segunda-feira, 12 de outubro de 2009

As guardiãs dos segredos da Terra

As guardiãs dos segredos da Terra

Beleza e mistério formam o rico e ameaçado patrimônio espeleológico do país

NILZA BELLINI


Bonito (MS)


Onde está Bin Laden? No imaginário popular, o homem mais procurado em todo o mundo se esconde numa das incontáveis cavernas da cordilheira Hindu Kush, no Afeganistão. É um homem das sombras, materialização do mal, prega o presidente americano George W. Bush. Essa relação entre o mal e as cavernas não é nova. Mito de origem, arquétipo do útero materno, na tradição grega uma caverna serviu de caminho para Deméter descer aos Infernos à procura de sua filha, Perséfone. "As cavernas têm o poder de atrair e repelir pessoas. Constituem o pano de fundo para lendas e histórias fantásticas", diz o geógrafo Luiz Eduardo Panisset Travassos.

Espaços vazios escavados em rochas, as cavernas fascinam e estimulam a imaginação do Homo sapiens desde os primeiros tempos. Na visão de muitos são sagradas, cheias de energia, perfeitas para práticas rituais, continua Travassos. Beowulf, personagem de um poema anônimo escrito em inglês antigo há mais de mil anos, representa o mito do herói de uma sociedade pagã que lutava contra velhos poderes da terra e forças da natureza personificadas em monstros e dragões nascidos em cavernas e por elas protegidos.

Mas a mítica de que as cavernas abrigam o mal cede cada vez mais espaço para a abordagem científica. Elas são hoje objeto de complexos estudos de geologia, paleontologia, arqueologia e biologia. No Brasil, poucas estão mapeadas: estima-se a existência de mais de 100 mil, de todos os tamanhos, das quais apenas 4.463 foram registradas no cadastro da Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE), entidade fundada em 1969 que reúne estudiosos do tema. O desconhecimento é proporcional à preocupação de muitos cientistas com a preservação desse patrimônio natural brasileiro. Das discussões entre os especialistas surgiu um esboço do que pode vir a ser a nova legislação protetora das cavidades naturais subterrâneas.

As cavernas estão citadas na Constituição Federal de 1988 como "bens da União" (artigo 20, inciso X), o que significa que compete ao poder público sua gestão e fiscalização. A responsabilidade por sua proteção cabe ao Centro Nacional de Estudo, Proteção e Manejo de Cavernas (Cecav), órgão do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) criado em 1997.

Na prática, as únicas cavernas razoavelmente protegidas são as que se localizam em parques nacionais. Já é antigo o conflito entre defensores radicais do meio ambiente e desenvolvimentistas. Uns querem mantê-las como espaços intocados. Outros criticam a legislação por ser excessivamente protetora. Um exemplo histórico desse enfrentamento está na atividade de exploração de minérios. As mineradoras que já estavam instaladas antes da assinatura do decreto nº 99.556, de 1990, que protege as cavernas, argumentam ter o direito de lavra nessas áreas, o qual teria ficado comprometido com o documento legal. Em contrapartida, a lei é clara ao estabelecer que todas as cavernas brasileiras devem ser preservadas e ter a integridade de seus ecossistemas garantida, independentemente de sua localização ou atributos.

Atualmente, o Cecav analisa novos procedimentos metodológicos, que servirão tanto para avaliar o nível de relevância das cavernas quanto para classificá-las de acordo com sua importância. Esse estudo é o primeiro passo para uma efetiva alteração da legislação vigente, que não permite empreendimentos que ponham em risco a integridade física e a manutenção do equilíbrio ecológico das cavidades e de sua área de influência. Segundo o texto da entidade, com base nesses parâmetros será possível conceder "licenciamento ambiental a empreendimentos potencialmente poluidores, cujas áreas de influência estendam-se sobre territórios de ocorrência de cavernas".

Os ecologistas e espeleólogos, por sua vez, temem um recuo dos ganhos com a nova legislação. Artigo citado em minuta do que será o novo decreto, ainda não encaminhado à presidência da República, prevê que "os empreendimentos e atividades modificadores do meio ambiente que acarretem impactos negativos irreversíveis ou não mitigáveis às cavidades e ao patrimônio espeleológico dependerão da elaboração de estudo de impacto ambiental (EIA) e respectivo relatório de impacto ambiental (Rima)".

Empresas privadas são contratadas para a elaboração desses relatórios. E mesmo que em audiências públicas realizadas para avaliá-los eles sejam refutados, essa contestação não é impeditiva; serve apenas de indicador para o Ibama, em última instância o responsável pela concessão da licença. "O problema quando se discute meio ambiente e espeleologia não é apenas a possibilidade de degradação das cavernas em si, mas do seu entorno. Os grandes vilões do patrimônio espeleológico são, sem dúvida, as hidrelétricas e as mineradoras", observa Marcelo Rasteiro, da SBE.

Ação da água

Mais de 80% das rochas das cavernas brasileiras são carbonáticas, ou seja, contêm radical de carbono. Entre elas estão calcários, dolomitas e mármores de grande valor para as indústrias de cimento, empresas de extração de mármore ou outras ligadas à construção civil.

Os minerais das rochas carbonáticas são dissolvíveis pela chuva e pela água que atravessa os solos – que fica ácida quando reage com o dióxido de carbono. A acidez aumenta por causa das raízes e dos microrganismos que ajudam a liberar o carbono. Ao penetrar no solo, a água escava pequenos tubos, como veias no interior da rocha, que se dilatam até formarem grandes covas capazes de abrigar o homem. "Uma caverna seca é vestígio do que foi uma caverna subaquática", explica William Sallun Filho, pesquisador do Instituto Geológico da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo. Outras rochas, como quartzitos, arenitos, xistos, granitos e gnaisses, também podem sofrer a ação da água e possibilitar o surgimento de cavernas.

Nas regiões calcárias, onde ocorre a absorção e o transporte de água sob a superfície, surgem feições de relevo típicas, detectáveis até por satélite. Trata-se de uma formação chamada carste. O termo deriva de Karst, nome de uma região da Eslovênia. O carste tem um sistema de dutos subterrâneos por onde a água é conduzida.

São rochas jovens diante da história geológica da Terra. Os geólogos calculam que o planeta tenha 4,5 bilhões de anos. No Brasil, a maior parte das carbonáticas foi formada há mais de 600 milhões de anos, ao passo que as cavernas são do período geológico atual, o Quaternário, iniciado há cerca de 2 milhões de anos. As espécies de espeleotemas – estalactites (que descem do teto) e estalagmites (que sobem do chão) – e os travertinos, criados pelo acúmulo de minerais carregados pela água em alguns pontos, podem ter milhões de anos. São fantasticamente bonitos nas cavernas secas. Sallun destaca que eles conservam informações muito importantes sobre a formação do planeta. As cavidades subterrâneas também guardam a história da evolução das espécies e da cultura humana. Entre os estudos geológicos, é fundamental o do paleoclima, obtido a partir da análise dos espeleotemas. "Eles permitem entender o atual padrão de variação climática", observa Sallun.

Tesouros brasileiros

As cavernas brasileiras já documentadas localizam-se, na maioria, nos estados do sudeste e centro-oeste e na Bahia. A toca da Boa Vista, em Campo Formoso (BA), é a maior caverna conhecida do hemisfério sul. Até 2006 foram mapeados mais de 102 quilômetros de suas galerias. A mais alta entrada, com 215 metros de altura, é a da gruta Casa de Pedra, no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar). Principais atrativos turísticos da região do vale do Ribeira, só no parque mais de 300 foram exploradas. Dessas, destacam-se Santana, Morro Preto, Lambari, Água Suja e Casa de Pedra, e, próximo dali, a famosa caverna do Diabo.

No Distrito Federal fica a maior caverna nacional conhecida em micaxisto, a gruta dos Ecos, com 1.380 metros e um lago subterrâneo de 300 metros de comprimento. Em Minas Gerais está a maior caverna vertical em quartzito do país, a do Centenário, com 481 metros de profundidade. No Parque Nacional Cavernas do Peruaçu (MG) uma estalactite de 28 metros é considerada uma das maiores do mundo. Devido a suas características, as formações brasileiras têm sido muito procuradas por expedições espeleológicas internacionais.

"Visitar cavernas é fascinante", assegura José Antonio Basso Scaleante, o Scala. "É uma experiência incomparável, a paisagem subterrânea é única", diz o professor, que é também pesquisador de um grupo acadêmico que analisa o potencial espeleológico do Amapá. Faz quase 30 anos que Scala visita cavernas. Das mais de 4 mil cadastradas, já esteve em quase mil. "Sinto-me honrado, aconchegado no ventre da terra", diz.

Defensores da preservação de cavernas, como Scala, apontam várias razões para a importância de protegê-las. Elas conservam minerais raros e formações geológicas preciosas; abrigam importantes sítios geológicos, paleontológicos e arqueológicos; foram e são consideradas locais sagrados por culturas e civilizações; representam reservas hidrológicas estratégicas para o abastecimento de cidades, agricultura e indústrias; cada vez mais tornam-se fontes de atividades econômicas como o ecoturismo e a prática de esportes. Apesar de tudo isso, a deterioração progride. Quer seja motivada pela mineração, quer seja pelo turismo, a presença do homem nas cavernas ou em seu entorno é sempre uma ameaça.

Mesmo no estado de São Paulo, onde a fiscalização é intensa, o patrimônio espeleológico é desrespeitado. Há poucos meses o Ibama autuou proprietários rurais que plantaram cana-de-açúcar e eucalipto ao redor de cavernas importantes localizadas em Altinópolis, Ipeúna, Analândia e Itirapina, cidades da região de São Carlos. O órgão estabelece um perímetro de 250 metros de área livre ao redor das cavidades para não prejudicar o ecossistema. Na região do Alto Paranapanema, o estrago foi provocado por mineradoras. As multas aplicadas contra as empresas que não tinham licenciamento ambiental somaram cerca de R$ 1,3 milhão. O turismo também provoca danos. As pisadas levam à compactação dos solos, impedindo a sobrevivência de organismos que vivem no local. A eutrofização – acúmulo de matéria orgânica em decomposição transportada do exterior – causa a poluição do ar e das águas do interior e afeta a vida dos animais que só vivem em cavernas.

Na maioria delas, porém, não foram demarcadas áreas de proteção, nem restringida a visitação. São poucos os casos de interdição. Em 2002, por exemplo, a gruta do Tamboril, localizada em Unaí (MG), foi fechada pelo Ibama a pedido da Secretaria de Saúde, por suspeita de histoplasmose, infecção causada por um fungo originado nas fezes de morcegos. As placas de interdição e as cercas de arame foram retiradas por desconhecidos e em 2004 houve novos casos de contaminação. A transmissão de doenças causadas por fungos que proliferam em cavernas, no entanto, é rara.

Danos ambientais

O professor universitário Heros Lobo, doutorando em geociências pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, está escrevendo a primeira tese acadêmica sobre o impacto ambiental do turismo espeleológico. Ainda que seja impossível eliminar totalmente esse tipo de dano, Lobo quer criar um método para reduzi-lo. Com esse objetivo, faz monitoramento climático e microscopia eletrônica de varredura no material que coleta das rochas de cavernas abertas à visitação e das fechadas ao público. "No exterior existem trabalhos do gênero, mas ainda não foi feita uma matriz de impacto ambiental", diz ele.

Um ex-aluno de Lobo na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (Uems), Rafael Camargo, também trabalha para encontrar uma fórmula que reduza o impacto do turismo. Integrante do Grupo de Espeleologia da Serra da Bodoquena, Camargo analisa o aspecto financeiro dos recursos ambientais da gruta do Córrego Azul 3, de Bonito (MS). "Só depois de atribuir um valor econômico ao patrimônio cavernícola vamos obter vitórias para a preservação", diz.

Jóias paleontológicas

Muitas vezes o excesso de peso de sedimentos, a erosão ou outros fatores naturais fazem com que parte do teto de uma caverna desabe. Esse afundamento, circular e em forma de funil, é chamado dolina. Embora entre a população pouco letrada a dolina seja chamada de sumidouro, este é na verdade constituído por rios que correm na superfície e, de repente, entram numa cova e desaparecem dentro da terra.

É pelas dolinas já formadas que em algumas cavernas, às vezes, entra a luz. Noutras vezes o desabamento, que é repentino, leva junto plantas, pedras e animais. Como as dolinas surgem subitamente, acidentes urbanos expressivos têm ocorrido em áreas onde engenheiros não avaliam o risco de construir sobre cavernas. É exemplo disso o buraco de Cajamar (SP), com 35 metros de diâmetro e quase 15 de profundidade, que se formou em 1986. Acidentes semelhantes têm assustado os curitibanos atualmente. Já aqueles que acontecem em áreas rurais quase não são divulgados, principalmente por serem confundidos com erosão.

Por outro lado, as dolinas muito antigas indicam áreas onde podem estar escondidas preciosidades paleontológicas. Grande parte do conhecimento atual sobre espécies extintas nos últimos 2 milhões de anos no Brasil vem do estudo de fósseis preservados em cavernas. Os animais podem ter sido tragados durante a formação de uma dolina ou entrado por conta própria em grutas e se perdido. Desde o final dos anos 1990, vários deles foram localizados.

Em 2004, uma equipe de mais de 30 pessoas ligadas à Universidade Federal de Minas Gerais resgatou ossos de 14 animais diferentes enterrados no poço Azul, em Nova Redenção (BA). Entre eles estava o esqueleto quase completo de uma preguiça-gigante, que viveu nas Américas cerca de 11 mil anos atrás. Em cavernas alagadas na serra da Bodoquena, em Mato Grosso do Sul, outra equipe, essa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, encontrou um cemitério submerso de fósseis de animais pré-históricos, como mastodontes. As cavernas da serra da Bodoquena são alagadas, e os cientistas precisaram escavar debaixo da água. Também foram localizados fósseis de preguiças-gigantes e tigres-de-dente-de-sabre.

A vida de hoje

Pedro Gnaspini, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), é um especialista em fauna cavernícola atual, que ele classifica em três espécies: os troglófilos, capazes de completar seu ciclo de vida dentro ou fora desses ambientes, os troglóxenos, que saem freqüentemente para se alimentar, e os troglóbios, restritos ao ambiente cavernícola. Como, devido à ausência de luz, as plantas não se desenvolvem, as fontes de alimento para os troglóbios vêm do exterior, por meio da ação das chuvas, dos ventos ou das fezes de animais como os morcegos. Alguns, durante o processo de evolução, perderam a visão e se locomovem por meio de um sistema semelhante a um sonar. Ainda é grande, no entanto, o desconhecimento da ciência sobre a fauna cavernícola.

São também escassos os estudos arqueológicos. É possível que peças de cerâmica utilizadas por habitantes de um Brasil com mais de 500 anos já tenham sido destruídas. Ao contrário do que aconteceu na caverna de Lascaux, na França, a maior parte das pinturas rupestres dos habitantes da pré-história brasileira foram feitas nas rochas externas das cavidades. "Muitas podem ter sido apagadas", observa o historiador Washington Simões. "Felizmente, restam os exuberantes desenhos pintados nas rochas da serra da Capivara, no Piauí, que nos permitem conhecer muito da história dos povos que viveram naquela região", diz.

Renê de Souza, coordenador de expedições da SBE, explica que a prospecção de novas cavernas sempre começa com informações de moradores da região onde elas estão localizadas. O mapeamento se dá com a visita ao local e a complexa marcação de paredões, galerias, abismos. Trata-se de uma atividade arriscada, que nunca deve ser feita por equipes com menos de cinco pessoas, e da qual dependem duas providências básicas para a proteção do patrimônio espeleológico brasileiro: a identificação e o reconhecimento. Estejam as cavernas na Amazônia, onde por décadas sua ocorrência foi negada, estejam no estado mais devastado pela mineração desde os tempos imperiais, Minas Gerais, é fundamental muito cuidado com esse sistema tão frágil e delicado.

Revista Problemas Brasileiros

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