terça-feira, 10 de novembro de 2009

Leite brasileiro em busca de sucesso

Arte PB


Leite brasileiro em busca de sucesso

País tenta corrigir problemas para se firmar como maior fornecedor mundial

MIGUEL NÍTOLO


Foi uma verdadeira revolução no campo, no exato sentido da palavra, e ela pegou muita gente de surpresa, especialmente no estrangeiro, onde a visão de Brasil, até recentemente, se restringia a um país imenso e sem competência para extrair do solo fértil a fartura que poderia mudar seu status no cenário agrícola mundial. Acontece que, enquanto o mundo lá fora pensava assim, a lavoura aqui se modernizou, num trabalho de fôlego que consumiu muitos anos, investimentos e pesquisas – mais ou menos como aconteceu com o setor industrial, hoje respeitado e cada vez mais presente no exterior. Foi então que, de patinho feio na arte de cultivar a terra, a nação do “samba, futebol e carnaval” se transformou num importante representante da agricultura superior, projetando-se nos quatro cantos como uma potência incontestável do agribusiness.

Se os brasileiros já eram imbatíveis com o açúcar e o café, agora vão se tornando invencíveis, também, com a carne (de boi e de frango), o suco de laranja e, em breve, a soja e muitos outros grãos. O terceiro maior produtor agrícola e o primeiro entre os países emergentes, dizem os estudos, caminha rapidamente para, já nas próximas duas ou três décadas, se converter num efetivo celeiro do planeta, conforme profetizaram nossos antepassados. Todavia, existe um contraponto nessa feliz escalada, que diz respeito a um produto que, garantem os otimistas, reúne todos os ingredientes para alcançar o topo no médio prazo, mas que, conforme rebatem os realistas, terá, antes, de percorrer uma longa e pedregosa estrada: o leite.

O Brasil é um importante membro do clube de países que mais contribuem na oferta do produto, mas se encontra a uma distância razoável dos primeiros no ranking em escala global. É sabido que a Índia, com mais de 1 bilhão de habitantes, é o maior produtor do setor, tendo registrado no ano passado um volume de 102 bilhões de litros (computados tanto o leite de vaca quanto o de búfala), seguida pelos Estados Unidos, com 84 bilhões, e pela China, com 36 bilhões. O Brasil ocupou, no período, o sexto lugar, com 27 bilhões de litros, 7 bilhões a mais que em 2000, e expectativa de atingir 27,7 bilhões em 2009. Ou seja, com relação ao leite estamos na mesma situação experimentada décadas atrás pelo setor de carne, num tempo em que o rebanho era menor e o produtor carecia de tecnologia e padrões de qualidade. Essas desvantagens acabaram sendo superadas e, sem passes de mágica, foram-se abrindo as portas do mercado internacional. Os resultados apareceram no espaço de muitos anos, do que se depreende que, apesar de já se ter dito que o Brasil dispõe de meios para ascender rapidamente ao primeiro posto do setor leiteiro, o bom senso manda admitir que a tarefa aqui é simplesmente colossal.

Vários nós

“De 1990 para cá, crescemos a uma taxa de 4,2% ao ano, que é alta para os padrões mundiais, mas, logicamente, insuficiente para nos transformarmos, em pouco tempo, na maior potência leiteira”, pontifica Marcelo Pereira de Carvalho, especialista do mercado de lácteos. Diretor executivo da AgriPoint Consultoria e coordenador do portal MilkPoint, dedicado à cadeia do leite, Carvalho diz que, embora tecnicamente o Brasil possa se tornar o número 1 por ter área e recursos naturais como a água, “por ora essa vantagem tem um peso limitado”. Se, nos próximos anos, como é até provável que aconteça, o Brasil deixar para trás tradicionais nações produtoras, como Alemanha e Rússia, isso já representará um fenomenal avanço, afirma o economista Almir José Meireles, ex-executivo da área de planejamento estratégico da Cooperativa Central de Laticínios do Estado de São Paulo e do Grupo Vigor.

Afinal, onde está o nó górdio, que retarda a marcha triunfal do setor? Segundo os entendidos, não se trata de um, mas de vários nós. “São os mesmos obstáculos que inibem o deslanchar de uma série de outras atividades econômicas”, garante Meireles, autor dos livros Leite Paulista – História da Formação de um Sistema Cooperativista no Brasil, A DesRazão Laticinista e Planejamento, Qualidade e Globalização na Indústria de Laticínios, 1997-2000. Consultor em planejamento estratégico e organização empresarial da BrainStock Consultoria Empresarial, ele cita como entraves o baixo nível educacional da mão de obra e a deficiência da infraestrutura – faltam estradas que permitam o escoamento da produção o ano inteiro. Ele também aponta “a inexistência de normas claras e estáveis, situação que resulta em interpretações pessoais em decorrência, por exemplo, das diferenças de comportamento e de costumes de cada região”.

As características da produção leiteira no Brasil também estão entre os principais empecilhos. “A maior parte dos produtores é de pequeno e médio porte, com coleta diária de 50 a 100 litros”, esclarece Patrícia Blumer Zacarchenco, engenheira de alimentos e pesquisadora da TecnoLat-Ital (Instituto de Tecnologia de Alimentos), instituição de pesquisa, desenvolvimento e assistência tecnológica da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do estado de São Paulo. Ela sugere que esse perfil tem a desvantagem de carrear reduzidos investimentos para a atividade, circunstância essa que acaba por gerar problemas em toda a cadeia produtiva, tais como “baixa tecnologia, falta de controle sanitário dos animais e, quase sempre, a presença de situações higiênicas inadequadas nas operações de ordenha, conservação e transporte”.

Rosângela Zoccal, supervisora do Núcleo de Transferência, Treinamento e Capacitação em Pecuária de Leite da Embrapa Gado de Leite, tem outras informações esclarecedoras. Ela explica que no Brasil há um total de 1,3 milhão de produtores de leite e que 90% deles participam com menos de 50 litros por dia, contribuindo com somente 20% da oferta nacional. “Sabe-se também que a faixa que vai de 51 a 200 litros diários é ocupada por apenas 9% dos produtores, que respondem por outros 20%”. Assim, somente 1% dos produtores dá conta, diariamente, de mais de 200 litros, o que corresponde a 60% do leite brasileiro. Ressalte-se que a informalidade ainda é elevada, sobretudo no norte e nordeste, e tanto a comercialização de leite “porta a porta” como o mercado clandestino de queijos ainda vicejam no país. A formalização da produção, dizem os especialistas, tornaria mais fácil o desenvolvimento da cadeia produtiva e a formulação de políticas para o setor.

A verdade é que, para empurrar de vez para o alto os números da produção nacional de leite, será preciso vencer, também, uma série de outros desafios. “É essencial promover o fortalecimento do sistema de extensão rural e de treinamento específico para a atividade leiteira”, observa Glauco Carvalho, economista e pesquisador da Embrapa Gado de Leite. Ele cobra dos órgãos públicos e privados envolvidos maior disposição para adotar políticas de atuação enfáticas, com a definição de metas qualitativas e quantitativas a ser cumpridas tanto no curto quanto no longo prazo. Glauco observa que muitos produtores não conhecem sequer seu custo de produção, uma coisa que não se pode conceber, já que em qualquer atividade só se consegue alcançar o pleno sucesso quando ela é administrada como negócio.

O pesquisador da Embrapa também defende o aperfeiçoamento do processo produtivo mediante o emprego, pelo setor primário, de tecnologias capazes de reduzir custos, aumentar a produção e proceder à melhoria da qualidade do produto. “Já no tocante ao segmento de transformação, a indústria de laticínios deve investir na qualidade da matéria-prima e dos produtos processados, na escala de produção, na promoção comercial e na abertura de mercados.” Glauco destaca que é de suma importância que as empresas atuem em parceria na solução de grandes temas. “Precisamos dar atenção à representação do setor e à promoção do consumo”, conclui.

Valor nutritivo

O fortalecimento da imagem do leite é, de fato, determinante para o incremento da demanda. “Um dos fatores que contribuem para o baixo consumo é o desconhecimento de seus benefícios para a saúde”, destaca Márcia Aparecida de Paiva e Silva, assessora técnica da Superintendência de Política e Economia Agrícola da Secretaria de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais. Ela afirma que, além de explorar as alternativas de divulgação, valorizando o leite como produto indispensável para a alimentação humana, as estratégias de marketing deveriam envolver todos os elos da cadeia. Carvalho, da AgriPoint, pensa da mesma forma, mas salienta que nem sempre as informações passadas ao consumidor estão corretas, completas ou são imparciais. “O setor deve lançar mão de um trabalho de base, com a participação de médicos, nutrólogos, professores e pais, liberando informações científicas que motivem as pessoas a adotar dietas equilibradas, com a ingestão de lácteos”.

Campanhas com essa finalidade vêm sendo realizadas em todos os lugares. “A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) criou, em 2001, o Dia Mundial do Leite, celebrado em 1º de junho”, informa a mineira Márcia. “A ideia surgiu com o propósito de impulsionar o consumo do leite e de seus derivados, principalmente em países pobres e emergentes.” Ela diz que a iniciativa é primordial, dada a demanda insuficiente pela bebida e sua substituição por outros alimentos de valor nutritivo quase sempre inferior. Vem daí a reclamação feita pelos produtores de que os brasileiros bebem mais café, cerveja e refrigerante do que leite. A engenheira Patrícia, do Ital, comenta que o consumo brasileiro per capita de leite é de, aproximadamente, 130 litros por ano, 45 a menos que o volume recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Países vizinhos como a Argentina e o Uruguai têm demanda por pessoa de 215 litros por ano”, relata.

Nos Estados Unidos, esse consumo é de 255 litros, na Europa supera os 300 em várias nações e, no caso dos últimos países que ingressaram na União Europeia, vai de 150 a 300 litros. Em 2007, de acordo com a FAO, o consumo anual na Holanda foi de 626 litros por pessoa, na Irlanda de 575, na Dinamarca de 543 e na Suíça de 463. Especula-se que a disparidade do Brasil em relação ao resto do mundo se deva a fatores culturais, como os hábitos alimentares. Estaria, assim, respondida a seguinte pergunta que muitos produtores se fazem: “Se o Brasil consome algumas bebidas como um país de Primeiro Mundo, como pode tomar leite como um país pobre?”

É certo que a ausência do uso agressivo de marketing não é o único entrave à expansão do consumo. Há ainda a questão do poder aquisitivo. Sem o crescimento da renda fica difícil motivar o aumento da demanda por leite. “E mesmo que o brasileiro ganhasse um pouco mais, isso não seria o suficiente para dar ânimo ao consumo”, acredita Carvalho, do portal MilkPoint. Ele explica que o consumidor tem cada vez mais produtos com apelo à saúde à disposição no mercado, e que essas novidades sempre acabam tomando terreno dos lácteos. O economista Meireles observa, porém, que é preciso fazer justiça a Brasília, “que isentou os principais produtos lácteos dos tributos federais de maior monta (PIS/Cofins), medida que teve a capacidade de mudar a face do setor a partir de 2004 e de conferir ao Brasil meios para, enfim, alcançar a perseguida autossuficiência na oferta de leite”.

Técnicas de manejo

Tudo poderia ser bem diferente se a produtividade da pecuária leiteira nacional fosse maior. Rosângela Zoccal, da Embrapa, diz que no Brasil a média diária por vaca ordenhada é de 3,3 litros (ou 4,6 litros, segundo algumas estatísticas) e a de produção por estabelecimento é da ordem de 54 litros por dia, muito pouco diante do que se vê lá fora. Os campeões são os Estados Unidos e a Europa (25 e 30 litros diários por animal, respectivamente), mas, segundo entendimento de Meireles, esses dois mercados não servem de parâmetro para o Brasil por causa dos elevados subsídios concedidos neles às propriedades leiteiras. “A melhor comparação, ainda que desvantajosa para nós, deve ser feita com países como a Argentina (12,2 litros) e a Nova Zelândia (10,3), por exemplo”, opina ele.

É aqui que a assistência técnica ao produtor ganha relevância, porque tem o dom de permitir a transferência de conhecimentos capazes de aumentar a produtividade. “A aplicação de técnicas de inseminação para melhorar as características genéticas do rebanho e o ajustamento da quantidade e do balanceamento da alimentação são fatores que podem fazer a diferença, assim como a observância da vacinação e a aplicação de outros medicamentos”, destaca a engenheira Patrícia. O emprego correto dessas e de outras técnicas de manejo leva, invariavelmente, ao incremento da produtividade, ela diz, citando como exemplo prático desse trabalho de campo a assistência proporcionada pela Universidade Federal de Viçosa às propriedades leiteiras estabelecidas em seu entorno. “Ao longo dos anos, a produtividade ali aumentou”, completa.

A produção de leite vai além da imagem estereotipada associada ao setor até recentemente: um sujeito sentado num banquinho tosco ordenhando uma vaca. Não que ela seja totalmente descolada da realidade, já que muitos criadores continuam tirando leite dos animais daquele jeito, mas a modernização que se assenhoreou desse segmento, nos últimos tempos, teve o mérito de criar novos hábitos e métodos de trabalho, sofisticar a ordenha, fazer surgir uma leva de empresários de larga visão e, ainda por cima, ajudar a profissionalizar um destacado ramo da economia onde labutam milhões de brasileiros (a indústria de laticínios, dizem, gera mais empregos que a construção civil). Hoje, ao contrário de ontem, é possível acessar toda sorte de trabalhos e pesquisas voltados, especificamente, ao aperfeiçoamento e expansão do setor. Em 2007, por exemplo, a veterinária Georgiana Sávia Brito Aires mostrou ao mercado os resultados de uma pesquisa que conduziu com o objetivo de detectar os pontos negativos do leite produzido no Brasil. Naquela oportunidade, ela catalogou 21 defeitos relativos ao sabor, uma coisa que pode passar despercebida ao paladar do consumidor porque a maior parte das pessoas não cultiva o hábito de beber o produto puro, mas misturado ao café e ao chocolate, principalmente.

Doutora pela Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Georgiana conta que foram dois os principais defeitos de sabor detectados nas amostras analisadas: produto aguado e oxidado pela luz. Mas havia também aqueles que eram rançosos ou lipolisados, frutados, adstringentes, cozidos, sujos, ácidos e de sabor estranho, entre outros. Georgiana, que é também consultora de empresas, prega a ideia de que a indústria de laticínios brasileira deveria utilizar os dotes de especialistas em sabor, como fazem as de café, cerveja e vinho. Ela ressalta que, com a qualificação sensorial do leite, será possível trabalhar a causa do problema e resolvê-la ainda na fonte de produção ou até mesmo na indústria. “Em outubro de 2007, logo depois que a imprensa revelou o teor da pesquisa, veio à tona a fraude do leite levada a efeito por algumas indústrias e tornada pública pela ação da Polícia Federal”, destaca. Em sua opinião, há muito a ser feito quanto à qualidade do leite, mas já se percebe uma tendência à tomada de decisões que acabarão por colocar as coisas em seus devidos lugares.

Georgiana lembra que, desde 2002, está em vigor a instrução normativa nº 51, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que estabeleceu novos parâmetros de qualidade físico-química e microbiológica para o leite, além de regulamentar a coleta, refrigeração e transporte a granel. “Com certeza, tais medidas foram uma grande contribuição, mas é sabido que numerosos produtores ainda não conseguiram atender às exigências da legislação”, observa. O economista Meireles, que também é autor do recém-lançado A Integração Inacabada, um estudo sobre empresas cooperativas, diz que a instrução normativa nº 51 não chega a ser um texto moderno, mas que “gerou uma grande discussão no meio produtivo e, por conta disso, melhorou a qualidade do leite”.

O setor permite-se arroubos de otimismo, garantindo que, a exemplo do que aconteceu com outras commodities, o Brasil acabará, um dia, se ombreando aos grandes produtores mundiais de leite. E, assim, poderá confirmar as palavras do presidente da Nestlé no Brasil, Ivan Zurita, que, em depoimento à revista “Exame”, declarou que, enquanto outros países estão no limite, o país reúne condições para ser o grande fornecedor mundial do produto. “Estamos condenados a ter sucesso”, ele acentuou.

Revista Problemas Brasileiros

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