sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O que fazer quando a cidade pára?

O que fazer quando a cidade pára?

Apesar do rodízio, tráfego caótico acende debate sobre pedágio urbano

THIAGO GUIMARÃES

Avenida 23 de Maio, em São Paulo: engarrafamento
quilométrico / Foto: Iberê Thenório


Bem-vindo a São Paulo. Quando o alemão Wolfgang Becker decidiu participar desse projeto cinematográfico, logo viu poesia no incessante movimento de carros na capital paulista. O diretor de Adeus, Lênin registrou com beleza e realismo a cidade como um lugar de passagem, um espaço de fluxo de veículos pelas iluminadas vias da metrópole – algo bem diferente do que chamou a atenção dos outros diretores que também tomaram parte no filme. O vaivém do transeunte criado pelo imaginário de Becker termina numa loja de discos de vinil, um lugar quase surreal para uma cidade que não pára.

Para um paulistano típico, porém, o incessante trânsito e os quilométricos engarrafamentos pouco têm de lírico. Já em 2005, o órgão responsável por gerir a fluidez de veículos na capital paulista registrava índices de lentidão nos horários de pico que quase igualavam os recordes históricos, de 1996. De acordo com a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), as filas de veículos somavam, em média, 77 km pela manhã e 116 à tarde, num dia útil típico.

Desde então, com a indústria automobilística batendo seguidos recordes de vendas, a situação não tem melhorado. A CET estima que, todos os dias, de 3,5 milhões a 4 milhões de veículos rodem pelos 15 mil km de vias da cidade. Para mantê-los de fato em circulação, 1,8 mil agentes de trânsito se esforçam para evitar que um acidente ou um veículo parado em lugar impróprio perturbe a fluidez do tráfego. Entre as medidas de que a CET dispõe, a mais dura e polêmica até agora foi implantada há exatos dez anos. O rodízio de veículos, cujo nome oficial é Operação Horário de Pico, retira de circulação, teoricamente, um quinto da frota, ou cerca de 700 mil veículos, das 7 às 10 horas e das 17 às 20 horas dos dias úteis. Na prática, porém, muitos conseguem burlar o sistema de fiscalização.

"Nos primeiros meses do rodízio, o índice de acatamento era superior a 96%", recorda Luiz Carlos Cunha, então diretor de operações da CET. Em 2006, no entanto, entre 12% e 18% furaram o esquema. Até o final do primeiro trimestre deste ano, a empresa planeja aprimorar a fiscalização. A desobediência a esse sistema já é o maior motivo da aplicação de multas na cidade, à frente do excesso de velocidade. Só no primeiro semestre de 2007, foram 630 mil infrações.

Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, outras soluções estão sendo descartadas, por enquanto. "Primeiro vamos fazer valer o rodízio como ele deve ser, para depois pensar em outras medidas", diz o atual diretor de operações, Adauto Martinez Filho.

"O rodízio é uma medida de gerenciamento da demanda fundamental para assegurar um mínimo de acessibilidade", diz. A maior prova disso foi o que aconteceu em julho do ano passado, quando o prefeito Gilberto Kassab decidiu suspendê-lo por duas semanas, com base na suposição de que seria menor o volume de veículos durante as férias escolares. Após quatro dias, os congestionamentos atingiam a casa dos 200 km, causando grande insatisfação entre os motoristas. Ele, então, se viu obrigado a anunciar o cancelamento do experimento.

Saída à inglesa

Apesar dos crescentes índices de lentidão, Martinez Filho diz que qualquer medida alternativa ao rodízio penalizaria demasiadamente os cidadãos. O diretor da CET garante que estão fora de cogitação, portanto, um "endurecimento" do próprio rodízio ou mesmo o pedágio urbano. Entretanto, estaria justamente aí a solução para as cidades que mais sofrem com os engarrafamentos, afirmam especialistas que citam como exemplo o sistema de cobrança implantado em Londres. "Rodízio é paliativo. Não tenho dúvida de que a única forma de sairmos do ciclo vicioso dos congestionamentos é o pedágio urbano", diz o engenheiro Wagner Colombini Martins, que participou de um estudo apresentado à prefeitura de São Paulo no último ano da gestão de Marta Suplicy. Martins compreende que a medida "chatearia muitas pessoas", mas argumenta que é melhor a sociedade pagar o preço dos congestionamentos em dinheiro do que em tempo perdido, como acontece agora.

O estudo preliminar, financiado pela Fundação Hewlett, teve como consultor Derek Turner, um dos principais articuladores do pedágio urbano em Londres. Desde 17 de fevereiro de 2003, os automóveis que circulam pelo centro da capital inglesa têm de pagar, por dia, uma tarifa atualmente fixada em 8 libras (o equivalente a cerca de R$ 30). Essa medida conseguiu diminuir os congestionamentos em 26% até 2005. Rapidamente, Londres virou referência para outras cidades que cogitam introduzir sistemas de cobrança no Reino Unido, como Manchester e Cambridge, e fora dele, a exemplo de Nova York, nos Estados Unidos.

Antes que qualquer coisa fosse feita, entretanto, pesquisou-se muito o problema. Estimativas realizadas pelo Departamento de Transportes de Londres mostraram que, na área de 21 km² que viria a ser pedagiada, os veículos gastavam 4,2 minutos para percorrer 1 km, quando o tempo ideal seria de 1,9 minuto. A velocidade média dos veículos ficava abaixo dos 10 km/h durante mais da metade do tempo nos trajetos que passavam pela região central.

Na verdade, o debate sobre a adoção do congestion charging em Londres remonta a 1965, quando o governo britânico criou uma instância para pensar e executar políticas metropolitanas. Os estudos do Greater London Council indicavam que, com a cobrança de 0,60 libra de cada carro que circulasse pelo centro da cidade, metade das viagens àquela região deixariam de ser feitas. Pelo menos desde o final da década de 1980 já estava claro que a solução para a mobilidade na metrópole não estava em construir mais ruas. Trabalhos assinados por consultores privados mostravam que o pedágio urbano seria a melhor alternativa para a capital inglesa.

Ironicamente, todas essas pesquisas parecem não ter refletido a realidade. Em abril de 2005, a tarifa, que então já era de 5 libras, teve de ser reajustada. Segundo o prefeito Ken Livingstone, o aumento de 60% traria investimentos ainda mais robustos ao transporte público da cidade. Opositores do pedágio dizem que os surpreendentes custos de operação do sistema forçaram o governo a rever o preço cobrado, para as contas fecharem no azul. Graças ao reajuste, no entanto, a receita líquida acumulada nos três primeiros anos do sistema de cobrança alcançou 303,1 milhões de libras, informa Graeme Craig, diretor do pedágio urbano de Londres. O principal destino desse dinheiro foi o sistema de ônibus local.

Tampouco estava prevista desde o início a extensão da área em que a cobrança vigoraria. Em fevereiro, a zona pedagiada abocanhou bairros inteiros, como os nobres Chelsea e Notting Hill. Atualmente, o pedágio urbano londrino vigora entre as 7 e as 18 horas, em uma área de 45 km2. Seus administradores têm duas grandes propostas em mãos. Para tornar a medida mais correta do ponto de vista ecológico, a Transport for London estuda cobrar uma tarifa diferenciada de quem usa veículos mais poluidores e isentar os que rodam em carros com baixas emissões. Aqueles que mais contribuem para o agravamento do aquecimento global teriam de pagar 25 libras, mais que o triplo da tarifa normal. Também está em análise uma mudança tecnológica. Além das 230 câmeras que registram as chapas dos veículos que circulam pelo centro expandido, etiquetas eletrônicas instaladas no interior dos veículos poderão integrar o sistema a partir de 2010.

Business dos congestionamentos

Essas etiquetas eletrônicas (ou "tags") poderão ser do mesmo tipo das que começarão a equipar a frota da cidade de São Paulo a partir do ano que vem, com a função de identificar quem deixa de recolher imposto ou de licenciar o veículo – e que poderiam assim, no futuro, armazenar também dados relativos ao pagamento de taxas pelo uso do carro na região central. O pedágio urbano mostra-se, portanto, além de uma solução para a mobilidade, um negócio milionário para uma indústria bastante atenta às decisões das autoridades brasileiras.

Uma das empresas de equipamentos de cobrança e identificação eletrônica de veículos instaladas no Brasil é a Q-Free. Desde 2003, ela mantém uma fábrica em Campinas, onde monta os tags de tecnologia norueguesa que abastecem o mercado latino-americano. Eduardo Coutinho, diretor da Q-Free no país, está convencido de que o pedágio urbano é a saída para os congestionamentos em grandes cidades e que os tags representam a tecnologia mais confiável e eficiente para a implantação de tais medidas. Esse é um ponto de vista com o qual seu principal concorrente concorda. "O Brasil tem um potencial muito grande, e os projetos que estão sendo desenvolvidos aqui, neste momento, são os maiores do mundo", diz Adolfo Maier, representante comercial da austríaca Kapsch TrafficCom. As duas empresas são possíveis fornecedoras de tags no sistema de multi-lane free flow, que permite a identificação de veículos em trânsito sobre uma via com várias pistas.

De acordo com o engenheiro Wagner Martins, as simulações do pedágio urbano para São Paulo mostraram que a cidade poderia arrecadar cerca de R$ 5 bilhões por ano e ter condições de tráfego similares às de um dia típico de férias escolares, se fossem cobrados R$ 10 por dia de cada automóvel que acessa uma área pouco maior que a do centro expandido – isto é, aquela em que vigora atualmente o rodízio mais as proximidades da Avenida Luiz Carlos Berrini e do shopping Ibirapuera. O pedágio urbano de São Paulo envolveria uma área de abrangência e um volume de carros dez vezes maiores que os de Londres. A pesquisa concluía que, se a medida fosse estritamente controlada pela sociedade, haveria uma importante fonte de recursos para investimento em ônibus e metrô e para a recuperação do pavimento.

Exclusão ou solução?

Entretanto, a proposta de pedágio urbano é controversa inclusive entre os especialistas. A engenheira civil Liane Born, que está há três anos à frente da organização não-governamental Ruaviva, afirma que a própria entidade está dividida em relação ao assunto. Ela mesma diz não ter posição definida. Para seus apoiadores, o pedágio urbano é uma forma de arrecadar grandes somas dos usuários do transporte individual para financiar a modalidade pública. Para os opositores, a medida poderia gerar ainda mais exclusão no acesso à cidade.

"Londres foi extremamente bem-sucedida ao adotar o pedágio para melhorar o transporte público. No entanto, as cidades brasileiras têm uma matriz de distribuição de renda totalmente diferente", afirma Liane. Por outro lado, ela lembra que muitas das pessoas que prometem deixar o carro na garagem, se houver melhora no transporte coletivo, mentem. Isso sugere que não bastam investimentos no sistema público para diminuir o uso do automóvel. Em 1997, cerca de metade das viagens motorizadas na Região Metropolitana de São Paulo já era feita por automóvel, índice com tendência crescente. "Em Curitiba, as pessoas utilizam cada vez mais carros, apesar do bom sistema de transporte coletivo", lembra o professor Rômulo Orrico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A seu ver, não é razoável que as pessoas utilizem as ruas do jeito que quiserem e, portanto, o uso abusivo do automóvel tem de ser evitado.

Segundo Orrico, a questão central não deve ser o caixa do pedágio, mas a aceitação do sistema pelo público. Embora a experiência de Londres seja claramente bem-sucedida, "se a população não for consultada, no Brasil não vai dar certo", diz ele. E provavelmente não teria dado também em Estocolmo. Os suecos inicialmente rechaçavam a idéia de pedágio urbano, mas aceitaram fazer um teste, entre janeiro e julho de 2006. Nesse período, o volume de automóveis que cruzavam o centro caiu 22%, 80 mil viagens de carro foram evitadas, e a maioria delas passou a ser feita por transporte público. Em setembro, os moradores da região pedagiada participaram de uma avaliação em forma de plebiscito: 53% foram favoráveis à permanência do pedágio urbano e 47% se posicionaram contra. Com esse resultado, a medida foi adotada de forma definitiva.

O urbanista Nabil Bonduki, professor da Universidade de São Paulo (USP), não se diz contrário ao pedágio urbano, mas prefere medidas de desestímulo ao uso do automóvel às iniciativas de restrição propriamente ditas. "A cidade não tem futuro se estiver baseada no automóvel, mas as propostas que tendem a tornar seu uso mais caro, embora possam surtir efeito, têm caráter elitista: quem pode pagar não vai abrir mão do carro; quem não pode, ficará sem."

Bonduki cita três medidas importantes que desestimulariam o uso do automóvel. Primeiro, operar melhor os corredores de ônibus da cidade. Neles, o usuário deveria esperar poucos minutos para embarcar em um ônibus e seguir até uma estação, onde haveria transporte para diversos destinos. Em segundo lugar, equalizar a tarifa do transporte público nos 39 municípios da região, o que poderia ocorrer com a criação de um bilhete único metropolitano. Por fim, estimular que as pessoas morem perto do trabalho, reduzindo a necessidade de deslocamentos. "Ainda hoje, as regiões que oferecem emprego perdem moradores e as zonas residenciais crescem ainda mais. Reabilitar os edifícios do centro é muito importante não só para o morador de baixa renda; a cidade inteira ganha."

O que fazer com o dinheiro arrecadado? Essa é outra questão que o pedágio urbano traz. Nesse ponto, mesmo os que defendem sua implantação estão divididos. "Estabelecer preços justos para as viagens motorizadas é importante, mas ainda mais é garantir que o destino dos investimentos não seja a abertura de novas ruas, o que apenas incentivaria o processo de motorização", diz Jeffrey Kenworthy, professor da Universidade Murdoch, de Perth, na Austrália. Entusiasta do conceito de espaços urbanos sustentáveis (chamados "ecocidades"), Kenworthy defende a aplicação desses recursos em sistemas de transporte urbano sobre trilhos, capazes de atrair os usuários de automóveis e formar eixos de desenvolvimento urbano de alta densidade populacional. "De outro modo, o número e a distância das viagens de carro só aumentará, fazendo com que as cidades entrem numa espiral destrutiva", afirma.

Já o engenheiro Eric Ferreira, diretor do Instituto de Energia e Meio Ambiente, é categórico: "Por causa da baixa capilaridade, o metrô nunca será a solução para São Paulo. Não há também como melhorar o transporte público se ele tiver de disputar espaço com o carro". O técnico defende um pedágio urbano que financie melhorias no sistema de ônibus, que tem a vantagem de já estar presente em 4 mil km de vias.


Sem reinventar a roda

Nem pedágio, nem rodízio. Guarulhos espera dar conta dos problemas de mobilidade da cidade que mais cresce na Região Metropolitana de São Paulo com um conjunto de ações urbanísticas simples e baratas, baseadas em duas diretrizes: dar prioridade ao pedestre e realizar intervenções urbanas em prol da inclusão social.

O itinerário dos ônibus, por exemplo, foi revisto. "Das linhas que passavam pela região central da cidade, 17% não recebiam nem deixavam ninguém no centro. Não era necessário que tantos ônibus circulassem por ali", diz Geraldo Moura, diretor de planejamento da Secretaria de Transportes da cidade. Paralelamente, a prefeitura tem adotado medidas de traffic calming – instalação de sinalização e pequenas intervenções urbanísticas destinadas a controlar a velocidade dos veículos, garantindo assim mais segurança às pessoas que andam a pé por esses locais. O espaço antes ocupado por automóveis está sendo devolvido aos pedestres e ao transporte coletivo.

Tudo custou até agora R$ 2 milhões. Até o final do ano, outros R$ 10 milhões serão investidos em um projeto de calçadão na Rua Capitão Gabriel, um dos mais importantes passeios da cidade. A fiação elétrica deverá ser aterrada, serão construídos teatros de arena, e a rua, onde atualmente passam ônibus, será destinada apenas ao trânsito de pedestres. Assinado por Paulo Mendes da Rocha, o projeto deverá também resgatar referências históricas importantes para a formação do núcleo urbano.

O Ministério das Cidades incluiu a experiência do município na lista de boas práticas. Indicador ainda melhor do sucesso dessas políticas urbanas se traduz em números: em apenas cinco anos, o índice de atropelamentos com morte caiu 25%. "Não é necessário reinventar a roda. Apenas constatamos que não se faz qualificação urbana sem pensar na mobilidade e não se otimiza a mobilidade sem qualificação urbana", diz Geraldo.

Revista Problemas Brasileiros

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