sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Polícia - Sem medo da verdade

Sem medo da verdade
A polícia é despreparada, mal equipada, mal remunerada,
e a corrupção grassa nas corporações. A avaliação é
dos próprios policiais, em pesquisa exclusiva para VEJA.
Na coragem de pôr o dedo na ferida está a chave para
vencer o crime no Brasil

Ronaldo França

Fotos Fabiano Accorsi e Fernando Lemos

Um assassinato a cada doze minutos. É esse o ritmo da tragédia brasileira. É o número por trás da atmosfera de medo que domina as ruas de todas as grandes cidades do país. Ele se traduz em 45.000 homicídios por ano. E vem dramaticamente acompanhado de uma quantidade igualmente estratosférica de todos os outros tipos de crime, como assaltos, roubos a residências ou estupros. Esse conjunto nefasto empurra os cidadãos para dentro de casa, afastando-os das ruas e praças, que ficam à mercê dos bandidos. O medo mina o ambiente nas cidades, nos negócios, afasta investimentos e traz enormes prejuízos às famílias. Encarar essa questão é uma das emergências do país. O Brasil já se mostrou capaz de resolver problemas aparentemente insolúveis. Venceu a inflação supersônica, na década passada, para se tornar uma liderança entre as economias emergentes deste início do século XXI; com sua disciplina econômica, foi dos primeiros países a se distanciar do vórtice da crise financeira mundial. Não é possível que não consiga lidar também com o problema da criminalidade e combater a inépcia de suas polícias. Não mais.

A essa constatação, segue-se uma indagação inevitável. O que falta às polícias brasileiras para que consigam restaurar um nível civilizatório de segurança nas cidades? A resposta a essa questão, tratada ao longo das dezesseis páginas desta reportagem especial, começa a emergir da pesquisa CNT/Sensus, feita a pedido de VEJA. O principal mérito do levantamento é colocar frente a frente a opinião de uma polícia sobre a outra – e também sobre os problemas que enfrentam em suas próprias corporações. Algo assim nunca foi feito no país. Principalmente porque a pesquisa foi elaborada com a melhor metodologia, a mesma usada em eleições presidenciais. Foram ouvidos policiais de cinco cidades – São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Recife e Brasília. Juntas, elas abrigam mais da metade da população das capitais brasileiras e sediam regiões metropolitanas que sintetizam os principais problemas das cidades do país. A empreitada teve apoio das secretarias de Segurança. O confronto das visões dos integrantes das duas instituições traz revelações importantes.

Gustavo Azeredo/Ag. O Globo

UM EMBLEMA DO QUE HÁ DE PIOR
O ex-chefe da Polícia Civil do Rio Álvaro Lins acabou preso: corrupção,
lavagem de dinheiro, quadrilha...

A profundidade dos tentáculos da corrupção no aparato policial começa a ser exposta: existe "muita corrupção" na Polícia Civil para 10% dos policiais militares de Brasília, o menor porcentual, e 46% no Rio de Janeiro, o pior de todos. Na média das opiniões das polícias Civil e Militar, o porcentual dos que admitem a existência da corrupção aproxima-se dos 90% nas cinco capitais.

É elevada a quantidade de policiais que afirmam haver práticas de tortura em "ambas as corporações". E nesse ponto ninguém fica bem. São Paulo e Brasília, os menos mal cotados, apresentam índices de 17% e 16%, apontando para a gravidade do problema.

A polícia do Distrito Federal, cujos salários são os mais altos do país, desponta na primeira colocação na maioria dos quesitos.

O Rio de Janeiro é o mais mal avaliado. Perguntados sobre a qualidade em aspectos fundamentais como seleção de pessoal, policiamento ostensivo, os militares foram extremamente severos. O Rio fica em última posição entre as capitais pesquisadas.

Oscar Cabral

HONRA E MORAL PRESERVADOS
Major Elmo Moreira: padrão de vida modesto após 27 anos de serviços prestados à Polícia Militar do Rio de Janeiro

O mérito do levantamento realizado agora é dar nome aos bois e pôr o dedo na ferida como nunca foi feito. O costume de avaliar polícias sempre de maneira pretensamente abrangente incorre no vício do coletivismo, que despreza o essencial: elas são compostas de indivíduos que, como todos, querem progredir e construir o melhor para a vida deles. É esse um dos principais achados da pesquisa. Críticos em relação a seu trabalho, os policiais querem ser mais bem treinados e consideram que as chefias e a gestão administrativa deixam a desejar. Sentem-se desmotivados, ressentem-se da constatação de que a sociedade brasileira não confia neles, e reclamam do escasso investimento profissional. São ainda mais críticos do que a população em geral quando o assunto é a propina, a praga que deteriora o ambiente nas cidades e põe em risco a vida de quem leva a sério a tarefa de fazer cumprir a lei. Sim, porque a corrupção arma emboscadas.

O major da Polícia Militar do Rio de Janeiro Elmo Moreira, 48 anos, já deparou com situação assim. Durante os dezesseis anos em que serviu no Batalhão de Operações Especiais do Rio de Janeiro, viveu na linha de tiro nos enfrentamentos da polícia com os bandidos cariocas. Acostumado a vencer o medo, assustou-se com um telefonema. Em 1999, estava com sua equipe no alto do Morro do Fogueteiro, uma perigosa favela carioca. Acabara de apreender 350 quilos de cocaína quando tocou seu telefone funcional, cujo número era conhecido apenas por seus subordinados e superiores. Do outro lado da linha, o chefe do tráfico local queria "comprar" de volta a "mercadoria". É assim, como um comércio, que muitos policiais e bandidos veem a ação da polícia do Rio. VEJA entrevistou Moreira em sua casa há nove anos. Ele se aposentou no mês passado, depois de 27 anos de serviço e de ter tido em suas mãos o enorme poder de arrecadação que um oficial da PM desfruta no cotidiano violento de uma cidade sitiada por bandidos. Sua casa, na empobrecida Zona Oeste do Rio, teve apenas os progressos que seu salário de 5 800 reais pode pagar. Nove anos atrás, havia um ar-condicionado pequeno para refrigerar seu quarto e o de seus filhos, ligados por um buraco na parede. Agora já são dois aparelhos, mas as dificuldades da vida permanecem estampadas na modesta casa construída nos fundos do terreno cedido pelo sogro. "Meus filhos levam vida simples, mas a dignidade e a honra de minha família são nosso patrimônio", afirma. É o valor da honestidade. Um oásis no deserto da escassez moral que desidrata a segurança dos cidadãos brasileiros.

Os descalabros ocorrem, sim. Aos montes. Em São Paulo, um secretário adjunto de Segurança foi afastado após denúncias de venda de cargos na direção da Polícia Civil. Em outubro de 2008, Lindemberg Fernandes Alves, de 22 anos, invadiu o apartamento de sua ex-namorada Eloá Cristina Pimentel, de 15 anos, em Santo André. Ele fez reféns a ex-namorada e sua amiga Nayara Silva. A ação da polícia paulista no episódio foi trágica. Depois de mais de 100 horas de negociações, uma invasão desastrada resultou na morte de Eloá. Em Manaus, um policial virou apresentador de programa de TV e mostrava cadáveres que ele mesmo encomendava. Na Polícia Civil do Rio, havia uma quadrilha instalada nos principais postos de comando. O ex-chefe Álvaro Lins foi preso pela Polícia Federal de-pois que se encontraram evidências de corrupção, enriquecimento ilícito e formação de quadrilha, da qual é acusado de ser o líder. Na origem de todos esses fatos está a péssima gestão que se verifica na maioria das polícias brasileiras, cujos comandos ainda acreditam que tudo se resolve com mais policiais e armamento cada vez mais pesado. "A pesquisa mostra um sério problema de gestão. O Brasil tem uma das maiores proporções de policiais por habitante, mas a maioria dos entrevistados considera que seriam necessários mais homens na rua", afirma o ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva.


Os serviços de segurança pública custam aos brasileiros 16 bilhões de reais por ano. Se não fosse por todas as outras razões, muito mais importantes, haveria esta a exigir um padrão de qualidade superior. No entanto, é mínimo o nível de satisfação com o serviço pelo qual se paga. Além de ouvir os policiais, a CNT/Sensus fez uma pesquisa com a população, na qual entrevistou 1.000 pessoas em 24 estados. Para 80% dos brasileiros, a situação da violência está fora de controle; e as ações da polícia para acabar com o crime são inadequadas, segundo 53% dos entrevistados. A formação dos policiais está aquém do esperado por 60% das pessoas. É um diagnóstico grave. A população está com medo e confia pouco na polícia (46% das respostas). A vida nas cidades é insegura para um terço dos moradores. E o medo sabota as cidades. Ruas vazias são territórios de gangues. Retomar os espaços urbanos das mãos dos bandidos tem um efeito profilático contra o crime. Mas a operação de desembarque dos brasileiros de volta às suas ruas e praças e aos passeios noturnos não pode ser um ato de coragem individual. Ela tem de ser liderada por suas polícias. Isso só acontecerá se, antes, elas mesmas se libertarem das amarras que sequestram sua eficiência.

Domingos Peixoto/Ag. O Globo

QUERO SER ASSIM
Polícia Federal em ação: a instituição é referência para policiais militares

Revista Veja - 2009

Corredor verde


A maior área de preservação ambiental do mundo fica, agora, na Amazônia brasileira. Trata-se de um corredor de 3.000 quilômetros de extensão que abrange um território maior do que o da França. Ele é duas vezes maior do que a faixa contígua formada pelas reservas Vilcabamba-Amboró, na Bolívia e no Peru, até então a mais extensa do planeta. Boa parte da área de conservação brasileira já havia sido criada nos estados do Amazonas e do Amapá. Há duas semanas, foi completada por cinco reservas instituídas pelo Pará na margem norte do Rio Amazonas. O novo trecho é conhecido como Escudo das Guianas e está situado na parte mais alta da Amazônia. A região é montanhosa e, ao contrário do resto da floresta, não chegou a ser inundada nem mesmo durante os períodos de degelo que se seguiram às eras glaciais. Como permaneceu seca por 10 milhões de anos, tornou-se o berço de boa parte das espécies da fauna e da flora que formam a exuberante biodiversidade amazônica.

Hoje, vivem nessa região do Pará mais de 1 000 espécies de aves, mamíferos, répteis e anfíbios. Algumas delas ainda não foram sequer catalogadas pelos biólogos, como o sapo azul e laranja, que pode ser visto numa das fotos ao lado. A sobrevivência desses animais depende de um delicado equilíbrio ambiental, que só permaneceu intacto até hoje porque a margem norte do Rio Amazonas está longe de áreas exploradas economicamente. Madeireiros e agricultores não impuseram obstáculos à criação dessas reservas. Em contrapartida, obtiveram do governo paraense a promessa de liberação do uso comercial de áreas que já haviam sido desmatadas ilegalmente. Conseguiram ainda que o estado garantisse que não criará outras unidades de conservação. "As reservas já tomam 65% do Pará. Agora, chega", diz Agamenon Meneses, da Federação da Agricultura do Estado. Mas as árvores e os bichinhos chegaram antes, Meneses, é bom não esquecer. 20 de dezembro de 2006

Revista Veja

A agonia dos oceanos


A agonia dos oceanos

Cinco situações-limite mostram o nível
alarmante de deterioração dos mares
causada pela ação humana


Leoleli Camargo

Durante muito tempo, acreditou-se que a vastidão dos oceanos seria capaz de anular as agressões que a ação humana lhes impõe. Vazamentos de óleo e de produtos químicos, por exemplo, ocorrem com freqüência e produzem imagens chocantes. Mas sempre pareceram uma gota na imensidão, de forma que se avaliava que o mar acabaria por anular os efeitos rapidamente. Agora, diante de uma série de fenômenos recentes e inesperados, os biólogos alertam para uma situação muitíssimo mais grave: os oceanos estão doentes e, em muitos casos, ultrapassou-se a capacidade de auto-regeneração. Evidentemente, a ação do homem é decisiva para a deterioração das águas. Nos atóis do Pacífico e no norte da Europa, observa-se a queda abismal dos cardumes de peixes, dos mamíferos marinhos e dos bancos de corais, enquanto cresce a quantidade de algas tóxicas e águas-vivas. Focas, leões-marinhos e golfinhos morrem aos milhares na costa da Califórnia, fulminados por toxinas que até pouco tempo atrás não existiam na região. No Golfo do México, as marés vermelhas, que matam os peixes e lançam no ar substâncias que atacam o sistema respiratório de seres humanos, são cada vez mais freqüentes. Para espanto dos cientistas, algas venenosas que habitavam os mares nos tempos dos dinossauros voltaram a proliferar em uma dúzia de pontos do planeta.

Há várias causas para esses desastres naturais, mas todas têm uma origem em comum: a quantidade cada vez maior de resíduos da atividade humana que vão parar nos oceanos. O conteúdo das fossas e tubulações de esgoto doméstico, os dejetos industriais, os fertilizantes e as substâncias químicas usadas na agricultura e na pecuária – todos esses elementos são ricos em nutrientes básicos, compostos de nitrogênio, carbono, ferro e fósforo, que alteram a composição química dos mares. Eles favorecem a proliferação de algas e bactérias que, em excesso, consomem boa parte do oxigênio da água, sufocam os corais, comprometem a cadeia alimentar dos oceanos e, por extensão, a sobrevivência dos animais.

As emissões de dióxido de carbono (CO2) pela queima de combustíveis fósseis também colaboram para a degradação dos mares. Parte dessas emissões vai para a atmosfera e forma o chamado efeito estufa. Outra parte vai parar nos oceanos e torna a água cada vez mais ácida. Para completar, os materiais plásticos lançados como lixo nos mares, que antes apenas enfeavam as praias, hoje são responsáveis pela morte em massa de pássaros que vivem nos litorais. "A composição química dos oceanos mudou mais rapidamente no século XX do que nos últimos 650.000 anos", disse a VEJA o oceanógrafo Richard Feely, do National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), órgão do governo americano. A dimensão negativa dessas mudanças e o que se pode fazer para evitá-las são o assunto desta reportagem, que se concentra na análise de cinco pontos indicados pelos especialistas como os mais críticos.

1 A ÁGUA ESTA CADA VEZ MAIS ÁCIDA

Tornou-se consenso que o dióxido de carbono (CO2) produzido pela queima de combustíveis fósseis é o responsável pelo aquecimento global. Menos conhecidos são seus efeitos nos oceanos, que absorvem boa parte do dióxido de carbono produzido pela ação humana. Quando o CO2 chega aos mares, o poluente se transforma em ácido carbônico, alterando o nível de acidez – o chamado pH – da água. Nas últimas décadas, o pH dos mares vem diminuindo a um ritmo cada vez mais acelerado. Os pesquisadores prevêem que, no fim deste século, caso se mantenha essa diminuição, o pH chegará a 7,9, o que tornará os oceanos vinte vezes mais ácidos do que hoje. Nesse cenário, muitos peixes e animais marinhos terão dificuldade para respirar. O sistema reprodutivo de algumas espécies também será afetado. Estudos feitos em laboratório com água apresentando pH de 7,9 mostram que, sob essas condições, as estruturas de alguns tipos de zooplâncton, compostas de carbonato de cálcio, são corroídas rapidamente – hoje, esse processo já ocorre, embora de forma lenta. Essa não é uma boa notícia, já que o zooplâncton é a base da cadeia alimentar de muitos peixes e mamíferos aquáticos. A acidez também ataca os corais, que se formam mais lentamente ou se deterioram, num fenômeno conhecido como branqueamento. Calcula-se que 60% dos corais do mundo já foram afetados pela diminuição do pH da água salgada.

Os especialistas suspeitam que o aumento da acidez dos oceanos terá outro efeito perverso – o de amplificar o aquecimento global. Os eocolitoforídeos, um tipo de fitoplâncton formado por carbonato de cálcio e também suscetível à acidez, brilham e refletem de volta para o céu parte dos raios solares que incidem sobre o mar. Sem eles, os raios não fariam o caminho de volta e o mar se tornaria mais quente. Através das eras geológicas, os oceanos sempre absorveram o excesso de CO2 da atmosfera, evitando o superaquecimento do planeta. Não fosse por eles, a temperatura da Terra teria aumentado 2 graus, em vez de apenas 1, no último século. Com o excesso de CO2 produzido pelo homem, eles hoje absorvem dez vezes mais esse gás venenoso. No próximo relatório do Painel Intergovernamental de Mudança Climática das Nações Unidas, a ser divulgado em 2007, a crescente acidez dos mares pela primeira vez será apontada como um problema grave.

2 CRESCE O NÚMERO DE ZONAS MORTAS

Metade da população do globo mora e trabalha em regiões costeiras – calcula-se que 2.000 famílias se instalem diariamente em áreas próximas aos litorais. A ocupação dessas áreas faz com que um fluxo crescente de água doce contaminada por resíduos de insumos agrícolas, dejetos de gado e esgotos doméstico e industrial seja despejado nos oceanos. Todos esses materiais descartados são ricos em nutrientes, que favorecem a proliferação de algas de vários tipos. As algas são parte da vida marinha, mas, em excesso, transformam-se numa ameaça para todas as outras espécies vegetais e animais. Ao morrerem, elas se depositam no fundo do mar, onde são degradadas por bactérias. Quando há algas demais, a ação desses microrganismos consome a maior parte do oxigênio da água, fazendo com que todas as formas de vida entrem em colapso. O resultado são as zonas mortas, inabitáveis para a maioria das espécies, salvo organismos que vivem com pouco oxigênio, como algumas bactérias. Nos anos 50, havia no mundo três zonas mortas reconhecidas pelas entidades que estudam os oceanos. Hoje, existem 150 – uma delas no entorno da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro.

O excesso de algas decorrente dos resíduos da ação humana também é mortal para os corais. Mesmo antes de se decomporem, as algas formam um escudo que bloqueia a luz do sol, fundamental para a sobrevivência dos corais. A ocupação acelerada, nas últimas décadas, de uma das regiões turísticas americanas mais conhecidas dos brasileiros, as Florida Keys, provocou um aumento tão intenso no lançamento de esgotos no mar que os quase 350 quilômetros de corais da região estão desaparecendo, vítimas de algas e de bactérias. Embora os recifes de coral cubram menos de 1% do solo dos oceanos, eles servem de abrigo para 2 milhões de espécies, ou 25% da vida marinha. "Cerca de 95% dos recifes de coral do mundo já não abrigam mais uma quantidade de peixes suficientemente variada e numerosa para mantê-los saudáveis", disse a VEJA John McManus, diretor do National Center for Caribbean Coral Reef Research, nos Estados Unidos.

3 ALGAS TÓXICAS MATAM OS SERES MARINHOS

Os mamíferos marinhos são vistos pelos oceanógrafos como um bom indicador da saúde dos oceanos. Quando há alterações no comportamento ou no ciclo de vida desses animais, é porque algo vai mal no ambiente em que vivem. Na última década, mais de 14.000 focas, leões-marinhos e golfinhos apareceram mortos ou doentes nas praias da Califórnia. Muitos deles, examinados por veterinários e biólogos marinhos, mostravam evidências de envenenamento por toxinas produzidas por tipos de alga que recentemente encontraram condições propícias para se reproduzir de forma descontrolada. Os animais se intoxicaram ao comer sardinhas e anchovas que se alimentam dessas algas.

Uma das algas tóxicas mais comuns é a pseudonízschia, que produz ácido domóico, substância que afeta o sistema nervoso. Nos leões-marinhos, essa toxina provoca tremores, convulsões e comportamento agressivo. As fêmeas, normalmente dotadas de forte instinto maternal, agridem e chegam a matar seus filhotes logo após o nascimento. Estudos geológicos feitos no Golfo do México, onde desemboca o Rio Mississippi, mostram que a pseudonítzschia não existia no local até os anos 50. Nessa época, difundiu-se largamente o uso de fertilizantes químicos nas fazendas às margens do rio. Estudos atribuem aos fertilizantes, utilizados desde então, a multiplicação acelerada da alga. As mudanças climáticas também afetam a proliferação de algas tóxicas, fazendo com que elas se reproduzam em locais que antes eram muito frios para a espécie.

Outros tipos de alga tóxica que recentemente passaram a se reproduzir de forma descontrolada enfraquecem o sistema imunológico dos animais marinhos, tornando-os mais vulneráveis a parasitas, vírus e bactérias. No Havaí já foram encontradas tartarugas marinhas com tumores do tamanho de uma maçã em volta dos olhos, na boca e atrás das nadadeiras. Os tumores impedem as tartarugas de enxergar, comer e nadar.

4 AS MARÉS VERMELHAS SÃO MAIS FREQÜENTES

Bill Curtsinger/National Geographic/Getty Images


A MARÉ VERMELHA INVADE OS LITORAIS
A proliferação de algas tóxicas tinge o mar e mata os peixes e outras espécies. Nos seres humanos, causa alergias na pele e problemas respiratórios. Na foto, a maré vermelha nas costas do Alasca.

Sempre que o verão começa, o Mar Báltico fica com a aparência de lama malcheirosa em partes do litoral da Suécia. Os peixes morrem e bóiam na superfície. Quem chega muito perto fica com os olhos ardendo e algumas pessoas têm dificuldade para respirar. Esses são alguns dos efeitos das marés vermelhas, como são chamadas as concentrações de algas tóxicas em águas próximas ao litoral. Até uma década atrás, no Golfo do México esse fenômeno acontecia em média a cada dez anos – hoje, ele ocorre todo ano e chega a durar meses. Marés vermelhas são sinal de oceanos doentes. Elas se devem a uma conjunção de fatores. Entre eles estão a destruição dos pântanos e manguezais próximos à costa e a poluição causada pelo assentamento humano cada vez mais intenso nas regiões litorâneas. Esse cenário diminui a quantidade de peixes e outras espécies marinhas que vivem junto à costa, abrindo caminho para a multiplicação das algas.

Algumas algas produzem toxinas que, além de matar os peixes, são levadas pela brisa marinha até a costa. Em seres humanos, as toxinas provocam incômodo pelo mau cheiro e causam desde reações alérgicas na pele até problemas respiratórios como bronquite e crises de asma. Durante as marés vermelhas, as toxinas produzidas pelas algas podem chegar à mesa do almoço, absorvidas por mexilhões, ostras e outros frutos do mar. A intoxicação por esses alimentos contaminados provoca infecções intestinais e até convulsões e desmaios.

As marés vermelhas também causam perdas financeiras às áreas afetadas. Em diversas regiões da China, onde o fenômeno vem acontecendo com maior freqüência, a pesca comercial fica suspensa enquanto duram as marés. Em regiões turísticas como a Flórida e a Califórnia, as reservas de hotéis são canceladas assim que os alertas de maré vermelha são divulgados.

5 O LIXO PLÁSTICO INVADE OS LITORAIS

Há décadas os ambientalistas insistem que os materiais plásticos descartados no mar representam uma das maiores ameaças ao meio ambiente – para a maioria das pessoas, esse discurso parecia mais folclórico do que real. Pois bem, os ecologistas sempre tiveram razão. Cerca de 90% do lixo que bóia nos oceanos é formado por materiais plásticos. O programa ambiental das Nações Unidas estima que 46 000 peças de lixo plástico flutuam em cada 2,5 quilômetros quadrados dos oceanos. Desse total, quatro quintos chegam até o mar varridos pelo vento ou levados pela água da chuva, pelos esgotos e rios. Um quinto é lançado pelos navios.

O Atol de Midway, localizado próximo ao Havaí, simboliza o drama da poluição causada pelos plásticos. Situado no meio do Oceano Pacífico, ele recebe diariamente o entulho plástico trazido do Japão e da costa oeste dos Estados Unidos por duas correntes que convergem para suas praias. O lixo de Midway causa a morte de quase metade dos 500.000 albatrozes que a cada ano nascem na ilha. Os albatrozes alimentam os filhotes com pedaços de plástico, que confundem com comida. Tartarugas, focas e leões-marinhos também comem as peças plásticas, e muitos deles morrem por asfixia ou lesões internas.

Nem mesmo peixes de pequeno e médio portes escapam da praga dos plásticos. Muitas vezes eles ingerem os pellets – como são chamadas as pequenas bolinhas plásticas com 1 centímetro de diâmetro –, usados pela indústria para produzir os mais variados objetos. Além de poluírem as praias, os pellets podem absorver substâncias tóxicas que não se dissolvem facilmente na água e afetar o ciclo reprodutivo dos peixes. Eles estão presentes também na costa brasileira. "Já encontrei pellets em Santos, em Ubatuba e no Guarujá", diz Alexander Turra, biólogo do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo. 27 de setembro de 2006

Revista Veja

De olho nas remessas africanas


De olho nas remessas africanas
O dinheiro enviado pelos que deixaram o continente para seus familiares representa um nicho de mercado em constante alta e contribui de maneira decisiva para a renda nacional. Os bancos internacionais parecem querer transformar essas transferências numa “solução milagrosa” para a miséria local
Anne-Cécile Robert, Jean-Christophe Servant

"Em todos os países da África subsaariana, o capital humano é mais importante que o capital financeiro, porque pode ser transformado em desenvolvimento de fato. Porém, se não modificarmos a estratégia, podemos enviar todo o dinheiro do mundo à África e o continente continuará pobre” [1], afirma Ravinder Rena, do Instituto Eritreu de Tecnologia. Todos os anos, 200 milhões de imigrantes espalhados pelo planeta enviam mais de US$ 300 bilhões aos seus países de origem. Destes, cerca de US$ 20 bilhões provêm somente de trabalhadores africanos no exterior [2], que aumentaram em 55% suas remessas financeiras, desde o início do século 21.

As instituições criadas pelo acordo monetário de Bretton Woods e os governos ocidentais demonstram particular interesse nesses bilhões de dólares encaminhados à África. De acordo com diversos relatórios oficiais [3], esses fundos constituiriam fontes de financiamento mais seguras e estáveis que os investimentos do setor privado e da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD). Em certos Estados africanos, esse fluxo financeiro pode, de fato, representar até 750% da APD.

Em Cabo Verde, por exemplo, o capital enviado pela diáspora alimenta um quarto da atividade econômica. O Banco Nacional de Gana, por sua vez, estima que o dinheiro dos imigrantes seja equivalente a 20% do montante das exportações do país. E muitos deles nem estão em lugares tão distantes: no Lesoto, 30% do Produto Interno Bruto (PIB) vêm de transferências efetuadas por trabalhadores radicados na vizinha África do Sul, principal receptora de imigrantes do próprio continente.

Mas é na Nigéria, espelho do melhor e do pior da África, que o fenômeno parece mais marcante. Um em cada cinco imigrantes africanos é nigeriano. Eles estão na ponta de uma rede comercial e empresarial espalhada de São Paulo a Houston, de Londres a Dubai, de Nova Déli a Hamburgo e de Londres a Atlanta. Nos últimos dez anos, nada menos do que US$ 28 bilhões teriam sido enviados por nigerianos no exterior a seus irmãos, familiares e associados. Segundo o Banco Mundial, mais de US$ 3 bilhões foram transferidos para o país apenas em 2007 [4]. A Nigéria representa, sozinha, 30% das remessas via agências Western Union implantadas na África subsaariana.

O First Bank, titular da franquia da Western Union no país, abriu mais de 200 agências cuja função central é a gestão desses fundos e transferências. “É claramente a principal atividade do nosso banco”, reconhece Bola Adebanjo, um dos responsáveis locais. Esse filão atraente impulsiona outras redes bancárias nigerianas a estabelecer parcerias com sociedades de transferências de fundos, como fez o United Bank of Africa com a norte-americana Moneygram, em 2007.

Embora vultosas, as remessas, contudo, não têm impacto na macroeconomia desses países — principalmente se levada em conta a perda de mão-de-obra que a imigração representa para esses países
O antigo embaixador dos Estados Unidos na Nigéria, Howard Jeter, considera que o país “deveria dar o exemplo e elaborar políticas que busquem associar seus conterrâneos no estrangeiro”. De fato, diz ele, “a diáspora africana tem granEmde potencial financeiro, técnico e intelectual. A África deve explorar esses recursos humanos e materiais para se fortalecer frente aos desafios do desenvolvimento, da degradação do meio-ambiente, da segurança alimentar, do abastecimento de energia, do vírus da Aids e do crescimento econômico justo” [5].

Porém, ao tentar inserir esses trabalhadores o máximo possível nos circuitos bancários, o mundo ocidental simplesmente impele que “os países em desenvolvimento paguem eles mesmos pelo seu desenvolvimento” [6] — e ainda abocanham uma porcentagem do montante (veja boxe). Um relatório conjunto do Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) e do Ministério da Economia, das Finanças e do Emprego francês, publicado em janeiro de 2008 [7], estudou a situação de cinco nações que “têm em comum laços migratórios e históricos com um mesmo país desenvolvido, a França”.

A enquete, realizada no Senegal, Mali e Ilhas Comores, entre outros, envolveu duas mil famílias que vivem na África. O levantamento observou que, em 2005, 449 milhões de euros teriam sido transferidos para o Senegal (o que significa 19% do PIB e 218% da APD desse país); 295 milhões de euros para o Mali (11% do PIB e 79% da APD) e 70 milhões de euros para as Ilhas Comores (24% do PIB e 346% da APD). De acordo com o estudo, as famílias beneficiárias desses fundos teriam uma renda mensal superior à média nacional.

Essas remessas, contudo, não têm impacto real na macroeconomia desses países. Assim como as propagandas angelicais da Western Union, o grande interesse no dinheiro da imigração africana parece ocultar o fato observado por Jean-Pierre Garson, especialista em questões migratórias na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE): “O impacto sobre o desenvolvimento é discutível, principalmente se levada em conta a perda de mão-de-obra que a imigração representa para esses países”.

É certo que as transferências tiram da extrema pobreza aqueles que permaneceram em seus países de origem. Ao mesmo tempo, porém, as remessas se configuram como uma situação de dependência em relação ao exterior. Além disso, uma ínfima parte desse dinheiro realmente é investida em atividades geradoras de renda. Segundo Rena, “as transferências não contribuem para o desenvolvimento porque não são usadas como investimento. Na maior parte do tempo, servem a atividades improdutivas (transporte, amortização de dívidas, moradia, compra de propriedades). Algumas vezes, também são gastas em consumo ostentatório” [8].

As despesas cotidianas correspondem, assim, a até 80% desses fundos. O restante é destinado ao sonho de qualquer ser humano: uma casa. Em Gana, de acordo com uma equipe interdisciplinar de pesquisadores, esse fenômeno alimenta a especulação imobiliária: “As compras dos imigrantes contribuem com o aumento dos custos de acesso à moradia da população local com rendas mais modestas. Os proprietários preferem vender àqueles que vivem no exterior, porque podem pagar preços mais elevados e em dinheiro” [9].

Os bancos oferecem, a imigrantes regularizados que desejam investir em seu país de origem, uma conta especial, com dedução fiscal de 25%. As intenções reais não escaparam a certos africanos,
Reduzir as remessas e orientá-las para projetos de investimentos duráveis, assim como favorecer uma utilização “mais produtiva” dos fundos são ambições declaradas da nova política francesa de co-desenvolvimento e gestão dos fluxos migratórios. Em Paris, a estratégia é ajudar os candidatos à imigração a ficar em seus países e canalizar os recursos dos já imigrados para projetos na área de saúde, educação e criação de empresas em suas nações de origem. Esse é um dos pontos aprovados na lei de 24 de julho de 2006 e no decreto de 19 de janeiro de 2007 pelo Estado francês.

De acordo com essas regulamentações, os bancos oferecem aos clientes uma conta especial – poupança e co-desenvolvimento – com dedução fiscal de 25%. A modalidade é proposta a imigrantes regularizados que desejam investir em seu país de origem, seja na criação ou retomada de empresas, microfinanças, imóveis comerciais, resgate de fundos de comércio etc. Outro produto, a caderneta de poupança co-desenvolvimento, deverá, em breve, “permitir ao imigrante constituir uma poupança que, posteriormente, dará direito a uma gratificação, caso seja contraído um empréstimo com objetivos de investimento”.

As intenções reais dos autores dessas medidas, no entanto, não escaparam a certos africanos, como o jurista Armand Adotevi, do Benin, que faz um comentário irônico a esse respeito [10]: “Ao perceber que essas remessas poderiam ser uma fonte de captação de recursos e rendimento por meio de instituições do mercado financeiro a curto e médio prazo, em benefício da economia francesa, o mestre anuncia ao aprendiz – usando armadilhas perspicazes como abatimento de impostos e dobrando ou triplicando os interesses cumulativos da poupança – o que é bom para este último e seu país, contornando de maneira insidiosa seus compromissos de auxílio ao desenvolvimento”. E questiona: “Já se viu autoridades políticas africanas intimarem europeus? Pessoas físicas ou jurídicas estabelecidas em países da África, usam a renda que conseguem no continente e se repatriam imediatamente à Europa”?

Esses dispositivos perpetuam mecanismos desiguais de economia e comércio mundial, fornecendo um álibi àqueles que relutam em financiar o auxílio ao desenvolvimento. Além disso, desresponsabilizam as instituições financeiras internacionais e os países ricos ao transferirem o peso das misérias do mundo aos que se submetem a essas medidas.

A pobreza não será erradicada, mas simplesmente reduzida pelas transferências de fundos dos imigrantes. Ademais, a crise financeira poderá colocar em questão essa nova “visão estratégica”, ao reduzir consideravelmente essas remessas.

MERCADO PROMISSOR
As transferências de dinheiro fizeram a fortuna das grandes empresas do setor, como a transnacional americana Western Union. Até os anos 2000, face à restrita penetração bancária na África, as sociedades de transferência de fundos foram, de fato, as primeiras a se beneficiar dos fluxos financeiros das remessas, facilitados pela liquidez dos serviços oferecidos, pela flexibilização das regras bancárias e, principalmente, pela explosão da internet e da telefonia móvel.

A Western Union controla quase 20% dos depósitos oficiais efetuados por trabalhadores imigrantes no mundo. A maioria das instituições de microfinança utiliza essas redes. É um verdadeiro tesouro. Segundo o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), a cada US$ 100 dólares enviados pelas vítmas da diáspora, em média US$ 19 dólares são gastos com as taxas de transferência. As altas comissões, no entanto, acabam por dissuadir uma parte desses imigrantes de recorrer ao circuito oficial e incitam a utilização de uma miríade de agências.

Um exemplo são as transferências da rede Hawala [11], organizadas por agências nigerianas e paquistanesas ou ainda pelos serviços da agência ganense Maggie Gold, que propõe aos homeboys – filhos da mais antiga diáspora africana e hoje residentes no Reino Unido – o envio de dinheiro quase instantâneo para Acra, a capital de Gana.

O aumento da fiscalização sobre as transferências modificou o curso dessas operações desde 11 de setembro de 2001. Os mecanismos se tornaram mais complexos e praticamente empurraram os imigrantes para as multinacionais do setor. Entre as agências mais visadas por esse controle está justamente a Hawala, suspeita por Washington, de ser um dos canais informais de financiamento do terrorismo.

Até 2001, metade das remessas de dinheiro feitas por imigrantes africanos estava fora dos circuitos oficiais. Desde então, sublinha o BAD, “foi possível observar uma progressão da ordem de 15% por ano do mercado formal de transferências. Essa evolução não remete nem a uma progressão espetacular das somas totais enviadas individualmente, nem ao envelhecimento da imigração. Deve-se, essencialmente, ao crescimento do número de sociedades de transferência de dinheiro nos últimos anos: 35% a 70% por ano e por país (porcentagens acima da média do mercado). Essa progressão se deve à apropriação de parte do mercado informal”.

No leste da África, os progressos tecnológicos em telefonia e criptografia geraram novas formas de transferências de dinheiro não-materiais, como o sistema M-Pesa, criado pela companhia queniana Safaricom. “Enviar e receber dinheiro custa em média US$ 1 dólar . É preciso ter um chip GSM para se beneficiar de uma conta M-Pesa”, explica o jornalista Moin Siddiquim.

“Um menu de transferência de fundos permite a gestão das contas. Para evitar fraudes, são utilizados códigos que restringem o acesso do serviço ao titular da remessa”, diz ele. Duas semanas depois de seu lançamento, em março de 2007, a M-Pesa contava com mil clientes. Mais de US$ 100 mil dólares já haviam sido transferidos. Hoje, 2 milhões de quenianos clientes desse banco virtual movimentam cerca de 100 milhões de shillings por dia. A Safaricom pretende agora ampliar sua cobertura para a Tanzânia e Uganda, em associação com outras companhias de telefonia. (ACR e JCS)
janeiro 2009

[1] “Brain drain and brain gain in Africa”. Ravinder Rena. Africa Economic Analysis, Instituto Eritreio de Tecnologia, Mai Nefhi, 23 de janeiro de 2008.

[2] Banco Mundial, “Anuário de estatísticas sobre a imigração e o envio de fundos”, Washington, 2008.

[3] Por uma bibliografia extensiva, disponível no site da Fundação Internacional pelos Imigrantes e pelo Desenvolvimento

[4] Banco Mundial, op. cit.

[5] Comment intégrer les immigrés dans le circuit bancaire. Walf Fadjri. Dakar, julho de 2004.

[6] Walf Fadjri, op. cit.

[7] Relatório “Les transferts de fonds des migrants, un enjeu de développement”, outubro de 2007.

[8] Ravinder Rena. op. cit.

[9] Kaakyre Kwame Appiah, Pour un nouveau cosmopolitisme. Paris ; Odile Jacob, 2008.

[10] Comentário no Portal Soninkara

[11] Sistema tradicional de pagamento informal. Significa “confiança” em hindi.

Le Monde Diplomatique

O desafio de construir uma Europa social


O desafio de construir uma Europa social
Em busca de mão-de-obra mais barata e condições fiscais favoráveis, as empresas europeias estão se mudando cada vez mais para o leste. Com o aval da Corte de Justiça das Comunidades Europeias e em nome do livre mercado, elas seguem desrespeitando os direitos trabalhista
Anne-Cécile Robert

Jan Andersson, presidente da Comissão do Emprego e dos Assuntos So-ciais do Parlamento Europeu, continua estupefato. Entre novembro de 2007 e junho de 2008, ele assistiu a Corte de Justiça das Comunidades Europeias (CJCE) concluir quatro processos declarando a primazia dos direitos das empresas sobre os dos trabalhadores. Socialista sueco, Andersson não esperava interpretações semelhantes das leis europeias.

Em um dos casos, um empresário finlandês queria deslocar seu ferry boat para um pavilhão na Estônia, a fim de escapar de uma convenção coletiva assinada em seu país de origem. Em outro, um sindicato sueco tentou impedir os trabalhos de uma empresa de construção e, assim, constranger um prestador de serviços letão a assinar uma convenção coletiva. No decreto Rüffert, por sua vez, uma sociedade polonesa instalada no estado alemão da Baixa Saxônia pagava remunerações inferiores ao salário mínimo local. Em todas essas disputas, o final foi o mesmo: a CJCE condenou as ações sindicais e pediu às autoridades públicas que limitassem as normas sociais impostas às empresas deslocadas. Para a Corte, o direito do trabalho e os movimentos de assalaria-dos não deveriam ser entraves “desproporcionais” à liberdade de estabelecimento das empresas e à livre prestação de serviços no mercado comum.

Em 22 de outubro de 2008, o Parlamento Europeu adotou, com base em um relatório de Andersson, uma “resolução legislativa” contradizendo abertamente a jurisprudência da CJCE. Fato raríssimo no universo fechado dessa instituição.

Para os deputados, as “liberdades econômicas não poderiam ser interpretadas de modo a conceder às empresas o direito de se livrar ou de contornar as leis e práticas nacionais no campo social” [1]. Eles afirmam que, contrariamente à visão restritiva dada pelos juízes, a diretiva de 16 de dezembro de 1996 sobre a transferência de trabalhadores [2] dentro do mercado comum estabelece parâmetros mínimos “mais favoráveis” aos empregados.

Ainda que não tenha caráter obrigatório, essa resolução representa uma pressão política sobre os Estados-membros da União Europeia (UE), aos quais os deputados exigem as medidas necessárias para o esclarecimento do direito comunitário. Ao explicitar uma questão de princípio – os direitos das empresas não têm primazia sobre os parceiros sociais –, o texto indica diretivas futuras. Aprovada por ampla maioria, a resolução conferiu ao Parlamento Europeu uma imagem de defensor da Europa social. Imagem esta reforçada em 6 de novembro de 2008, quando o órgão demonstrou sua oposição ao aumento da jornada de trabalho de 48 horas para 70 horas semanais [3]. Sindicatos e associações saudaram assim a “mensagem muito firme” [4] dos deputados.

Se a dimensão social dos textos que foram adotados pelo Parlamento não deixa nenhuma dúvida, os debates e as reações aos decretos da CJCE denunciam uma realidade mais contrastante. Ao se basear em artigos “históricos”, principalmente os do Tratado de Roma, que instituem a livre concorrência no mercado comum e estão presentes desde as origens – ao passo que as disposições sociais vieram tardiamente matizar seus efeitos [5]–, a CJCE levantou a lebre sobre a lógica da constituição europeia. Demonstrou também a fragilidade da posição institucional do Parlamento, assim como sua imaturidade política.

A socialista francesa Françoise Castex lembra que, quando de sua adoção em 1996, a diretiva sobre a transferência dos trabalhadores era apresentada como uma vantagem para os assalariados. Porém, os juízes fizeram disso um instrumento a serviço da liberdade das empresas. Para Andersson, “a Corte não seguiu as discussões parlamentares. Ela deveria se inspirar nas mudanças políticas, a fim de determinar a intenção do legislador”. Já Castex se mostra mais realista ao evocar uma “política do vazio jurídico” assumida pelos deputados, que deixaria grande margem de manobra para os juízes no âmbito dos tratados europeus estruturalmente liberais.

Até hoje, o poder da CJCE não parecia incomodar muito os deputados. “Quando a legislação e a vaga, os eleitos, principalmente os alemães e os ingleses, confiavam nos juízes para interpretá-la”, conta Castex. Mas após dois julgamentos que os afetaram diretamente, eles perceberam a fragilidade de seus sistemas de negociações coletivas dentro do grande mercado interno e estão “perturbados” pelos decretos da CJCE, que também envolveram os escandinavos. E essa jurisprudência acontece exatamente quando os planos sociais se multiplicam na UE e a crise econômica anuncia novos conflitos entre sindicatos e empresas.

A verdade é que o Parlamento tornou-se a instituição fraca do sistema comunitário. Ele mesmo não propõe todas as diretivas e regras: tem de negociá-las com a Comissão Europeia, que detém a iniciativa das leis. Se não ocorrer um acordo entre as duas instituições, os deputados só podem rejeitar o texto, sem impor outro. Portanto, observa Françoise Castex, não apenas a Comissão propõe leis ultraliberais, mas “quando o Parlamento se opõe a elas ou adota emendas importantes demais, a Comissão volta à carga alguns meses mais tarde com um texto no mesmo sentido”.

Mais esforços do parlamento
No entanto, para Andersson, não se deve negligenciar o poder de negociação adquirido pelo Parlamento. “Tudo é questão de política”, considera. “É um meio de pressão real” que deve ser, segundo ele, apoiado por uma ação exercida em cada país sobre os governos. Entretanto, para ter justificativa, tal reforço implicaria numa vontade real da parte desta instituição, de se expressar mais fortemente sobre as questões fundamentais. E até agora, pelo menos por ocasião dos de-bates sobre os decretos da CJCE, o Parlamento demonstrou mais seu espírito de consenso que sua vontade de funcionar como uma instância política representativa. Como acontece com frequência, a oposição entre direita e esquerda praticamente não entrou em jogo.

De acordo com Pervenche Béres, deputada socialista francesa, “a linha de separação entre os partidos flutua em função dos assuntos tratados. Sobre as questões de sociedade, existem as alianças da Esquerda Unitária Europeia / Esquerda Verde Nórdica (GUE/NGL), que reúne os partidos de esquerda com o grupo dos Verdes; a Aliança Livre Europeia (ALE) e o Grupo dos Liberais (ALDE). Com eles, o Partido Socialista Europeu (PSE) desempenha seu papel de oposição face à direita majoritária. Entretanto, essas articulações nem sempre permitem ao PSE se constituir maioria: quando ele trabalha sobre a legislação, muitas vezes pro-cura entrar em acordo com o democrata-cristão Partido Popular Europeu (PPE)”. [6]

A leitura à direita e à esquerda das decisões do Parlamento parece ilusória, e a constante recomposição dos grupos, a cada eleição, mostra que não há distinção ideológica clara.

Típico desse espírito de “compromisso”, a resolução “antidumping social” de 22 de outubro “se felicita pelo Tratado de Lisboa”, que retoma, no entanto, artigos do Tratado de Roma sobre os quais a CJCE se baseou para estabelecer uma hierarquia entre os direitos das empresas e os dos assalariados. Assim, fica pouco nítido o suposto posicionamento do Parlamento, de “escudo” dos direitos sociais.

Aliás, o entusiasmo dos deputados pelo Tratado de Lisboa é tal que eles fazem deste um dos fundamentos de sua resolução, mes-mo antes de ele entrar em vigor. Um desrespeito ao direito e à democracia, algo costumeiro para a Comissão de Bruxelas e para a própria CJCE. De fato, como observa a especialista em ciências políticas Gersende Mayo, “as lógicas de voto podem corresponder a diversas divisões, às vezes pouco decifráveis: eurófilos contra eurocéticos, preferência nacional, pequenos grupos contra grandes e até mesmo remanescentes da di-visão esquerda e direita”. [7]

Para Françoise Castex, se o Parlamento é “uma instituição imatura”, acontecimentos recentes como os decretos da CJCE e a crise econômica poderiam contribuir para sua afirmação como instância representativa, uma necessidade óbvia dado que as taxas de abstenção vêm crescendo a cada eleição. [8]

As recentes tomadas de posição sociais dos deputados têm também razões conjunturais. Depois do “não” holandês e francês, em 2005, ao projeto de Constituição Europeia, e do irlandês em 2008, a UE se encontra confrontada com uma “crise de legitimidade”. Precisa restaurar sua imagem sem com isso colocar em questão os equilíbrios políticos adquiridos nos últimos 50 anos. Assim um dos argumentos empregados para fazer votar a resolução antidumping social foi que os decretos da CJCE eram utilizados para desacreditar o Tratado de Lisboa.

Mito e realidade
“Existe uma convergência de interes-ses para que os governos, o Parlamento e a Comissão concebam projetos visando valorizar a ação da Europa face à crise e às dificuldades sociais. A Europa está consubstancialmente ligada ao liberalismo. Como ela é fruto da autonomização das elites, mas o sufrágio universal ainda existe, os dirigentes europeus são forçados a parodiar ‘a Europa social’ para se legitimar... É a tensão permanente entre o ‘mito Europa’ e sua realidade”, analisa o cientista político Gaël Brustier.

É fato que os governos têm apoiado o aumento dos poderes do Parlamento. [9] Mas quando da negociação do tratado constitucional pela Convenção presidida por Valery Giscard d’Estaing, em 2004, os deputados trabalharam de acordo com seus Estados-membros e foram apoiados por seus governos até o final, mesmo depois da rejeição dos franceses e holandeses. As-sim, embora se reúnam em grupos políticos, os eleitos continuam a se agrupar por nacionalidades, e não é raro que, antes de cada sessão, os governos venham expor aos deputados de seu país a política que eles devem adotar. [10]

Se isso pode ser legítimo levando em conta a importância de preservar o quadro do aparelho de Estado na Europa – como a crise financeira veio demonstrar –, também relativiza a ideia de que o Parlamento encarnaria a emergência de um “povo europeu” em nome do qual ele poderia se tornar um “legislador federal” da União.


[1] Resolução legislativa do Parlamento Europeu sobre os desafios para as convençôes coletivas na União Européia (2008/2085 (INI)), P6_TA (2008) 0513, Estrasburgo, 22 de outubro de 2008.

[2] Diretiva 96/71/CE do Parlamento e do Conselho de 16 de dezembro de 1996. JO L 18 de 21 de janeiro de 1997, página 1.

[3] Ver, no site do Parlamento Europeu, “Revisão da diretiva tempo de trabalho: état des lieux”, 8 de dezembro de 2008.www.europarl.eu/news/expert/background_ page/048-44003-343-12-50-908-20081208BKG44002-08-12-2008-false/default_fr.htm

[4] Ver, por exemplo, o comunicado da Confederação Europeia dos Sindicatos, “A Europa vai bem”, 17 de dezembro de 2008. www.etuc.org/a/5675 ou Associação para a taxação das transações financeiras para a ajuda aos cida-dãos (Attac), “Diretiva sobre o tempo de trabalho: o Parla-mento Europeu reagiu”, 22 de dezembro de 2008. www.france.attac.org/spip.php?article9368

[5] Ver Corinne Gobin, Une Europe sociale en trompe-l’oeil, Le Monde Diplomatique, novembro de 1997.

[6] Entrevista concedida em seu próprio site: http://perven-che-beres.fr

[7] Gersende Mayo, A dimensão europeia dos grupos políticos do Parlamento Europeu, Universidade Paris 1, 4 de novembro de 2005.

[8] Quando das últimas eleições europeias de 2004, a participação global foi de 44,6%, ou seja, um recuo de cerca de 5 pontos em relação a 1999. Foi o pior resultado desde 1979, data da primeira eleição do Parlamento, em sufrágio universal direto.

[9] Ler Une Europe des élites? Réflexions sur la fracture dé-mocratique de l’Union européenne, sob direção de Paul Magnette e Olivier Costa, Editions de l’Université de Bruxelles, 2007.

[10] Observa-se também, desde o Tratado de Amsterdã em 1997, um reconhecimento da importância dos Parlamen-tos nacionais que são representados na Conferência dos órgãos especializados em assuntos europeus. Se eles não3têm poder de decisão, o Tratado de Lisboa lhes permitia – segundo um processo muito complexo – contestar uma decisão europeia no que diz respeito ao princípio de subsí-dios. Uma concorrência para o Parlamento Europeu?

Le Monde Diplomatique

Os tropeços da “modernização” agrária


Os tropeços da “modernização” agrária
Adotada na década de 50, a modernização da agricultura não resolveu a questão agrária: confundindo modernização agrícola com desenvolvimento rural, acentuou as desigualdades e aprofundou a concentração da terra

Carla Ferreira

“Essa cova em que estás com palmos medida, é a conta menor que tiraste em vida. É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio. Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida.”1

Com 390 milhões de hectares próprios para a atividade agrícola, o Brasil tem 120 milhões de hectares de terras ociosas, segundo informam dados do Incra
Com o status de segundo país com maior concentração da propriedade de terra no planeta, a expressão social do Brasil no exterior é cada vez mais a face do trabalhador rural sem terra: mirada árida, ressecada pelo relento, no limite entre determinação e desespero. Os números não nos permitem enganos sobre a situação fundiária no Brasil. Com um território continental de 850 milhões de hectares, dos quais 390 milhões são próprios para a atividade agrícola, 120 milhões de hectares estão ociosos, conforme informam dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). No país dos sem-terra, quase 60% das áreas rurais são grandes extensões que pertencem a menos de 3% dos proprietários.

Com atuais quatro milhões de famílias sem terra no país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é importante observar que, sucessivamente, desde os tempos da colônia, passando pelo Império, até os governos republicanos, sempre as elites estiveram atentas para o fato de que tamanha quantidade de terra possibilitaria a transformação rápida do escravo ou do colono em pequeno proprietário rural. Assim, foram tomadas as medidas necessárias para impedir o acesso destes à terra, garantindo um processo de grande acumulação restrita aos círculos de poder.

Distorções da modernização
No país dos sem-terra, quase 60% das propriedades rurais são grandes latifúndios, que pertencem a menos de 3% do total de donos
O trabalhador do campo é, historicamente, o mais penalizado entre todos do país. Foi discriminado mesmo quando os trabalhadores urbanos tiveram seus direitos previstos em lei, a partir de 1930. Mesmo a modernização da agricultura, posta em prática a partir da década de 50 e que, a juízo dos técnicos da época, traria como resultado natural a melhoria da qualidade de vida das populações rurais, não resultou na solução da problemática da terra. Tampouco foi eficiente no aproveitamento racional das potencialidades agrícolas do país. Mais bem, a partir daí e, especialmente durante os governos militares, a modernização agrícola – entendida como absorção das novas tecnologias e aumento da produtividade – tratou de confundir modernização agrícola com desenvolvimento rural.

A modernização foi responsável, entre outras coisas, por agudizar as diferenças regionais internamente no país. No que se refere à estrutura agrícola, criou, por um lado, um setor extremamente moderno, composto de aproximadamente 500 mil estabelecimentos que respondem pela maior parte da exportação agrícola e emprego rural. E, por outro lado, um setor atrasado, conformado por cerca de cinco milhões de unidades agrárias de vários tamanhos, operando em níveis de produtividade baixos, responsável por parte considerável da produção de alimentos. Além disso, os dados sobre violência no campo nos revelam, segundo análise realizada pelo IBGE, que os conflitos sociais agrários e a violência no campo são maiores justamente nas regiões de maior concentração de terra, sendo estas, também, as zonas de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH-ONU) do país.

O círculo vicioso da pobreza
Foram tomadas as medidas necessárias para impedir o acesso de escravos e colonos à terra, garantindo uma acumulação restrita aos círculos de poder
O papel político-ideológico da implantação modernizadora da grande empresa rural foi dar “legitimidade” para a sobrevivência do latifúndio ao tornar uma porcentagem deste terreno em produtivo. A partir daí, alguns setores intelectuais e políticos perderam o constrangimento e, atribuindo uma acepção mais estreita para o conceito de função social da propriedade, passam a apresentar abertamente suas razões para abandonar a defesa da reforma agrária, na atualidade.

Porém, estes setores esquecem que, em contraste com esta grande empresa implantada sobretudo no sul do país, tenta sobreviver uma frágil agricultura familiar que, sem apoio técnico e financeiro do Estado, não subsistirá à dinâmica concentradora implementada no campo. E, deslocando-se para o nordeste do território nacional, encontramos ainda o predomínio do grande latifúndio que super-explora e subjuga a população rural.

Então, o que se verifica na prática é um problema mais grave, de caráter estrutural, consubstanciado no que se chama de “questão agrária”. Segundo esta perspectiva, a concentração da propriedade da terra gerou uma trama de relações econômicas, sociais, culturais e políticas que geram a estagnação de todas as esferas da vida rural, afetando inclusive o exercício da democracia no país. Esta trama cria um círculo vicioso que tem efeitos perversos, tais como sistemas agrícolas pouco produtivos e devastadores da natureza, baixa rentabilidade, pobreza, êxodo rural, clientelismo, violência e analfabetismo. O resultado é a inibição de qualquer possibilidade de desenvolvimento dos mais pobres e da agricultura em geral, de forma equilibrada.

Os obstáculos da Alca
A modernização criou um setor extremamente moderno, composto de cerca de 500 mil estabelecimentos, que respondem pela exportação agrícola
Assim, a única solução para a “questão agrária” seria a reforma agrária, que se comporia de duas linhas de ação estratégicas. Por um lado, a desapropriação do grande latifúndio para assentamento de sem terras e, por outro, a viabilização técnica e financeira para a agricultura familiar. Com estas duas ordens de ação seria possível redistribuir renda, riqueza e poder no campo; forçar o aumento dos salários dos trabalhadores; elevar a produção de alimentos (a fim de sustentar o incremento da demanda decorrente do processo de distribuição de renda) e viabilizar a agricultura familiar. Além disso, enfrentaria de forma inteligente o problema do desemprego, uma vez que diversos estudos já demonstraram que a reforma agrária é uma das maneiras mais baratas de criar empregos, trazendo como benefício adjacente soluções para o problema da fome.

Realizar a reforma agrária no Brasil, mesmo diante da obviedade de sua necessidade, representa enfrentar o que há de mais atrasado no sistema social brasileiro. Porém, os entraves, que deverá se deparar o governante que decidir enfrentar este tema não estarão restritos às pressões do grande latifúndio improdutivo. Uma política agrícola alternativa repercutirá sobre os interesses associados da elite brasileira com empresas estrangeiras, uma tradição desde o período colonial. Representa incidir sobre a política de exportações, garantir soberania alimentar à nação, contrariar os interesses das multinacionais das sementes geneticamente modificadas, controlar o território Amazônico e as áreas de preservação, rever acordos internacionais de patentes, e entre todas estas coisas, principalmente, suspender imediatamente as tratativas para a implantação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), a qual propõe cláusulas que impedem qualquer possibilidade do país desenvolver uma política alimentar e agrícola soberana e sustentável.

Oxalá o novo governo do Brasil, que dirigirá o país a partir de janeiro de 2003, em vez de tratar os movimentos sociais do campo, de indígenas, pequenos agricultores e sem terras, como um problema de polícia, compreenda que eles são seus aliados para a promoção do desenvolvimento rural do país. Mais ainda, tomara que este novo governo seja capaz de adquirir com eles a sabedoria do correto relacionamento com a terra. Não concebendo esta somente como um pedaço de chão a ser explorado, mas como o espaço da convivência dos homens e mulheres, o lugar da diversidade biológica e cultural, da produção, da criação, da democracia e do bem viver em sociedade. outubro 2002

1 - Extrato do auto dramático do poeta pernambucano João Cabral de Mello Neto, Morte e Vida Severina.

Le Monde Diplomatique

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Securitização e dessecuritização da Amazônia contemporânea


Securitização e dessecuritização da Amazônia contemporânea, por João Nackle Urt & Alexandre Felipe Pinho

26/01/2010
Finda sua relativa importância geopolítica no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em face do caráter estratégico da borracha para a indústria bélica da época, a Amazônia saiu do foco das opiniões públicas mundiais, acompanhando o caráter periférico que a América do Sul assumiu na Guerra Fria. Somente a partir da década de 1970, com a emergência do tema ambiental na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Estocolmo, 1972), a Amazônia ensaiou um retorno à agenda global. Embora inicialmente tímida, a inserção da região amazônica nos assuntos internacionais foi crescente nas décadas de 1980 e 1990. Atualmente, a julgar pela importância conquistada pela temática ambiental, seu lugar na agenda internacional é permanente. Esse foco da opinião pública mundial tem despertado diferentes formas de discursos securitizadores, levando o debate sobre a Amazônia do campo da política para o campo da segurança.

O conceito de securitização, lançado por Buzan, Waever e de Wilde (1998), abarca a idéia de que não existe uma segurança internacional objetivamente considerada. Para esses autores, toda ameaça é socialmente construída por meio de discursos de atores significativos na esfera da segurança internacional, passando pela aceitação do público. Segurança, portanto, é “uma prática auto-referencial [...] não necessariamente porque uma ameaça existencial realmente existe, mas porque o assunto é apresentado como tal”. Securitização é “o uso da retórica da ameaça existencial com o objetivo de levar um assunto para fora das condições da ‘política normal’”, justificando assim a adoção de medidas de emergência, de procedimentos políticos extraordinários e eventualmente o uso da força (1998, p. 24-25).

A securitização da Amazônia tem ocorrido pelo menos de duas formas, potencialmente opostas entre si. A primeira é a securitização ambientalista, que define a floresta amazônica como objeto referente e sua destruição como a principal ameaça existencial, tanto pela redução da biodiversidade, quanto pela emissão de gases estufa e pela destruição de etnias minoritárias. Buzan e Waever afirmam que, especialmente no Brasil, a securitização ambiental é temida como potencial fundamentação para o intervencionismo norte-americano (2003, p. 333).

A segunda, ocorrida em grande parte em reação à primeira, é a securitização política, com forte teor nacionalista, que define a principal ameaça existencial na região como o risco de “internacionalização” da Amazônia, isto é, o desrespeito à soberania dos países titulares de seu território por grandes potências do Norte desenvolvido, diretamente ou por meio de ONGs, mas também passando pelas chamadas “novas ameaças”, freqüentemente de caráter transnacional, de que são exemplos o narcotráfico, a imigração ilegal, a biopirataria, entre outras. Entram aí também as ameaças tradicionais, especialmente após a subida ao poder do venezuelano Hugo Chávez, cuja retórica revolucionária neobolivariana freqüentemente tem despertado sentimento de insegurança entre países vizinhos.

Em suma, a segurança da Amazônia tem sido definida por ações securitizadoras de sentidos opostos, que se retroalimentam. De um lado, ambientalistas partem do pressuposto (nem sempre verdadeiro) de que os Estados sul-americanos são ineptos para lidar com os problemas atinentes à floresta. Por isso, produzem discursos no sentido de intensificar a atuação de atores extra-amazônicos para assegurar a preservação dos valores ambientais relacionados com a preservação da floresta. De outro lado, setores nacionalistas das sociedades amazônicas, em reação aos discursos descritos acima, securitizam fortemente a integridade de seus territórios, destacando de várias formas a legitimidade de suas soberanias.

Tal dinâmica lembra os dilemas de segurança interestatais, em que o fortalecimento militar de um Estado promove o aumento da insegurança do seu vizinho. Estaríamos assistindo a um “dilema de securitização”, em que o fortalecimento da securitização ambiental gera aumento da sensação de insegurança pelos setores político e militar?

Vale lembrar que, segundo Buzan, Waever e de Wilde, a securitização de um assunto significa sua apresentação como tão urgente e importante que não deva ser exposto ao manejo político normal, institucionalizado, democrático. “Basicamente, a segurança deve ser vista como negativa, como uma falha em lidar com certos assuntos como sendo integrantes da política normal” (Buzan, Waever e de Wilde, 1998, p. 29). Parafraseando esses autores, no longo prazo, o ideal é a promoção da dessecuritização da Amazônia, isto é, o resgate dos valores ambientais e humanos contidos na floresta amazônica para o âmbito do jogo político normal.

Também a favor da dessecuritização da Amazônia, entendida como a superação da securitização com base nos discursos ambientalistas e seus reversos nacionalistas, vale trazer a opinião de Bertha Becker, de que na Amazônia contemporânea a penetração das grandes potências “não mais visa a apropriação direta dos territórios, mas sim o poder de influir na decisão dos Estados sobre seu uso” (Becker, 2007:34). Essa tendência reforça o padrão histórico de respeito às soberanias locais. Com efeito, diferentemente da América Central e do Caribe, a América do Sul não tem sido historicamente alvo de intervenções estrangeiras, sendo que os próprios Estados Unidos abriram mão, desde o começo do século XX, das estratégias de intervenção direta na região, em favor de uma estratégia de penetração econômica (Buzan e Waever, 2003, p. 310).

Tendo em vista que a continuada destruição da floresta parece ser o gatilho que dispara a dinâmica securitária, pode-se argumentar que o aprofundamento da soberania dos países amazônicos – especialmente a soberania voltada para dentro, isto é, a efetiva capacidade dos Estados de fazer valer o império da Lei sobre seus territórios, notadamente no combate ao desmatamento – deve conduzir a uma progressiva dessecuritização ambiental da Amazônia, interrompendo assim o ciclo vicioso atualmente em andamento. Por outro lado, o aprofundamento da soberania nesses Estados deve favorecer um enquadramento jurídico claro e efetivo da atividade dos atores não-estatais (cientistas, empresas e ONGs), reduzindo sua percepção como ameaça entre as sociedades amazônicas.


Referências bibliográficas
BECKER, Bertha K. Amazônia: Geopolítica na virada do III milênio, Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
BUZAN et alli, Security: a new framework for analysis. London: Lynne Rienner publishers, 1998.
______ & WAEVER. Regions and powers: the structure of international security. Cambridge: University Press, 2003.
João Nackle Urt é Professor da Universidade Federal de Roraima – UFRR, especialista e mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB (joaourt@gmail.com).

Alexandre Felipe Pinho é graduando em Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima – UFRR

Meridiano 47

A crueldade que nasce da tolerância

Tráfico ilegal atinge milhões de animais e movimenta cifras bilionárias

FRANCISCO LUIZ NOEL

Animais recuperados: condições precárias
Foto: Arquivo Renctas

Nem sempre visível aos olhos da sociedade, ao contrário do desmatamento e da poluição, o mais certeiro ataque à biodiversidade animal nas matas do país também tem a seu favor as vistas grossas de muitos brasileiros. O tráfico de aves, mamíferos e répteis afeta a reprodução de várias espécies nativas e nutre uma rede de negócios sujos que movimenta milhões de reais por ano. Contribuindo para esse comércio clandestino, somam-se a brandura da legislação, a teia de cumplicidades armada pelas quadrilhas e, do outro lado do balcão, a tolerância generalizada em relação à origem ilegal de bichos de estimação.

Assim como grande parte do tráfico da vida silvestre escapa às autoridades, números precisos sobre capturas e cifras envolvidas fogem à estatística. Esse mercado ilegal é, porém, maior do que sugerem as notícias a cada operação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e congêneres estaduais e municipais. Uma ideia de suas dimensões foi dada em março, no Rio de Janeiro, pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal, que desbarataram uma quadrilha acusada de negociar até 500 mil animais por ano, no país e no exterior.

"Estimamos que o comércio ilegal da fauna silvestre no Brasil seja responsável pela retirada de cerca de 38 milhões de animais da natureza anualmente", afirma o coordenador da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), Dener Giovanini, responsável pelo 1º Relatório Nacional sobre o Tráfico de Fauna Silvestre, lançado em 2001. Essa quantidade alarmante corresponde à média diária de 104 mil bichos, o que por sua vez equivale à retirada de 18 a 19 deles do habitat, por dia, em cada um dos 5.564 municípios brasileiros.

As aves são as mais cobiçadas. A variedade é grande: papagaios, araras, tucanos, arapongas e pássaros canoros como sabiás, trinca-ferros, curiós e chanchões. Bem atrás vêm os mamíferos, como macacos, tatus, preguiças e gambás. E, entre os répteis, jiboias e outras cobras, cágados e jabutis. "A sociedade ainda é tolerante com esse crime. Há uma ideia errônea, diante das questões de segurança em cidades como o Rio de Janeiro, de que a repressão ao comércio ilegal de animais pode ser deixada de lado", lamenta no Ministério Público Federal fluminense o procurador Maurício Manso.

Terra dos Papagaios

A retirada de animais de seu habitat remonta aos primórdios da humanidade, tendo levado à domesticação de várias espécies. No Brasil, antes mesmo do descobrimento, os índios amansavam bichos para diversão nas aldeias. Os xerimbabos (coisa muito querida, em tupi) incluíam araras, papagaios, mutuns, quatis, veados e jiboias. A prática não tinha maiores impactos sobre a preservação das espécies, pois, além da longevidade e do número reduzido dos animais de estimação, sua alimentação era, quase sempre, a mesma encontrada no meio natural.

Com a chegada dos portugueses, em 1500, a relação entre humanos e animais silvestres mudou. Na carta ao rei dom Manuel, Pero Vaz de Caminha relata o encontro de homens da esquadra de Cabral com os indígenas, na Bahia, e conta: "Resgataram por lá cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, espécie de tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o capitão vo-las há de mandar".

Não foi por menos que o Brasil logo foi chamado de Terra dos Papagaios. Para os viajantes, voltar à Europa com um animal exótico provava a estada no Novo Mundo. No século 19, muitos espécimes foram levados por naturalistas europeus. No seu rastro, chegaram os comerciantes, que estimularam a captura de aves para abastecer com penas a moda europeia. Na metade do século 20, quando o país se urbanizava, o comércio de animais chegou às feiras das cidades. A de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, é até hoje uma das mais afamadas, dentre aquelas onde se fazem negócios obscuros com a fauna nativa.

No Brasil do século 21, informa o relatório pioneiro da Renctas, o comércio ilegal de animais movimenta, por baixo, US$ 500 milhões anuais – 5% do montante desse tráfico em todo o mundo, contabilizado em pelo menos US$ 10 bilhões por ano. Essas cifras são de 2001, mas Dener Giovanini faz a ressalva de que elas podem estar em queda no país. "O tráfico de animais vem sofrendo derrotas consideráveis", diz, acrescentando que os brasileiros têm avançado na área, apesar do hábito arraigado, em todas as classes, de transformar bichos da natureza em animais de companhia.

"O maior desafio é conscientizar as pessoas de que estão contribuindo para o tráfico ao comprar animais ilegais, mesmo quando acreditam fazer um bem. O melhor, nesses casos, é denunciar o vendedor às autoridades", aconselha no Ibama a coordenadora substituta de Gestão do Uso de Espécies da Fauna, Raquel Sabaini. Por lei, apenas espécimes originários de criadouros registrados podem ser adquiridos para estimação. Há cerca de 900 desses locais cadastrados no instituto, assim como 300 mil amadores – na maioria criadores de passarinhos.

Na mira de Oxóssi

A feira de Caxias foi o ponto de partida da maior investigação realizada no país contra o tráfico de animais. De janeiro de 2008 a março de 2009, os procuradores da República Renato Machado e Maurício Manso identificaram integrantes e mapearam o modus operandi de uma quadrilha com ramificações em vários pontos do Brasil e no exterior. Ao fim de três inquéritos criminais, a Justiça Federal expediu 103 mandados de prisão e 139 de busca e apreensão, em vários estados, na Operação Oxóssi – nome do orixá que protege a caça de subsistência e condena a captura predatória.

A polícia autuou os presos por caça ilegal, maus-tratos e formação de quadrilha, com o agravante de os animais procederem de unidades de conservação como o Parque Nacional da Serra da Bocaina, na divisa entre São Paulo e Rio de Janeiro. Encomendados a caçadores, os bichos eram repassados a intermediários e, mais à frente, a comerciantes ou compradores finais. Entre os pontos de venda estavam, além de Caxias, a feira carioca de Honório Gurgel e a de Areia Branca, no município de Belford Roxo, na Baixada Fluminense.

As ramificações nacionais da quadrilha se estendiam a estados como Pará e Bahia, de onde pássaros e outros animais capturados eram despachados para o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. A quebra do sigilo telefônico de intermediários e comerciantes mostrou que o tráfico funciona à base de encomendas. "A feira de Caxias é apenas a ponta do iceberg, para ganho rápido de dinheiro. O que está por trás é que permite os ganhos no atacado", afirma o procurador Maurício Manso.

À frente da conexão internacional do bando estavam cinco brasileiros, dois tchecos e um português. Os estrangeiros também foram presos – um tcheco na Indonésia, pela Polícia Internacional (Interpol), e o outro no Rio, assim como o lusitano, surpreendido ao desembarcar no Aeroporto Internacional Tom Jobim. Residente na cidade do Porto, ele é acusado de ter negociado várias vezes com os tchecos a compra e a troca de animais da fauna brasileira, para atender a clientes no mercado clandestino da Europa.

Outra modalidade de tráfico é o contrabando de ovos de aves nativas, para incubação no exterior. Os procuradores da República e a Polícia Federal chegaram a duas formas de atuação dos criminosos. Uma delas é a falsificação de documentos sobre a procedência de ovos colhidos na natureza, que passavam pelas barreiras alfandegárias como se fossem produzidos legalmente em criadouros. A outra, a exportação em embalagens de ovos de codorna, em nome de empresa regularizada.

Rede de cumplicidades

A investigação mostrou como o tráfico se beneficia de uma malha que abrange de policiais – participantes ou cúmplices – a empregados de transportadoras. Com um dos PMs presos, em Magé, na Grande Rio, a Polícia Federal apreendeu 200 passarinhos transportados desde Parati (RJ), ponto de acesso de caçadores fluminenses ao Parque da Bocaina. "A carteira funcional acaba sendo um facilitador", lamenta o procurador Maurício Manso, referindo-se a operações policiais nas estradas.

Além de PMs, faziam parte do esquema motoristas e outros empregados de empresas de ônibus interestaduais e intermunicipais, que acobertavam o transporte de animais nos compartimentos de carga. Outra constatação foi a impunidade de muitos traficantes. Flagrados e presos antes das investigações, eles foram logo soltos e prosseguiram negociando animais. No caso das conexões internacionais, as investigações levantaram suspeitas de facilitação proporcionada nos aeroportos para o embarque dos bichos.

O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, defende a equiparação do tráfico de animais aos de drogas e armas. Na opinião de Minc, a Lei de Crimes Ambientais (9.605/98) é suave e não distingue o traficante do amador que mantém ilegalmente um passarinho na gaiola. O tráfico de drogas é punido com 15 anos de prisão e o de animais, com apenas 18 meses, conversíveis em serviços comunitários. O procurador Maurício Manso sugere mudanças na lei que permitam à Justiça apreender bens dos traficantes de animais, como nos casos de drogas e armas. Os recursos seriam revertidos em ações ambientais.

Um obstáculo à erradicação desse comércio ilegal é a difícil situação econômica da maioria dos caçadores. "As conexões socioeconômicas do tráfico de animais com comunidades carentes existem, mas a pobreza não é justificativa. O Estado precisa ser mais presente e oferecer fontes alternativas de renda, sem abrir mão da missão constitucional de proteger os recursos naturais", assinala, na Renctas, Dener Giovanini. De acordo com as investigações feitas no Rio, uma arara pode render R$ 100 ao caçador, para ser vendida no exterior por até R$ 8 mil.

Além dos maus-tratos no cativeiro e no transporte, muitos animais são vítimas de crueldade deliberada, afirma Maurício Manso. "Há casos em que, quando caem em redes armadas na floresta, passarinhos sem valor comercial têm as asas quebradas e são jogados no chão", conta. Feita a captura, a regra generalizada é o transporte, por longas distâncias, de grande quantidade de animais em pequenas caixas, com alimentação e higiene precárias. Com esse tratamento, até oito entre dez animais morrem no trajeto rumo às cidades.

Registrados, mas ilegais

Com 27 Centros de Triagem de Animais Silvestres (Cetas), o Ibama acolhe em média 50 mil bichos apreendidos por ano – grande parte deles devolvida posteriormente à natureza. Uma das iniciativas de combate ao comércio ilegal é o Sistema Nacional de Gestão de Fauna (SisFauna), criado em 2008 na Coordenação de Gestão do Uso de Espécies da Fauna, da Diretoria de Uso Sustentável da Biodiversidade e Florestas. O sistema registra criadouros comerciais e científicos, zoológicos, centros de reabilitação, abatedouros e frigoríficos de fauna nativa, facilitando o controle dos licenciamentos, a fiscalização e as vendas.

No caso das aves nativas, o enquadramento legal do comércio remonta aos anos 1970. O registro dos clubes e sociedades de criadores passou a ser compulsório em 1976, assim como a identificação dos bichos com anilhas (anéis) nas patas. Em 1988, a permissão aos amadores foi limitada à criação de passarinhos. Para restringir a captura nas matas, o uso de anilhas fechadas, que só entram quando os filhotes são pequenos, tornou-se obrigatório em 1991. Ao mesmo tempo em que proibiu a venda de animais sem anilhas, o Ibama divulgou a primeira lista de pássaros com criação autorizada.

O uso das anilhas fechadas como recurso contra a retirada de filhotes da natureza foi intensificado em 1998, quando foi vedada, em competições, a participação de pássaros sem esses anéis. Três anos depois, o Ibama assumiu integralmente o controle legal da criação de aves, tirando das federações ornitófilas as atribuições de distribuir anilhas e certificados de venda. Como parte da investida contra a burla à legislação, o instituto criou o Sistema de Cadastro de Criadores Amadoristas de Passeriformes (Sispass), no qual todos os criadores são obrigados a se inscrever.

Contudo, assim como milhares de passarinheiros Brasil afora ignoram o Sispass e criam animais apanhados na natureza, não são poucos os casos em que o registro legal acoberta a ilegalidade em criadouros comerciais de aves e outros bichos da fauna nacional. Em dezembro, o Ibama multou e fechou um estabelecimento em Atibaia (SP), onde foram apreendidos 188 animais – araras, papagaios, azulões e macacos-prego. Sem procedência documentada, eles viviam em espaços exíguos, submetidos a más condições de alimentação e higiene.

Defesa da criação

Como alternativa polêmica de combate ao tráfico, a criação legalizada de animais silvestres ganha cada vez mais defensores. Um deles é o biólogo Tiago de Oliveira Lima, presidente da União Nacional das Entidades de Criadores e de Comerciantes de Animais da Fauna Nativa, Exótica e Doméstica (Unifauna), fundada em fevereiro, em Brasília. Ele alega que a oferta por criadouros credenciados e fiscalizados tende a reduzir a pressão de captura na natureza.

Criador de cobras em Minas Gerais, Tiago salienta que a produção comercial de espécies silvestres é reconhecida pela Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cipes), firmada em 1973, em Washington (EUA), e assinada pelo Brasil, entre mais de 130 países. Outro documento global que contempla a criação de animais das faunas nativas como recurso em favor de espécies em extinção é a Convenção sobre Diversidade Biológica da Organização das Nações Unidas (ONU), sancionada no país durante a Rio-92.

"A criação, no caso de espécies ameaçadas, é fundamental para manter um banco genético, viabilizando no futuro que elas sejam reintroduzidas no habitat natural", defende o presidente da Unifauna. Ele cita o caso da ararinha-azul, endêmica na caatinga baiana. Uma das espécies brasileiras em avançado estágio de extinção, a ave é mantida em criadouros na Europa. É verdade, como assinala Tiago, que essas criações foram iniciadas com aves exportadas em grande quantidade pelo braço internacional do tráfico, nos anos 1980 e 90.

Em relação aos passarinhos, exemplo de manejo em cativeiro é dado pelo presidente da Confederação Brasileira dos Criadores de Pássaros Nativos (Cobrap), Aloísio Pacini Tostes, em Ribeirão Preto (SP). Bancário aposentado e autor de livro sobre criação e aprimoramento genético de curiós e bicudos, ele já produziu mais de 3 mil filhotes das duas espécies e de canário-da-terra, que variam de R$ 100 a R$ 500. "Meus clientes desejam ouvir o canto de um pássaro brasileiro em casa, mas não querem comprá-lo do tráfico. E há aqueles, mais exigentes, que participam de exposições", diz.

Um país em que a criação comercial reduziu o tráfico, de acordo com Tiago de Oliveira Lima, é a Austrália. "Como eles reproduzem muito bem em cativeiro as espécies nativas, o preço dos animais é baixo e faz com que a captura na natureza não compense," diz o biólogo sobre a terra dos cangurus e dos coalas. Nos EUA e na Europa, ele acrescenta, o crescimento da criação de animais provenientes de países americanos e africanos, chamados de exóticos por fornecedores e compradores, está desestimulando a aquisição de bichos capturados na natureza e oferecidos no mercado ilegal.

Mais de 300 espécies de aves, mamíferos, répteis e peixes brasileiros têm criações autorizadas pelo Ibama para a produção de animais de estimação, abate e fabricação de remédios. Como a lei não assinala as espécies permitidas, o instituto dá a palavra final, caso a caso. A tese de que a criação em cativeiro é antídoto ao tráfico enfrenta, porém, questionamentos no instituto. "Não existem dados que comprovem a relação entre a diminuição do tráfico e a criação e o comércio de animais da fauna silvestre", afirma Raquel Sabaini, na Coordenação de Gestão do Uso de Espécies da Fauna.

Na tentativa de regulamentar o mercado de animais de companhia, o instituto pôs em consulta pública, em março de 2008, uma lista com 54 espécies a ser permitidas – na maioria, aves. A relação atendeu a determinação do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), mas não foi oficializada, diante da grita de criadores de várias partes do país, que se batem por sua ampliação. Como arma contra o tráfico de animais, o Brasil deve ou não autorizar a criação de espécies nativas em cativeiro? A polêmica está adormecida, mas o dilema persiste.

Revista Problemas Brasileiros

Carvão vegetal, no rastro da siderurgia

Carvão vegetal, no rastro da siderurgia

Uso sem controle da mata nativa produz conflitos, desmatamento e trabalho escravo

ANDRÉ CAMPOS

Operário na boca do forno: Impacto na saúde
Foto: Carlos Juliano Barros

O ferro e o aço, materiais símbolo da industrialização – que, por sua vez, durante décadas foi sinônimo de progresso –, avançam pelo século 21 como um dos pilares da economia brasileira. Apesar da crise internacional, que atingiu em cheio a siderurgia, produtos feitos a partir desses metais seguem desempenhando papel-chave na balança comercial – corresponderam, sozinhos, a cerca de 6% das exportações no primeiro trimestre de 2009. Tal número, embora expressivo, nem de longe resume o peso do setor na vida nacional, dada sua importância para viabilizar muitas outras indústrias, como, por exemplo, as de materiais de transporte, bens de capital e equipamentos elétricos – apenas estas, juntas, somaram mais de 20% das vendas externas do país em 2008.

A relevância da siderurgia no Brasil, contudo, também conta com capítulos menos nobres, que remetem a impactos socioambientais muitas vezes pouco divulgados. Um deles está relacionado a uma matéria-prima cuja presença na cadeia produtiva do setor nem sequer é conhecida por boa parte da população: o carvão vegetal.

Esse insumo exerce dupla função nas fábricas. Como combustível, aquece os altos-fornos onde o minério de ferro é fundido. Além disso, durante a fusão, é um dos reagentes no processo que extrai o metal (Fe) do minério (Fe2O3). O ferro-gusa, produto final desse beneficiamento, é a principal matéria-prima para a fabricação do aço.

Ainda hoje, grande parte desse carvão provém de matas nativas. É feito em fornos rústicos, popularmente conhecidos como "rabo quente", nas regiões de fronteira agrícola do país. Desmatamento, trabalho escravo e conflitos territoriais são alguns dos problemas associados a esses empreendimentos – um obstáculo indigesto às pretensões de viabilizar novas fábricas baseadas no carvão vegetal. "Sua utilização, de forma compatível com as exigências da legislação ambiental, requer mecanismos cada vez mais rigorosos de controle de origem e de monitoramento das condições de produção do carvão adquirido no mercado", admite o Relatório de Sustentabilidade 2008 do Instituto Brasileiro de Siderurgia (IBS).

Evolução

Em parte por não possuir reservas qualificadas de carvão mineral, em parte por ser detentor de uma das maiores áreas florestais do mundo, o Brasil é, atualmente, o único país que adota a biomassa na siderurgia de forma expressiva – no cenário internacional, o carvão fóssil é, de longe, o principal insumo utilizado. Dados divulgados pelo IBS mostram que cerca de um terço do parque nacional recorre ao carvão vegetal. Nesse universo, os principais consumidores são as chamadas guseiras, indústrias de médio porte que não fabricam o aço, vendendo apenas o ferro-gusa para outras siderúrgicas e setores como o de autopeças.

O volume de matéria-prima demandado impressiona. Somente em 2007, segundo a Associação Mineira de Silvicultura (AMS), o consumo de carvão vegetal no Brasil foi de 9,2 milhões de toneladas – mais de 90% destinou-se ao setor siderúrgico. Para se ter uma ideia, são necessárias 48 árvores, conforme parâmetros do Ministério do Meio Ambiente, para produzir apenas uma tonelada de carvão. Em outras palavras, naquele ano mais de 440 milhões de árvores foram para o forno. Ainda de acordo com a AMS, aproximadamente 50% do que hoje é consumido advém de matas nativas – a outra metade é proveniente de áreas reflorestadas. A notória existência de um volumoso comércio ilegal, à margem do controle do Estado, torna no entanto duvidosa qualquer afirmação mais assertiva sobre a realidade desse percentual.

No século 19, as florestas próximas ao Quadrilátero Ferrífero mineiro já eram parte da equação que viabilizou as primeiras fundições importantes do país. O carvão vegetal foi a base do incipiente setor até a década de 1940, quando a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) inaugurou o uso de carvão mineral importado para fabricar aço. Mais adequado a altos-fornos de grande capacidade, ele permitiu um substancial aumento na escala de produção. Empreendimentos que usam biomassa, contudo, não deixaram de existir, e, na década seguinte, multiplicaram-se com o advento da indústria automobilística paulista, que necessitava de ferro-gusa. Atualmente, são mais de 60 guseiras em Minas Gerais, 18 no Polo de Carajás – que perpassa o Pará e o Maranhão –, além de outras em estados como Mato Grosso do Sul e Espírito Santo.

Do cerrado ao bioma amazônico, no rastro da expansão dos altos-fornos, consolidou-se um mercado de carvão baseado numa vasta gama de fornecedores independentes, impulsionados, muitas vezes, por apoio técnico e financeiro das siderúrgicas. Nos dias atuais, as carvoarias estão fortemente integradas à economia das regiões onde atuam. É comum, por exemplo, fazendeiros permitirem empreendimentos do gênero em suas propriedades – obtendo, como pagamento, o desmate do terreno para a formação de pastos –, bem como o uso de restos de serrarias para queimar no carvoejamento.

Somente no Pará, segundo estimativa de 2007 do governo estadual, existem cerca de 25 mil carvoarias, número que ajuda a dimensionar a quantidade de pessoas envolvidas na atividade. "Em Açailândia [município maranhense com cinco siderúrgicas instaladas], há bairros inteiros que vivem do carvão", conta Xavier Plassat, coordenador da campanha nacional contra o trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A mão de obra é, em grande medida, formada por trabalhadores sem-terra que vivem de bicos, como serviços agropecuários e florestais temporários. Há, no entanto, situações diversas, incluindo a de moradores de assentamentos arregimentados para a atividade.

Impactos socioambientais

"Mesmo com o uso dos equipamentos de proteção, é uma tarefa sempre penosa", lembra Plassat. Acidentes com farpas de madeira, esforço muscular acentuado, muita fumaça, calor e fuligem são alguns elementos típicos do carvoejamento, cujo impacto na saúde, especialmente devido à poluição do ar, é tema de diversas pesquisas. Não bastasse isso, carvoarias são palco de denúncias frequentes envolvendo jornadas excessivas, alimentação inadequada e alojamentos insalubres – para não falar na corriqueira ausência de carteira assinada. Não raro, ocorrem situações ainda mais graves, como a retenção de salários e a chamada "peonagem" por dívidas, onde o trabalhador é coagido a permanecer no serviço para pagar supostos débitos de alimentação, transporte ou outros alegados por seus chefes.

Situações como essas fazem dos donos de carvoarias uma presença significativa na "lista suja" do trabalho escravo – um cadastro do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) com os empregadores flagrados incorrendo no crime. Entre os quase 200 nomes atualmente arrolados no documento, figuram, segundo levantamento da ONG Repórter Brasil, ao menos 36 produtores de carvão. Os casos remetem a sete estados: Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará e Tocantins. De todos os ramos de atividade que integram a "lista suja", somente a pecuária tem mais representantes.

Também o desmatamento ilegal é motivo de constantes denúncias associadas ao carvão. Esse é um impacto de difícil mensuração, visto que parcela significativa dos empreendimentos trabalha à margem da lei, às vezes até sem existência formal. A alta mobilidade dos fornos rabo quente, que raramente ficam mais do que poucos meses em uma área, torna ainda mais difícil ligar carvoarias a seu rastro de passivos.

Para produzir carvão é preciso permissão dos órgãos ambientais, com a previsão da fonte de biomassa utilizada – área específica de desmate autorizado ou certa quantidade de resíduos de serraria, por exemplo –, dados que permitem, por sua vez, controlar o montante passível de ser fabricado e vendido. Relatos de fiscais, no entanto, descrevem uma refinada variedade de técnicas usadas para driblar esse controle. Um exemplo são as carvoarias que operam mais fornos do que o previsto em suas licenças ambientais, transportando, posteriormente, mais carvão do que o declarado nas guias florestais que acompanham a carga. Também ocorre a reutilização dessas guias, originalmente relacionadas a certa quantidade de matéria-prima, para acobertar o transporte de outro tanto proveniente de desmatamento ilegal – algo que está por trás inclusive do comércio desses papéis entre carvoeiros.

As ilegalidades respingam em cheio nas guseiras, já que a lei obriga os usuários de produtos florestais a comprovar a origem daquilo que consomem. Em abril de 2007, por exemplo, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) lavrou R$ 150 milhões em multas durante inspeção em oito indústrias do Polo de Carajás. Em junho de 2008, o instituto bateu à porta de 60 siderúrgicas em Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Espírito Santo. Dessa vez, as autuações, relativas ao consumo de 800 mil metros cúbicos de carvão irregular, ultrapassaram R$ 400 milhões.

Paulino Cícero de Vasconcellos, presidente do Sindicato da Indústria do Ferro no Estado de Minas Gerais (Sindifer), classifica de incompetente a ação do Ibama e revela que o setor – como é de praxe em autuações do gênero – recorreu das multas. "Ninguém vai pagar, não há como", afirma. "Quando o cidadão faz a remessa da área de carvoejamento para a usina, ele não tem lá balança de precisão, está no meio do mato." Isso explica, segundo Vasconcellos, diferenças apuradas entre o valor expresso em guias florestais de trânsito e o total que, de fato, chega às empresas. "Se esse argumento fosse válido, seria natural haver também situações em que um volume menor de carvão é entregue às siderúrgicas", rebate José Humberto Chaves, coordenador-geral de Autorização de Uso da Flora e Florestas do instituto. "Mas o que vimos foi um erro sempre tendencioso e bastante acentuado para mais."

Para fiscalizar as indústrias, um dos métodos do Ibama consiste em comparar a produção de ferro-gusa com os documentos de origem florestal que as guseiras possuem, justamente para ver se bate a conta com o carvão necessário – procedimento que, segundo alegações do setor produtivo, não considera inovações que reduzem seu consumo nos altos-fornos. O órgão nega o argumento e diz que o fator de conversão adotado pelas empresas é a base para o controle.

Novas fronteiras

Atualmente, áreas de produção de carvão chegam a estar mais de mil quilômetros distantes das siderúrgicas consumidoras. A atividade penetra por biomas muito afastados das usinas, como, por exemplo, a caatinga, onde o Ibama destruiu, em agosto do ano passado, dezenas de fornos ilegais na região de serra Talhada, em Pernambuco – foram identificadas, segundo o instituto, siderúrgicas da região sudeste como compradoras. Preocupações quanto à expansão da fronteira do carvão também remetem ao Piauí, onde cresce o carvoejamento para o Polo de Carajás. Em 2007, o Ministério Público Federal denunciou aquele que, de acordo com o órgão, foi o primeiro caso de trabalho escravo flagrado em carvoaria local vinculada à siderurgia.

Entre todos os biomas, o pantanal é hoje um dos principais focos de preocupação. O motivo é um robusto complexo siderúrgico que está se instalando em Corumbá (MS), no coração das terras pantaneiras. A mineração de ferro no município, onde atuam as brasileiras Vale e MMX, além da anglo-australiana Rio Tinto, incentivou a criação de indústrias de ferro-gusa e aço na região, algumas inclusive controladas por esses três grupos empresariais.

Mato Grosso do Sul já figura como importante fornecedor do polo guseiro de Minas Gerais. "A instalação do complexo minero-siderúrgico, desconsiderada a possibilidade de uso de carvão mineral, aumenta a pressão sobre as áreas remanescentes de florestas nativas, configurando-se um cenário de desenvolvimento claramente insustentável", relata texto de 2008 do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas. Se for mantido o atual ritmo de desmate – que nem sequer considera a implantação das siderúrgicas –, prevê-se o desaparecimento da vegetação original do pantanal em pouco mais de 45 anos. Segundo o documento, foi explorada para fabricar carvão em Mato Grosso do Sul, somente entre 1997 e 2005, uma área nativa equivalente a 16% do estado.

Reação empresarial

A enxurrada de críticas à cadeia produtiva do carvão motivou, principalmente nos últimos anos, ações por parte das siderúrgicas. No Polo de Carajás, um exemplo é o Instituto Carvão Cidadão (ICC), que treina e audita carvoarias visando garantir o respeito às normas trabalhistas. Criada em 2004 pelas guseiras locais, a entidade mantém uma lista pública com mais de 300 carvoeiros reprovados pelas suas auditorias – e que, teoricamente, estão fora do mercado de venda à siderurgia. Ornedson Carneiro, presidente do instituto, afirma que o trabalho do ICC levou o polo a adotar uma base menor, porém mais qualificada, de fornecedores. Hoje, diz ele, mais de 90% da mão de obra que o abastece possui carteira assinada.

No entanto, permanecem dúvidas quanto à profundidade dessas melhorias. Um dos problemas é a dificuldade em saber se produtores descredenciados não estão retornando maquiados à cadeia produtiva, através da abertura de novas empresas. Também o papel dos intermediários no mercado de carvão é um obstáculo para controlar a situação dos trabalhadores. "Há carvoeiros grandes que compram dos pequenos e que depois negociam com as siderúrgicas", afirma Marcelo Campos, coordenador nacional do grupo móvel de fiscalização do MTE. Esse arranjo, a seu ver, é parte da estratégia de legitimação do setor. "As siderúrgicas querem diminuir os contatos, inclusive para se livrar dos problemas."

Pressionada pela opinião pública internacional, a Vale – principal fornecedora de minério de ferro às empresas brasileiras – também adotou medidas próprias relacionadas às guseiras. Em 2007, anunciou a suspensão de fornecimento a dez siderúrgicas que, segundo a multinacional, operavam fora da legalidade ambiental e trabalhista. A maioria das suspensões já foi revista e somente a mineira Itasider permanece sem receber o minério – procurada pela reportagem para comentar o assunto, a empresa não se manifestou.

Quando a questão é desmatamento, uma das apostas do Polo de Carajás é a adoção de fontes alternativas, como, por exemplo, o coco do babaçu – palmeira bastante comum na região –, para fabricar o carvão. A iniciativa mais uma vez esbarra em polêmicas, dessa vez envolvendo as quebradeiras de coco, extrativistas que sobrevivem à custa do aproveitamento do fruto. Segundo Maria Adelina Chagas, coordenadora-geral do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), o atual arrendamento de babaçuais para abastecer as siderúrgicas é "um conflito terrível" enfrentado pelas trabalhadoras, pois impede o acesso a terras onde elas antes recolhiam o coco. Problemas Brasileiros procurou o Sindicato da Indústria de Ferro-Gusa do Maranhão, estado palco de grande parte das disputas, que não se pronunciou sobre o assunto.

Gás e reflorestamento

Na esfera das políticas públicas, a construção do Gasoduto Meio-Norte é o mais ambicioso projeto atual para atenuar a pressão florestal exercida pela siderurgia. Em fase adiantada de licenciamento, a obra, que parte do Ceará e deve passar pelos maiores centros guseiros de Carajás, pode levar à substituição de parcela do carvão utilizada para aquecer os altos-fornos. Numa estimativa conservadora, de acordo com estudo encomendado pelo Sindicato das Indústrias de Ferro-Gusa do Estado do Pará (Sindiferpa), sua viabilização reduziria em 8,4% a biomassa consumida pelas dez usinas de Marabá (PA) – projeções mais otimistas do setor falam em até 16%.

Pouco comum no Brasil, o ferro-esponja é um produto alternativo ao ferro-gusa feito a partir de técnica que usa o gás natural como agente redutor do minério – dispensando, dessa forma, o carvão. Maurílio Monteiro, pesquisador de temas relacionados ao Polo de Carajás e atual secretário de Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia do Pará, acredita que o gasoduto pode, num segundo momento, viabilizar uma guinada do setor para essa outra matriz. "Periodicamente, os altos-fornos precisam ser reformados. Abre-se uma janela para que, em vez de realizar a reforma, as guseiras optem pela mudança de tecnologia", vislumbra ele.

A ideia, no entanto, não empolga Mauro Corrêa, diretor executivo do Sindiferpa, em cuja opinião o maior teor de impurezas do ferro-esponja torna-o menos competitivo no mercado. Ele faz ainda ampla defesa da siderurgia a carvão vegetal por tratar-se de uma fonte renovável. Estudos indicam, vale lembrar, que o carvão siderúrgico de biomassa, quando proveniente de reflorestamento, não contribui para o efeito estufa, ao contrário do carvão mineral e do gás natural. "O gusa brasileiro é verde", afirma. "Enquanto não temos 100% de carvão de áreas plantadas, é preciso buscar, de fato, alternativas. Mas a solução ideal é viabilizar o reflorestamento." Segundo Corrêa, há hoje no Pará 80 mil hectares reflorestados abastecendo as siderúrgicas. A meta é não mais depender das matas nativas a partir de 2015.

Seja por meio do plantio de áreas próprias ou do incentivo a terceiros, o reflorestamento é, sem dúvida, a menina dos olhos do setor produtivo quando o assunto é sustentabilidade. Em 2007, foi criado um fundo de investimentos bancado por nove guseiras de Carajás visando financiar empreendimentos do gênero. Também em Minas Gerais as empresas adotam um discurso pró-reflorestamento e, atualmente, costuram com o governo estadual um pacote de incentivos para, em dez anos, tornar-se independentes das matas nativas. Segundo o Sindifer, o polo local já planta cerca de 125 mil hectares por ano para alcançar esse objetivo.

A necessidade de florestas plantadas para suprir a siderurgia nacional é debate antigo – a própria lei prevê que grandes consumidores de matéria-prima florestal tenham cultivo equivalente a seu consumo. O fato de, após tantos anos, o reflorestamento ainda ser um gargalo gera desconfianças quanto ao comportamento das siderúrgicas. "Empresas instaladas em Carajás não cumpriram nenhum dos Planos Integrados Floresta/Indústria, nos quais são estabelecidas as diretrizes e metas relativas à origem do material a ser carbonizado", relata estudo realizado por Maurílio Monteiro. Situação semelhante, de acordo com ele, ocorre em Minas Gerais. "Lá também as exigências do Ibama para que siderúrgicas assegurassem, até 1992, o consumo de 70% de carvão originário de reflorestamentos, uma proporção que deveria atingir 100% no ano de 1995, foram sistematicamente desrespeitadas."

A reforma do Código Florestal Brasileiro é o que defende Vasconcellos, do Sindifer, para destravar o reflorestamento. Segundo ele, as grandes quantidades de terra alocadas a título de reserva legal e áreas de proteção são um entrave histórico à atividade. "Na Amazônia, é preciso comprar 100 hectares para reflorestar 20", exclama. Outra queixa remete ao montante oferecido por políticas de financiamento do Estado para fazer o plantio – "uma miséria", diz o representante do setor.

O carvão é o principal custo de produção do ferro-gusa, podendo ultrapassar 50% do total – supera, portanto, o próprio minério de ferro. Além dos altos investimentos necessários, as áreas cultivadas, via de regra, só estão aptas ao corte após sete anos. Tal conjuntura suscita perguntas sobre a real viabilidade econômica do reflorestamento, principalmente em usinas de menor porte e em polos dependentes da exportação, como Carajás – já que, no mercado internacional, o ferro-gusa brasileiro compete com outras matérias-primas e está sujeito aos preços impostos pelo mercado.

Além disso, há de se ponderar a potencial migração de pastagens para novas frentes de desmatamento com a alocação de milhões de hectares para produzir carvão. No norte do país, Xavier Plassat, da CPT, relata grande expansão da monocultura de reflorestamento, notadamente onde antes se criava gado. "O Bico do Papagaio [extremo-norte do Tocantins] está se cobrindo de eucalipto", conta. Em regiões onde há conflitos envolvendo grilagem e posse da terra, tal cultura, diz ele, favorece grandes fazendeiros ao inviabilizar quaisquer outras atividades produtivas nas áreas em litígio. "De certa forma, é melhor que uma cerca."

Revista Problemas Brasileiros

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