitos se dá medo de sair à noite?

Quando cheguei ao topo da colina, eu achava que seria recompensado com uma visão panorâmica de toda a cidade-Estado. Mas não havia vista nenhuma - só uma torre de comunicações enferrujada e uma cerca anticiclones, na qual um aviso numa placa alertava "Lugar protegido", perto de um desenho de tipo infantil que mostrava um soldado a apontar um fuzil para um homem com os braços erguidos.

Mais tarde, mencionei esse desenho a Calvin Fones, o psiquiatra. "Veja, isso demonstra o progresso que fizemos", diz ele. "Até alguns anos atrás, o mesmo aviso exibia um cara prostrado no chão, já fuzilado." Em seguida, como bom cingapuriano vivendo uma vida que não imaginava possível em nenhum outro lugar, ele riu.

National Geographic Brasil

Nenhum comentário:

Geografia e a Arte

Geografia e a Arte
Currais Novos