domingo, 15 de novembro de 2009

Surgimento de milícias antitaleban causa preocupação

Matthias Gebauer
Em Kunduz (Afeganistão)
Para compensar a falta de pessoal para combater o Taleban, o governo afegão encorajou a formação de milícias armadas na província de Kunduz. Mas os soldados alemães que atuam na área não sabem ao certo como lidar com esses bandos itinerantes de guerrilheiros.

Gachi Nabi acreditava que os seus dias de "Comandante Nabi" haviam terminado. "A minha jaqueta militar estava pendurada no guarda-roupa havia anos", diz o turcomeno de 49 anos, enquanto ajeita o colarinho de pele falsa da sua capa de chuva camuflada. "Até mesmo o meu fuzil Kalashnikov estava bastante enferrujado". Gachi mudou-se de Kanduz há sete anos, quando as forças armadas dos Estados Unidos expulsaram o Taleban. Em vez de liderar um grupo de "mujahadeens" contra o Taleban, ele tornou-se gerente de um restaurante especializado em peixes. "Ganhamos bastante dinheiro", conta ele. "Ao final do dia, tínhamos cerca de US$ 300 no caixa. A vida era melhor do que durante a guerra".


Gachi Nabi (ao centro, ao lado de companheiros milicianos) acreditava que os seus dias de "Comandante Nabi" haviam terminado. "A minha jaqueta militar estava pendurada no guarda-roupa havia anos", conta este turcomeno de 49 anos, hoje dedicado a caçar talebans em território afegão



Mas, várias semanas atrás, Gachi transformou-se mais uma vez no Comandante Nabi. Juntamente com cerca de 60 combatentes, em sua maioria jovens das áreas vizinhas, Gachi patrulha o distrito de Qalay-I-Zal, na região norte da província de Kunduz, o dia inteiro. O ex-"mujahadeen" descreve o grupo como algo semelhante a uma organização de vigilância de bairros. Na realidade, porém, trata-se de uma milícia fortemente armada - e, segundo as leis afegãs, ilegal - que foi criada antes das eleições parlamentares afegãs de 20 de agosto último. Gachi diz que indivíduos da região lhe telefonaram e lhe contaram as atrocidades que o Taleban estava cometendo. Elas imploraram a ele que as ajudasse a expulsar os militantes.


"A maioria das pessoas possui um fuzil AK-47"
Desta forma, conta Gachi, ele retornou a Qalay-I-Zal alguns dias antes das eleições. Junto com anciões que chefiam clãs da região, ele foi de vila em vila para recrutar combatentes. O treinamento mostrou-se praticamente desnecessário. "Quase todo mundo sabe como usar uma arma", diz ele. "Além do mais, a maioria das pessoas tem um fuzil AK-47 em casa. Assim sendo, o processo todo foi muito rápido".

Durante as noites seguintes, Gachi e os seus soldados simplesmente aguardaram em várias ruas pela chegada do Taleban. Quando os membros do grupo surgiram, eles os enfrentaram. Houve baixas dos dois lados; na primeira noite Gachi perdeu cinco homens. Mas, no fim das contas, a sua milícia conseguiu convencer o Taleban a retirar-se.

O governo afegão pretendia originalmente usar várias unidades de milícias locais, incluindo a de Gachi, como uma solução temporária para aumentar a segurança no período da eleição presidencial. A ideia era que essas unidades preenchessem lacunas provocadas pela carência de soldados e policiais. Entretanto, esses grupos acabaram adquirindo uma vida própria. Eles são atualmente um elemento integrante da arquitetura da segurança de Kunduz, incluindo esta capital provincial no norte do Afeganistão, onde os soldados alemães estão estacionados.

Onde a polícia teme circular
Ninguém sabe ao certo quantas dessas milícias surgiram nesse ínterim. Quando o chefe de polícia Abdul Razak Yakubi fica de pé no seu escritório bem mobiliado e mostra com uma vareta a localização de grupos individuais em um mapa da província de Kunduz, é fácil perder de vista o quadro geral. Yakubi, que geralmente é conhecido apenas como General Razak e que é bastante respeitado pelas forças alemãs na área, sente muito entusiasmo em relação aos grupos guerrilheiros. "Cabul não me fornecerá mais nenhum policial para Kunduz", diz ele. Assim sendo, ele aceita qualquer combatente que puder receber. "Por ora, eles são apenas milícias", explica Yakubi. "Mas talvez nós sejamos capazes de transformá-los em verdadeiros policiais nos próximos anos".

Muita gente em Kunduz deseja falar com o Comandante Nabi. Na última terça-feira, ele estava sentado ao lado de alguns anciões de Qalay-I-Zal com o chefe dos serviços de inteligência em Kunduz. Não havia nenhum assento vazio na sala enorme e cheia de sofás. Outros líderes de milícias chegaram em grupos de três e quatro pessoas, vindos de Khanabad, no sudeste, de Aliabad, ainda mais ao sul, ou de Imam Saheb, no norte. Os nomes desses lugares são familiares na Alemanha porque são neles que os soldados alemães são frequentemente alvos de ataques - ou são neles que os militares da Alemanha preferem evitar o confronto por uma questão de segurança própria. Lá a presença policial é muito pequena e o Taleban domina. São nesses locais que cada vez mais surgem exércitos privados, como o do Comandante Nabi.

As autoridades apreciam a presença das milícias. O chefe dos serviços de inteligência perguntou aos líderes, um a um, do que eles necessitavam. A resposta é sempre a mesma: armas, rádios, carros. A seguir ele perguntou se os integrantes das milícias tinham qualquer informação sobre a localização de líderes talebans. Um a um, os homens se aproximaram, incluindo alguns que trazem há anos as cicatrizes adquiridas quando combatiam como "mujahadeen". Eles forneceram os nomes de líderes talebans e detalhes sobre onde estes poderiam estar escondidos.

O Comandante Nabi conhece bem o seu inimigo; ele se chama Mulá Selba. O comandante diz que este líder não é visto desde que ele começou a lutar contra o Taleban. "Mas se ele reaparecer, nós resolveremos o problema à nossa maneira", afirma Nabi, com um tom que agrada o chefe de inteligência.

Armando os desarmados
Mesmo assim, os soldados alemães estacionados lá não se sentem totalmente confortáveis com a ideia de exércitos privados combaterem o Taleban. As autoridades calculam que haja de 200 a 400 grupos armados patrulhando a área em torno de Kunduz. Mas ninguém sabe ao certo. De fato, em várias ocasiões as patrulhas alemãs se viram em situações delicadas com as milícias. "De longe, tudo o que vemos é um grupo de homens armados. Como é que vamos saber se eles são talebans ou outros criminosos - ou se irão nos atacar?", diz um oficial alemão.

A discussão sobre as milícias é tão antiga quanto a própria guerra no Afeganistão. Em várias ocasiões a ideia de usar grupos de guerrilha para objetivos específicos foi discutida. E, à medida que os Estados Unidos implementarem a sua nova estratégia para o Afeganistão, isso certamente voltará a ser uma opção. Quando as milícias foram utilizadas, elas tiveram um sucesso apenas parcial. Porém, quando as coisas não saem erradas, ex-aliados podem transformar-se rapidamente no inimigo. Os Estados Unidos, que atualmente possuem uma grande base em Kunduz, estão envolvidos indiretamente em operações para armar as milícias - muitas vezes sem consultarem os alemães que lá combatem.

Soldados paquistaneses montam guarda nas colinas de Waziristão do Sul à caça de talebans

Trabalhar em conjunto com essas milícias gera vários problemas práticos. Mas um dos aspectos mais espinhosos deste arranjo - pelo menos para aqueles que ainda acreditam nos objetivos nobres da missão no Afeganistão - é o rearmamento. Em uma tentativa de reduzir o número de armas no Afeganistão, o Ocidente pagou milhões para persuadir os afegãos a entregarem os seus Kalashnikovs por US$ 100 (67 euros, R$ 174). Mas agora os alemães tem que recuar e observar pessoas cujas faces eles reconhecem do processo de desarmamento receberem novos rifles e lançadores de foguetes.

Amigo de hoje, inimigo de amanhã
Os alemães acham que poderá haver problemas ainda mais sérios no futuro. No momento, as milícias ainda estão sendo lançadas em sua maioria contra o Taleban. Mas os oficiais alemães perguntam o que acontecerá se grupos que foram armados e que obtiveram experiência de batalha agirem independentemente e começarem a buscar a sua própria agenda. Embora o governo alemão tenha necessitado bastante dos guerrilheiros durante a eleição, os seus ex-aliados poderiam rapidamente voltar-se contra o Estado fraco e defender o seu território com as armas obtidas - e não apenas contra as investidas do Taleban.

De fato, muitos céticos temem que o atual encorajamento à formação de exércitos privados poderia significar o início de um novo processo de desintegração no Afeganistão. Eles acreditam que vários clãs já estão discutindo as suas rixas com as milícias. Tais temores foram alimentados pelo fato de que , em uma recente reunião do conselho provincial de Kunduz que discutia a redução do número de distritos da província, as novas fronteiras que foram propostas eram mais ou menos idênticas àquelas que definem as áreas de influência de várias milícias.

De fato, grande parte da discussão focou-se em Qalay-I-Zal, a área na qual o Comandante Nabi e os seus homens exercem o poder. Mas Gachi insiste que não sabe nada sobre a discussão.

A seguir os seus homens entraram de novo na picape Toyota branca, penduraram as suas armas e enrolaram lenços em volta do rosto para protegerem-se da areia. Se não fosse pelos óculos de sol que tanto apreciam, eles poderiam ser facilmente confundidos com combatentes talebans.

Tradução: UOL

Der Spiegel

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