quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Securitização e dessecuritização da Amazônia contemporânea


Securitização e dessecuritização da Amazônia contemporânea, por João Nackle Urt & Alexandre Felipe Pinho

26/01/2010
Finda sua relativa importância geopolítica no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em face do caráter estratégico da borracha para a indústria bélica da época, a Amazônia saiu do foco das opiniões públicas mundiais, acompanhando o caráter periférico que a América do Sul assumiu na Guerra Fria. Somente a partir da década de 1970, com a emergência do tema ambiental na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Estocolmo, 1972), a Amazônia ensaiou um retorno à agenda global. Embora inicialmente tímida, a inserção da região amazônica nos assuntos internacionais foi crescente nas décadas de 1980 e 1990. Atualmente, a julgar pela importância conquistada pela temática ambiental, seu lugar na agenda internacional é permanente. Esse foco da opinião pública mundial tem despertado diferentes formas de discursos securitizadores, levando o debate sobre a Amazônia do campo da política para o campo da segurança.

O conceito de securitização, lançado por Buzan, Waever e de Wilde (1998), abarca a idéia de que não existe uma segurança internacional objetivamente considerada. Para esses autores, toda ameaça é socialmente construída por meio de discursos de atores significativos na esfera da segurança internacional, passando pela aceitação do público. Segurança, portanto, é “uma prática auto-referencial [...] não necessariamente porque uma ameaça existencial realmente existe, mas porque o assunto é apresentado como tal”. Securitização é “o uso da retórica da ameaça existencial com o objetivo de levar um assunto para fora das condições da ‘política normal’”, justificando assim a adoção de medidas de emergência, de procedimentos políticos extraordinários e eventualmente o uso da força (1998, p. 24-25).

A securitização da Amazônia tem ocorrido pelo menos de duas formas, potencialmente opostas entre si. A primeira é a securitização ambientalista, que define a floresta amazônica como objeto referente e sua destruição como a principal ameaça existencial, tanto pela redução da biodiversidade, quanto pela emissão de gases estufa e pela destruição de etnias minoritárias. Buzan e Waever afirmam que, especialmente no Brasil, a securitização ambiental é temida como potencial fundamentação para o intervencionismo norte-americano (2003, p. 333).

A segunda, ocorrida em grande parte em reação à primeira, é a securitização política, com forte teor nacionalista, que define a principal ameaça existencial na região como o risco de “internacionalização” da Amazônia, isto é, o desrespeito à soberania dos países titulares de seu território por grandes potências do Norte desenvolvido, diretamente ou por meio de ONGs, mas também passando pelas chamadas “novas ameaças”, freqüentemente de caráter transnacional, de que são exemplos o narcotráfico, a imigração ilegal, a biopirataria, entre outras. Entram aí também as ameaças tradicionais, especialmente após a subida ao poder do venezuelano Hugo Chávez, cuja retórica revolucionária neobolivariana freqüentemente tem despertado sentimento de insegurança entre países vizinhos.

Em suma, a segurança da Amazônia tem sido definida por ações securitizadoras de sentidos opostos, que se retroalimentam. De um lado, ambientalistas partem do pressuposto (nem sempre verdadeiro) de que os Estados sul-americanos são ineptos para lidar com os problemas atinentes à floresta. Por isso, produzem discursos no sentido de intensificar a atuação de atores extra-amazônicos para assegurar a preservação dos valores ambientais relacionados com a preservação da floresta. De outro lado, setores nacionalistas das sociedades amazônicas, em reação aos discursos descritos acima, securitizam fortemente a integridade de seus territórios, destacando de várias formas a legitimidade de suas soberanias.

Tal dinâmica lembra os dilemas de segurança interestatais, em que o fortalecimento militar de um Estado promove o aumento da insegurança do seu vizinho. Estaríamos assistindo a um “dilema de securitização”, em que o fortalecimento da securitização ambiental gera aumento da sensação de insegurança pelos setores político e militar?

Vale lembrar que, segundo Buzan, Waever e de Wilde, a securitização de um assunto significa sua apresentação como tão urgente e importante que não deva ser exposto ao manejo político normal, institucionalizado, democrático. “Basicamente, a segurança deve ser vista como negativa, como uma falha em lidar com certos assuntos como sendo integrantes da política normal” (Buzan, Waever e de Wilde, 1998, p. 29). Parafraseando esses autores, no longo prazo, o ideal é a promoção da dessecuritização da Amazônia, isto é, o resgate dos valores ambientais e humanos contidos na floresta amazônica para o âmbito do jogo político normal.

Também a favor da dessecuritização da Amazônia, entendida como a superação da securitização com base nos discursos ambientalistas e seus reversos nacionalistas, vale trazer a opinião de Bertha Becker, de que na Amazônia contemporânea a penetração das grandes potências “não mais visa a apropriação direta dos territórios, mas sim o poder de influir na decisão dos Estados sobre seu uso” (Becker, 2007:34). Essa tendência reforça o padrão histórico de respeito às soberanias locais. Com efeito, diferentemente da América Central e do Caribe, a América do Sul não tem sido historicamente alvo de intervenções estrangeiras, sendo que os próprios Estados Unidos abriram mão, desde o começo do século XX, das estratégias de intervenção direta na região, em favor de uma estratégia de penetração econômica (Buzan e Waever, 2003, p. 310).

Tendo em vista que a continuada destruição da floresta parece ser o gatilho que dispara a dinâmica securitária, pode-se argumentar que o aprofundamento da soberania dos países amazônicos – especialmente a soberania voltada para dentro, isto é, a efetiva capacidade dos Estados de fazer valer o império da Lei sobre seus territórios, notadamente no combate ao desmatamento – deve conduzir a uma progressiva dessecuritização ambiental da Amazônia, interrompendo assim o ciclo vicioso atualmente em andamento. Por outro lado, o aprofundamento da soberania nesses Estados deve favorecer um enquadramento jurídico claro e efetivo da atividade dos atores não-estatais (cientistas, empresas e ONGs), reduzindo sua percepção como ameaça entre as sociedades amazônicas.


Referências bibliográficas
BECKER, Bertha K. Amazônia: Geopolítica na virada do III milênio, Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
BUZAN et alli, Security: a new framework for analysis. London: Lynne Rienner publishers, 1998.
______ & WAEVER. Regions and powers: the structure of international security. Cambridge: University Press, 2003.
João Nackle Urt é Professor da Universidade Federal de Roraima – UFRR, especialista e mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB (joaourt@gmail.com).

Alexandre Felipe Pinho é graduando em Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima – UFRR

Meridiano 47

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