segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A árvore de mil e uma utilidades












Fotos: Sheila Oliveira
A árvore de mil e uma utilidades

A carnaúba é parte inseparável da paisagem do semiárido nordestino e tão arraigada ao modo de vida do sertanejo que se tornou o símbolo de sua sobrevivência






Palhas da carnaúba para serem utilizadas como palha trabalhada para artesanato

Não é de estranhar que o escritor cearense José de Alencar (1829-1877) comece a história de amor de uma índia com um guerreiro branco em Iracema, seu livro mais famoso, aludindo a carnaúba. Afinal, a intenção do autor, nessa metáfora da formação da nação brasileira, era valorizar a terra natal, mostrando o que havia de belo e engrandecedor na natureza virgem que iria se unir à cultura europeia. E a carnaúba, “onde canta a jandaia”, como ele escreveu poeticamente referindo-se à ave, é parte da paisagem e da cultura da terra (veja nos quadros as menções à carnaúba por parte de Alencar e de outros escritores brasileiros). Embora existam outras palmeiras da mesma família na Venezuela, Bolívia e Paraguai, a Copernicia prunifera é exclusiva do Brasil.

Do litoral ao sertão, a carnaúba está sempre presente no cenário do semiárido, distribuindo-se do Maranhão à Bahia ao longo dos rios ou em áreas inundadas e de pouca profundidade. Os índios aproveitavam quase tudo dessa “árvore que arranha”, significado da palavra carnaúba na língua tupi, referindo-se à sua casca áspera. Da palha e da fibra, faziam as vestes tradicionais, o artesanato, as redes e até a coberta das casas. Do tronco, saíam os artefatos; do palmito, a farinha; dos frutos, o alimento; das raízes e amêndoas, remédios capazes de curar as piores dores.

Os sertanejos acrescentaram mais algumas aplicações à árvore de mil e uma utilidades. A palha serve hoje para adubação do solo e a cera, obtida do pó que é extraído e processado das folhas, é um insumo valioso que entra na composição de diversos produtos industriais, como cosméticos, cápsulas de remédios, revestimento de componentes eletrônicos, verniz e produtos de limpeza. A presença da cera nas folhas, aliás, é uma característica apenas da carnaúba brasileira, sendo consequência de sua adaptação às regiões secas. Ela dificulta a perda de água por transpiração e protege a planta contra o ataque de fungos.

A cera chamou a atenção dos europeus para a árvore ainda nos tempos do Brasil Colônia. Usada para fazer as velas que, já no século 18, iluminavam as noites na metrópole, a carnaúba era a origem de um dos principais produtos brasileiros de exportação. Mas foi no século 20 que a cera ganhou status de produto estratégico para a indústria, ao se tornar matéria-prima obrigatória de papel-carbono e graxa para sapatos, impermeabilização de metais e na fabricação dos antigos discos de vinil. Já faz parte da história a viagem épica do empresário Samuel Johnson, dono das Ceras Johnson, que, em 1935, veio ao Brasil a bordo de um hidroavião para conhecer de perto a árvore que era a origem de seus produtos para polimento de assoalhos.

Na década de 1950 começou o período de decadência econômica, pois a palmeira que crescia naturalmente não existia em número suficiente para atender a demanda sempre crescente. Isso fez com que a cera fosse aos poucos sendo substituída por derivados do petróleo que, inclusive, eram mais baratos. Mesmo assim, ela ainda é insuperável, por exemplo, como isolante elétrico nos chips de computadores.Com o tempo, os nordestinos adaptaram a matéria-prima a suas vidas e a sua cultura e aprenderam a utilizar a palha para chapéus e tapetes, que são a principal atração de várias cidades do interior cearense. Em localidades pequenas, habitações inteiras são construídas com o material da árvore: telhados, cordas, sacos, esteiras, balaios, cestos, redes e mantas são confeccionados com suas fibras. Ainda como subproduto, a folha triturada serve como adubo para milhares de pequenas roças e pode ser usada para a alimentação de ovinos e caprinos.

Dependendo tanto da carnaúba para a sua sobrevivência, não é à toa que na região ela tenha sido apelidada de “árvore da vida”. No entanto, vítima da urbanização e de décadas de exploração predatória, a árvore começa a rarear em locais em que antes era abundante.

CARNAÚBA: POPULAR E EXCLUSIVA DO SERTÃO

A restrição da existência ao semiárido nordestino não significa pouca utilização ou baixa popularidade à carnaúba. Muito pelo contrário. De tão arraigada à vida do sertanejo pelos seus inúmeros usos, a Copernicia prunifera foi até eleita como árvore símbolo dos Estados do Piauí e do Ceará.
O nome carnaúba tem origem tupi e significa “árvore que arranha”, mas essa palmeira também é chamada de “árvore da vida” pelos seus variados e inúmeros usos – inclusive medicinais. Países como a Alemanha, Índia, Japão e Estados Unidos já tentaram sem cultivar a espécie e não obtiveram sucesso. Suas florestas em planícies aluviais do sertão nordestino são essenciais na manutenção do equilíbrio ecológico, pois contribuem na conservação dos solos, fauna e mananciais hídricos.

Palmeira que atinge entre sete metros e 10 metros de altura, podendo excepcionalmente atingir 15, a carnaúba tem uma copa com forma de esfera. Essa característica foi o elemento determinante que levou os cientistas a nomear seu gênero como Copernicia, uma homenagem ao astrônomo italiano Nicolau Copérnico (1473-1543).


Revista Horizonte Geográfico

Os dois lados da Raposa Serra do Sol



Os dois lados da Raposa Serra do Sol
Daniel Veloso Hirata e José César Magalhães Jr. fotos Fábio Braga


Os arrozeiros
No início era o caos, mas os raios de sol sobre as águas abundantes que desciam das montanhas tornavam o lugar perfeito para o crescimento do arroz dos Itikawa. Este lugar idílico é Roraima, estado natal de Izabel Itikawa, filha de pais cearenses que vinham em busca de melhores oportunidades de negócios em uma região ainda pouco explorada economicamente para além do garimpo. Seus pais eram pecuaristas, e ela conta que brincava com os índios que viviam "nas imediações" da fazenda. Nesta gênese da história do desenvolvimento econômico da região, em que brancos e índios brincavam juntos sob o clima aprazível, a boa e fértil terra da fazenda de seus pais estava disponível para ser semeada, já que a pecuária extensiva subaproveitava os recursos naturais. Desde os tempos de Marechal Rondon, aquelas terras ainda careciam de um projeto regional capaz de impulsionar o povoamento e o crescimento econômico. No início dos anos 1980, depois de várias tentativas malogradas dos projetos de colonização, o governo do Brasil contrata para o então território federal um profissional que deveria apontar "a vocação econômica de Roraima". Era Nelson Itikawa, nascido no Paraná, engenheiro agrônomo, produtor de arroz e futuro marido de Izabel. Na fazenda de Izabel, cujo nome de solteira é Izabel Cristina Rocha Ferreira, o casal testaria a viabilidade da rizicultura. Começaram com sete hectares. Hoje, suas terras, que incluem a fazenda original e mais as fazendas Carnaúba e Vizeu, somam mais de 7.000 hectares destinados à produção de arroz. Em 1994, construíram uma fábrica de beneficiamento nas imediações de Boa Vista que, atualmente, é a segunda maior do Estado no ramo. Sua atuação estende-se por boa parte da região Norte do País. A história de amor do casal Itikawa parece mesmo enredar-se com a de seus negócios. Para Izabel, a união foi um casamento perfeito entre as terras de sua família e o conhecimento de seu marido. Nestes 27 anos de casados, as sementes do arroz trazidas por Nelson fizeram brotar na fazenda da família a prosperidade que Roraima tanto necessitava. "Decidimos juntos construir um patrimônio que pudesse contribuir com o desenvolvimento da região", diz Izabel.

Na primeira metade da década de 1990, enquanto se expandia a produção de arroz no Estado, a construção da usina de beneficiamento exigia o sacrifício pessoal de Izabel. Com filhos pequenos, ela tem de combinar seus esforços de mãe com os de empreendedora em vias de estender suas atividades para a agroindústria. Ela precisa dedicar-se integralmente às atividades da Empresa Itikawa. A educação dos filhos foi feita ali, em meio aos improvisados barracões da recém-criada fábrica: "Eu lembro que eu trazia as crianças pequenininhas para cá, brincavam aqui quando nem tinha escritório, era ali fora, não tinha porta, era uma lona, foi com muita dificuldade, não tinha piso, e eu acreditei, eu ainda acredito no meu País". É na justa medida de seu sacrifício para erguer a um só tempo seu patrimônio e o "desenvolvimento da Amazônia" que Izabel, agora, protesta contra a decisão do Supremo Tribunal Federal que garantiu a demarcação contínua da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol e determinou a desintrusão (processo de retirada ou remoção dos ocupantes ou invasores dos limites das terras indígenas já reconhecidas e demarcadas pelo Governo Federal, considerada exclusiva aos membros pertencentes àquela comunidade) das três fazendas da Empresa Itikawa, áreas de propriedade de não-índios no interior da reserva.

Resignada e nervosa, Izabel diz que o conflito em escalada crescente na região desde a primeira demarcação, em 2005, não opõe índios e arrozeiros. "Dizem que aqui há duas situações, a briga entre os índios e os arrozeiros. Eu sou brasileira, roraimense, e filha de cearenses que vieram contribuir com o desenvolvimento de Roraima. Eu não tenho nada contra índio, não. Eu cresci convivendo e brincando com índio." Sua posição resume a de outros produtores de arroz e mesmo a de parte considerável da população branca de Roraima que compartilham de uma série de desconfianças em relação às disputas que envolvem a questão da demarcação. Na visão destes, a demarcação da reserva passa menos pelo reconhecimento do direito indígena que por interesses mais amplos: um projeto internacional de intervenção na Amazônia para o bloqueio da expansão econômica da região. A produção de arroz, atividade orientada para o desenvolvimento regional e nacional, seria um empecilho para a eventual exploração de recursos minerais e da biodiversidade por conglomerados de ONGs e empresas transnacionais que, sob o argumento preservacionista, defendem o despovoamento da região e veem nos índios interlocutores mais facilmente influenciáveis que os arrozeiros, instruídos na defesa de posições nacionalistas. "O que está em jogo é a exploração de minério que está no nosso pé. Eu não tenho culpa de ter nascido em uma região onde o meu subsolo é rico em minério", diz Izabel.

Mas então resta a pergunta: como o mítico passado de convivência pacífica entre brancos e índios, momento do avanço dos produtores de arroz em terras quase virgens, abundantes e férteis, deu lugar a uma situação tão conflituosa? A resposta é a chamada "intervenção estrangeira". Paulo César Quartiero, líder dos arrozeiros, diz que a primeira intervenção estrangeira em Roraima veio da parte da Igreja Católica. Ainda nos anos 1970, padres missionários de origem africana, sobretudo angolanos e moçambicanos, surgem na região e enganam os fazendeiros que, segundo Quartiero, "eram católicos e construíram as primeiras igrejas para que os padres pudessem trabalhar". Uma vez instalados na região, eles teriam mostrado suas reais intenções: criar um conflito em terras onde as crianças brancas "brincavam com os índios, numa região em que não havia problemas". Tais padres não teriam feito nada além de "trazer o ódio racial". A versão moderna desta forma de intervencionismo externo na ambiência pacífica do local, seriam as ONGs estrangeiras. Estas completariam o "trabalho de lavagem cerebral nos índios" iniciado pelos religiosos e que conduziria à criação do Conselho Indígena de Roraima (CIR), entidade apoiada por ONGs internacionais, e que lidera os esforços de defesa da demarcação contínua da reserva.

O que pode parecer uma implausível teoria conspiratória é um argumento bastante corrente na opinião de parte dos moradores de Boa Vista que, alertados pelas ocorrências de biopirataria internacional na região amazônica, se opõem à demarcação contínua. A formulação mais bem acabada desta hipótese parece estar no livro Máfia Verde 2 - Ambientalismo: Novo Colonialismo. Um de seus autores é Lorenzo Carrasco, primeiro dos depoentes da CPI das ONGs no Senado. O livro apresenta-se como uma proposta de "conscientização em prol do desenvolvimentismo socioeconômico e da defesa do Estado Nacional contra as ingerências exógenas deletérias, como a representada pelo aparato ambientalista-indigenista e seu exército irregular de organizações não governamentais". Os autores situam os conflitos pela demarcação no quadro de uma "guerra de quarta geração" em que ONGs seriam formas de intervenção mais sofisticadas que exércitos regulares. "Tanto o ambientalismo como o indigenismo são ideologias anticivilizatórias, misantrópicas, anticientíficas e politicamente motivadas. Uma pretende um direito próprio ao meio ambiente, elevando a sua 'proteção' à condição de valor supremo para a organização da sociedade e a economia. A outra tenciona estabelecer uma segregação física e moral das populações indígenas, considerando-as inaptas às condições do progresso", diz o livro.

Conspiração ou não, as opiniões de parte dos roraimenses que não acreditam na demarcação da reserva é de que, deixados a sua própria sorte, os índios vão "retornar à Idade da Pedra", caos em que estariam antes da chegada dos arrozeiros.

Os índios
Sob o teto de uma maloca de quase seis metros de altura, lideranças indígenas de diversas etnias locais discutiam o incerto futuro da reserva Raposa Serra do Sol, no último dia 26 de abril. Os chamados Tuchawas, representantes das etnias Macuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona, têm, na comunidade de Maturuca, sul da reserva, sua "capital". A comunidade, local frequente de debates e comemorações comuns, ganhou o apelido de "Brasília", centro político de toda a área demarcada. Foi ali que, 32 anos antes, neste mesmo dia 26 de abril, foi criado o Conselho Indígena de Roraima (CIR). O CIR foi originalmente pensado como uma organização para conter o abuso no consumo de cachaça entre os indígenas e iniciar a mobilização em torno da questão da posse da terra. No conselho, agora quem tem a palavra é Dionito, atual presidente e um dos Tuchawas mais respeitados, descendente direto de uma linhagem de antigas lideranças e uma das principais figuras durante os momentos mais tensos de todo o processo de demarcação e homologação da reserva. Ao seu lado, representantes da Funai e do Incra debatem alguns dos dilemas desta nova fase da luta indígena.

Passada esta etapa da homologação contínua da reserva, os dilemas que se apresentam agora são talvez ainda mais difíceis de serem resolvidos. A posse da terra é o primeiro passo para a autonomia indígena, mas não mais do que isto: qual a validade das condicionantes impostas pelo Supremo Tribunal Federal para a homologação? Em que direção realizar o desenvolvimento econômico da reserva? Qual a capacidade técnica atual para realizar isto? Como lidar com a ausência de suporte do lado dos governos estadual e federal? Quais outras organizações estariam dispostas a auxiliar este projeto? Esses impasses estão longe de estar equacionados e ainda nem se trata do mais distante problema de sua possível operacionalização concreta. Problemas do desenvolvimento agrícola de pequeno porte que são comuns a muitos camponeses brasileiros e que ainda devem ser pensados em articulação com costumes tradicionais que são entre eles mesmos muito variados.

O que une esses índios é uma história comum dos contatos com a sociedade branca e a sua organização em torno da questão da terra. Maria, 41 anos de idade, índia Macuxi nascida na comunidade de Cumanã (parte serrana da reserva) e atual professora no Colégio Estadual Desilério de Oliveira em uma comunidade vizinha, relata uma história semelhante com a de muitos outros membros das organizações indígenas que conversamos. Conta que, quando os fazendeiros chegaram nas terras de sua comunidade natal, diziam que não havia ninguém habitando o lugar. De fato, eram regiões onde não havia casas construídas, mas que faziam parte da área onde os índios caçavam e pescavam, onde realizavam de maneira alternada o cultivo de algumas plantas ou então os chamados "lugares sagrados", considerados importantes dentro da cosmologia nativa. No início da década de 1970, fazendeiros recém-instalados usavam a mão-de-obra indígena sem qualquer preocupação com os direitos trabalhistas, trocando trabalho por comida e cachaça. Às vezes, retribuíam apenas com parte da produção, insuficiente mesmo para a alimentação das famílias trabalhadoras. Os índios eram pagos individualmente, mas trabalhavam com a família inteira. "Pelo fato de as pessoas não saberem, eles não entendiam, eles pegavam as pessoas para trabalhar, aí, os parentes trabalhavam, né? Como eles não tinham noção de quanto valia o trabalho, os brancos se valiam deles. Eles não sabiam o valor, então eram assim quase escravos, né?", diz Maria. Havia ainda casos mais extremos, mas não menos frequentes, em que os fazendeiros compravam os filhos dos índios para que futuramente estes trabalhassem nas fazendas. "Eles compravam um menino de um, trocavam por uma saca de sal. Teve até um senhor que trocou um filho dele por um garrote...", diz. De uma forma quase normal, Maria relata uma situação em que seu próprio pai recebeu a proposta de vender um de seus filhos. "Teve um homem que falou com papai: 'Você não quer dar uma destas criaturas pra eu criar?' Como ele tinha estas histórias, ele já segurava, né: 'Mas este é o meu filho!' E o homem: 'Mas como é que tu cria uns bichinhos destes, aqui, como se fosse uma criação? Você não tem nada'. Papai disse: 'Eu caço, pesco, faço farinha e, assim, vou vivendo. Eu não dou um filho desse'. O homem insistia: 'Eu pelejo pra fazer um diabinho destes...' 'Então, deixa o diabinho aqui', respondeu meu pai." As "histórias" às quais se refere Maria quando fala da resistência de seu pai em vender o filho eram os princípios sobre os quais se assentavam as organizações indígenas que deram origem ao CIR. O conselho pretendia confrontar muitas situações de abuso, que não passavam apenas pelos fazendeiros. Muitas vezes eram garimpeiros que usavam o trabalho indígena para carregar o "rancho" sem nada pagar, ou em troca de cachaça, o que disseminava o alcoolismo entre os índios. Não por acaso a abolição da cachaça foi o marco fundador do CIR, e este dia é comemorado todos os anos sem direito a brinde.

Quando os missionários católicos chegaram, deram as bases para a organização dos índios neste início turbulento. Dionito diz que os missionários ajudaram na conscientização de que os índios "eram o povo", que deveriam "parar com a cachaça e lutar pelas terras". Os missionários auxiliavam alguns dos índios que tentavam escapar desta difícil relação com os brancos e unir-se na direção de uma luta comum pela autonomia. O pai de Maria era um destes índios e, não por acaso, vai incentivá-la a prosseguir nos estudos. Com muitas dificuldades, Maria conseguiu completar o segundo grau e, na tentativa de fazer o magistério, partiu para Boa Vista, onde uma conhecida da família, casada com um garimpeiro, a acolheu. Como os rendimentos do garimpeiro mal davam para sustentar a casa, os pais de Maria começaram a produzir farinha para ajudá-la em Boa Vista. Ela ainda completava e auxiliava no orçamento da casa trabalhando como faxineira nas horas vagas. Conta que sofria preconceitos em casa, no trabalho e no curso de magistério. Depois de completados seus estudos, volta para a sua comunidade para dar aulas com o diploma recém-conquistado.

Mais do que uma história pessoal de dificuldades e sofrimento, a vida de Maria é parte da construção do movimento indígena local. Depois de 15 anos trabalhando como professora no norte de Roraima, em 2005, ela decide que deveria colaborar com a causa indígena, sobretudo a partir do fortalecimento do CIR no quadro da homologação das terras de Raposa Serra do Sol e os consequentes conflitos com os arrozeiros que se acirram nesse mesmo ano. Maria integra-se ao movimento de educação indígena, que procura atuar na fronteira entre os conhecimentos tradicionais nativos e a educação formal brasileira. Fez parte da segunda turma do curso de formação de professores indígenas no curso de licenciatura intercultural da Universidade Federal de Roraima. O curso tenta bloquear o que é visto como uma forma de intervenção da cultura branca na formação dos professores indígenas. Maria diz que, na educação, "vinha tudo de fora", e que mesmo "sem perceber, a escola foi entrando como uma destas coisas que estavam modificando muito a realidade da comunidade, todas as normas padronizadas, os conteúdos...". É nesse momento que Maria começa a perceber que a sua trajetória na educação estava vinculada ao conjunto mais amplo de reivindicações coletivas dos índios. "Junto com todas as lutas, tava entrando a escola" diz. Para ela, a ideia não é contrapor o conhecimento indígena e o conhecimento dos brancos, mas impedir que a escola continue "acabando com a comunidade" e articular ambas as formações. "Nós temos o conhecimento prático, como ensinar o aluno a resgatar a cultura dele? Não deixando de conhecer o outro lado, porque nós temos estas duas coisas", afirma.

Este parece ser o projeto de desenvolvimento para a região que os indígenas almejam, alguma coisa que seja construída na articulação entre os saberes tradicionais e os saberes "dos brancos". Isso pode ser encontrado nas histórias dos diversos membros do CIR que foram entrevistados, seja os que trabalham na questão da saúde, formados em parte pela organização internacional Médicos sem Fronteiras e em parte pelos pajés e familiares, seja o trabalho na questão alimentar, que busca algum tipo de equilíbrio entre as capacidades nutritivas da alimentação tradicional e a já incorporada comida industrial. Em cada um desses domínios, podemos encontrar as formas de construção da autonomia que o CIR procura construir e que vai muito além da conquista da terra. Dionito sonha com o momento em que os indígenas vão "se sustentar sozinhos". "Isto não é separar do Brasil, mas você ter autonomia", diz. Para tanto, uma série de dimensões tem de ser contempladas. Em primeiro lugar, a autonomia financeira, que, no entender de Dionito, quer dizer um contato direto com o governo sem a intermediação de instituições que normalmente realizam essa mediação. "Se o governo quiser fazer parceria ele tem que dar dinheiro para o índio, você faz licitação, prestação de contas tudo bonitinho e, aí, funciona. Eu acho que passar pela Funasa, pela Funai, pelo governo do Estado, aí, você acaba que não vê nada. Tem que ter parceria com o governo federal, mas o dinheiro tá aqui na mão dele". Dionito diz também que se o governo "der responsabilidade pros índios", tornará mais eficaz a organização dos recursos. "Se o governo tem um plano, tem um dinheiro, ele traz pros índios que estão na Raposa Serra do Sol e o índio vai administrar esse dinheiro aqui. A gente aceita prestar contas, coisa que os políticos não fazem". Dionito acredita que, com os recursos suficientes, os índios seriam capazes de criar um plano de desenvolvimento para a região que passaria pela agricultura, a pecuária e o turismo. "Nós vamos criar gado qualificado, vamos ampliar as plantações de arroz, melancia, banana, além do turismo". E mais, garante que fariam isso de forma articulada entre os saberes indígenas e dos brancos. "Vamos trabalhar a tecnologia do índio e a do branco juntas". Ainda mais ousada é a proposta de gestão dos serviços de saúde, educação e infraestrutura de transportes a ser executada pelos próprios índios "Com esta autonomia de fato vamos ter saneamento, escola de qualidade, estradas...", diz que em cooperação com a funasa, "você já tem essa experiência na saúde e funciona".

Não se pode dizer ao certo se essa disposição para a autonomia poderá ao menos ser experimentada na reserva Raposa Serra do Sol, seja pela ausência de apoio do governo a essas iniciativas, seja pela capacidade limitada de ação das próprias organizações indígenas, mas o que se pode dizer certamente é que esse projeto ousado de desenvolvimento indígena tem como horizonte não apenas mudar a história da integração destas populações à sociedade brasileira, mas oferecer novas perpectivas para a construção de propostas de desenvolvimento assentadas na autonomia popular.

NOVOS RUMOS

Um mês depois do processo de desintrusão na Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, Izabel Itikawa diz ser uma produtora de arroz com uma situação diferenciada em relação aos seus pares. Apesar de considerar que a produção de arroz no Estado de Roraima tende a diminuir e talvez mesmo estagnar, em seu caso ela pretende ao menos manter o nível produtivo. Sua estratégia foi muito mais precavida que a da maior parte dos arrozeiros: antes do processo de desintrusão, já tinha retirado da reserva mais de 70% do cultivo de arroz, realizado a colheita antes do dia primeiro de maio e retirado todos os equipamentos com antecedência. Pretende investir mais no desenvolvimento de sua empresa. De um lado almeja ampliar sua usina de beneficiamento, de outro espera um momento mais tranquilo para comprar outras fazendas na região. No momento todo o cultivo do arroz se faz em terras arrendadas; ela considera isso uma "medida de cautela". Diz que enquanto a situação "não estiver definida" não vai se arriscar a comprar novas terras. Não se sente "segura" para esse investimento mais oneroso. Izabel espera "que o próximo presidente da República não pense como este", considera que o atual governo impede o desenvolvimento de Roraima "engessando a produção através da questão fundiária e ambiental". Reclama que primeiro "tomaram as terras dos produtores de arroz" e que agora a estratégia empregada para dificultar a produção é através da licença operacional concedida pelo Ibama*. Diz não ser contra a regulamentação na direção da sustentabilidade, mas que a verdadeira intenção das licenças é frear o agronegócio. Parece que sua épica história de construção da empresa não acabou. Diz que vai continuar apesar das dificuldades. "O que hoje mais dói no coração da gente que é brasileiro não é perder a propriedade, mas perder os direitos. Enquanto tiver vida vou fazer este Estado ter sucesso, o que depender de mim estou disposta a fazer."
Se por um lado os arrozeiros continuam em uma situação de relativa incerteza, as organizações indígenas procuram construir estratégias de desenvolvimento diferentes para a região. O primeiro passo, segundo Dionito, foi a criação da "Federação Indígena", uma entidade que pretende acabar com possíveis disputas entre as organizações. Mesmo a Sociedade dos Índios Unidos do Norte de Roraima (Sodiur), que fizera oposição ao CIR e à demarcação contínua, agora integra a federação. Dionito diz que a federação está fazendo com que as diferenças entre suas organizações se tornem quase inexistentes por uma "união dos povos indígenas". A federação será o carro-chefe da ideia de transformar o nome da reserva em uma marca daquilo que for produzido, provavelmente organizada a partir de uma cooperativa que irá armazenar, distribuir e vender os produtos da reserva. A dificuldade continua sendo os apoios para que isso tudo se realize. Pretendem fazer uma reunião em Brasília nos próximos meses para apresentar essas propostas. Para conseguir o apoio do governo federal esperam contar com o suporte técnico da Embrapa. Esta deveria realizar um diagnóstico preciso da "contaminação do solo e das águas feita pelos arrozeiros" e também "melhorar o que já está se produzindo." Um contato preliminar com o MST do Sul do País já foi feito para que os técnicos do movimento ajudem no desenvolvimento do arroz orgânico que pretendem plantar: "Eles vão trazer a experiência de suas plantações", na seleção de sementes e nas técnicas de cultivo. Em relação a um possível bloqueio desses projetos pelas condicionantes da decisão do Supremo, diz que "não vamos aceitar, não foi o que os índios decidiram e vamos levar estas questões na comissão que vai para Brasília." Para Dionito, "a dominação em Roraima já acabou, não vai ter mais tutela, queremos agora parceiros ou aliados"

*O licenciamento ambiental é "uma obrigação legal prévia à instalação de qualquer empreendimento ou atividade potencialmente poluidora ou degradadora do meio ambiente". Ele é realizado pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), pelos órgãos estaduais de meio ambiente e por audiências públicas. Durante o processo, o Ibama "ouve os Órgãos Estaduais do Meio Ambiente (OEMAs) e os órgãos federais de gestão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), das comunidades indígenas (Fundação Nacional do Índio-Funai), de comunidades quilombolas (Fundação Palmares), entre outros".
Fonte: www.ibama.gov.br/licenciamento/

Revista Brasileiros

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Recursos hídricos no futuro: problemas e soluções


Recursos hídricos no futuro: problemas e soluções

José Galizia Tundisi

Introdução: as causas principais da "crise" da água

Segundo alguns especialistas, a crise da água no século XXI é muito mais de gerenciamento do que uma crise real de escassez e estresse (Rogers et al., 2006). entretanto, para outros especialistas, é resultado de um conjunto de problemas ambientais agravados com outros problemas relacionados à economia e ao desenvolvimento social (Gleick, 2000). Para Somlyody & Varis (2006), o agravamento e a complexidade da crise da água decorrem de problemas reais de disponibilidade e aumento da demanda, e de um processo de gestão ainda setorial e de resposta a crises e problemas sem atitude preditiva e abordagem sistêmica. Tundisi & Matsumura-Tundisi (2008) acentuam a necessidade de uma abordagem sistêmica, integrada e preditiva na gestão das águas com uma descentralização para a bacia hidrográfica. segundo esses autores, uma base de dados consolidada e transformada em instrumento de gestão pode ser uma das formas mais eficazes de enfrentar o problema de escassez de água, estresse de água e deterioração da qualidade.

Tundisi et al. (2008) destacam que, no amplo contexto social, econômico e ambiental do século XXI, os seguintes principais problemas e processos são as causas principais da "crise da água":

• Intensa urbanização, aumentando a demanda pela água, ampliando a descarga de recursos hídricos contaminados e com grandes demandas de água para abastecimento e desenvolvimento econômico e social (Tucci, 2008).
• Estresse e escassez de água em muitas regiões do planeta em razão das alterações na disponibilidade e aumento de demanda.
• Infra-estrutura pobre e em estado crítico, em muitas áreas urbanas com até 30% de perdas na rede após o tratamento das águas
• Problemas de estresse e escassez em razão de mudanças globais com eventos hidrológicos extremos aumentando a vulnerabilidade da população humana e comprometendo a segurança alimentar (chuvas intensas e período intensos de seca).
• Problemas na falta de articulação e falta de ações consistentes na governabilidade de recursos hídricos e na sustentabilidade ambiental.
Esse conjunto de problemas apresenta dimensões em âmbito local, regional, continental e planetário. esses problemas contribuem para:

• Aumento e exacerbação das fontes de contaminação.
• A alteração das fontes de recursos hídricos – mananciais – com escassez e diminuição da disponibilidade.
• Aumento da vulnerabilidade da população humana em razão de contaminação e dificuldade de acesso à água de boa qualidade (potável e tratada).
• Esse conjunto de problemas está relacionado à qualidade e quantidade da água, e, em respostas a essas causas, há interferências na saúde humana e saúde pública, com deterioração da qualidade de vida e do desenvolvimento econômico e social. A posição central dos recursos hídricos quanto à geração de energia, produção de alimentos, sustentabilidade da biodiversidade e a mudanças globais é destacada na Figura 1, e a Figura 2 apresenta as principais inter-relações dos processos que afetam qualidade e quantidade de água, a biota aquática e a população humana.


Metodologias e propostas para solução e prioridades

Tendo em vista essa situação, quais são as abordagens, o programa e os projetos que podem promover uma profunda alteração na gestão das águas e no preparo e aplicação de soluções criativas e de custo adequado?

Inicialmente, deve-se cogitar que uma avaliação econômica dos "serviços" dos recursos hídricos e dos ecossistemas aquáticos deve ser considerada como uma base importante da metodologia e das ações futuras. Esses "serviços" e sua valoração serão a base para uma governabilidade adequada dos recursos hídricos. serviços como regulação dos ciclos, controle do clima, abastecimento de água, produção de energia e alimentos devem ser a base para uma nova abordagem na gestão e governança dos recursos hídricos (Mea, 2003). Capacidade de monitoramento avançado com a elaboração de banco de dados e produção de softwares adequados à gestão é outra metodologia de grande alcance aplicado. E a capacitação de gestores deve ser avançada nesse sentido: gerenciamento integrado, preditivo e em nível de bacia hidrográfica é o que deve ser a base dessa capacitação.

Quanto à governança da água, o movimento descentralizador que existe promovendo uma gestão por bacias hidrográficas é fundamental. A bacia hidrográfica – uma unidade biogeofisiográfica – que drena para um rio, lago ou oceano é a unidade natural de pesquisa e gestão (Likens, 1992; Tundisi, 2003; Tundisi & Matsumura-Tundisi, 2008). Uma bacia hidrográfica tem todos os elementos para integração de processos biogeofísicos, econômicos e sociais, é a unidade natural que permite integração institucional, integração e articulação da pesquisa com o gerenciamento, e possibilita ainda implantar um banco de dados que funcionará como uma plataforma para o desenvolvimento de projetos com alternativas, levando-se em conta os custos destas. É cada vez mais evidente que novas tecnologias como ecotecnologias e eco-hidrologias com soluções que incluem os usos de sistemas naturais e dos processos naturais serão utilizadas intensivamente na conservação e recuperação de lagos, represas e rios, e na conservação de águas subterrâneas e manutenção dos aqüíferos (Zalewski, 2007).

Além do problema da governança dos recursos hídricos, a outra questão referente ao gerenciamento também deverá apresentar grandes alterações: de um gerenciamento local, setorial e de resposta existe, atualmente, uma transição para um gerenciamento em nível de ecossistema (bacia hidrográfica), integrado (integrando o ciclo de águas atmosféricas, superficiais e subterrâneas e integrando os usos múltiplos).

A participação dos usuários, do público, da iniciativa privada e do setor público deve ser um dos eixos principais dessa governança dos recursos hídricos no contexto de bacias hidrográficas (Rogers, 2006). essa participação deverá melhorar e aprofundar a sustentabilidade da oferta e demanda e a segurança coletiva da população em relação à disponibilidade e vulnerabilidade.



Água na agricultura

A demanda mundial para a produção de alimentos aumenta progressivamente a taxas muito altas. Atualmente, na maioria dos países, continentes e regiões, a água consumida na agricultura é de cerca de 70% da disponibilidade total. Há uma enorme necessidade de redução desse uso com a introdução de tecnologias adequadas, eliminação dos desperdícios e introdução de reúso e reciclagem. Os usos da água incluem uma excessiva utilização para irrigação a partir de águas subterrâneas. De acordo com Llamas & Martinez Santos (2006), o uso intensivo de água subterrânea para a agricultura em países e regiões áridas e semi-áridas vem provocando drástica diminuição no volume dos aqüíferos, aumento nos custos da extração de água (0,01 U$/m3 ou até 0,2 U$/m3) e aumento no custo de irrigação por hectare (oscilando entre U$20 a U$1.000 por hectare, dependendo da qualidade do bombeamento). O investimento em produção de alimentos mais rentáveis – cash crops – significa maior investimento e usos mais intensivos de água na agricultura. A degradação da qualidade da água superficial e subterrânea é outro componente relevante dos usos da água na agricultura, e essa degradação deve ser quantificada. A eutrofização de lagos, represas e rios é uma das conseqüências dos usos excessivos de fertilizantes na agricultura, os quais, combinados com alterações de drenagem, podem aumentar consideravelmente e com rapidez os índices de estado trófico, incluindo as águas subterrâneas. Avaliação da água virtual (utilizada na agricultura), desenvolvimento de tecnologias para eliminar desperdícios e melhorar o desempenho na irrigação; introduzir reúso de água na agricultura são algumas das soluções urgentes nessa área.



Água e economia regional e nacional

Economias regionais e nacionais dependem da disponibilidade adequada de água para geração de energia, abastecimento público, irrigação e produção de alimentos (agricultura, aqüicultura e pesca, por exemplo). Melhorar a gestão dos recursos hídricos integrando e otimizando os usos múltiplos, alocando de forma flexível a água para os diferentes usuários e investindo em saneamento público (coleta de esgotos, tratamento de esgotos, resolvendo problemas sanitários de doenças de veiculação hídrica) é uma das formas mais relevantes de desenvolvimento econômico e social, pois melhora a qualidade de vida, promove a geração de empregos e renda e amplia a capacidade de abastecimento de água para usos múltiplos e estímulo à economia (Bhatia & Bhatia, 2006).

Tecnologias de baixo custo podem fornecer a implantação de medidas e o desenvolvimento de ações em saneamento básico, especialmente para populações de baixa renda nas periferias das grandes regiões metropolitanas (Tundisi et al., 2006).



Água e mudanças climáticas

Alterações climáticas terão papel relevante no ciclo hidrológico e na quantidade e qualidade da água. Essas alterações podem promover inúmeras mudanças na disponibilidade de água e na saúde da população humana. De um modo geral e com alterações diversas em continentes e regiões, três problemas fundamentais devem ser estudados para promover soluções: a) extremos hidrológicos – extremos hidrológicos que ocorrerão em diferentes continentes e regiões deverão afetar populações humanas em razão de desastres (enchentes, deslizamentos, transbordamentos nas várzeas) ou secas intensas (aumento na semi-aridez e aridez), comprometendo a saúde humana, a segurança alimentar e aumentando a vulnerabilidade dos ciclos e processos biogeoquímicos; áreas urbanas poderão ser extremamente afetadas por estes extremos hidrológicos; b) contaminação – os estudos desenvolvidos em muitas regiões apontam para um aumento acentuado de contaminação agravado por salinização e descontrole nos usos do solo, interferindo com os ciclos do fósforo, nitrogênio e metais pesados (Martineli et al., 1999) – a eutrofização de águas superficiais (rios, lagos e represas) deverá aumentar em razão do aumento da temperatura da água e da resistência térmica à circulação: como conseqüência, espera-se maior freqüência dos florescimentos de cianobactérias (Paerl & Hussmann, 2008), agravando a toxicidade das nascentes e fonte naturais de abastecimento –; c) água e economias regionais e nacionais.

Esses extremos hidrológicos e o aumento da contaminação deverão atuar nas economias regionais, tendo como conseqüência profundas alterações na economia dependente da disponibilidade e demanda dos recursos hídricos.

A solução para o enfrentamento das conseqüências dos efeitos das mudanças globais nos recursos hídricos é adaptar-se a essas alterações, promovendo melhor governança em nível de bacias hidrográficas, desenvolvendo tecnologias avançadas de monitoramento e gestão, ampliando a participação da comunidade – usuários e público em geral – nessa gestão e no compartilhamento dos processos tecnológicos que irão melhorar a infra-estrutura do banco de dados e dar maior sustentabilidade às ações.

Recursos hídricos e cooperação internacional

Em face das mudanças climáticas cujas evidências são bastante claras já a partir dos últimos do século XX e neste início do século XXI (IPCC, 2007), há a necessidade de intensa cooperação internacional, especialmente em bacias compartilhadas por vários países. O desenvolvimento dessas parcerias internacionais na gestão de bacias hidrográficas tem sido objeto de discussões, análises, propostas e algumas ações que visam compartilhar problemas, diagnosticar as causas e promover soluções conjuntas (Yundisi, 2003; Somlyody & Varis, 2006).

Aa América do Sul, cooperação internacional efetiva tem se desenvolvido na bacia do Prata (compartilhada por Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai) e na bacia Amazônica (compartilhada por nove países). Ações conjuntas de monitoramento para controle da qualidade da água, estudos conjuntos para avaliar o impacto dos usos do solo na contaminação e degradação dos recursos hídricos e realização de programas de capacitação conjunta de gestores de recursos hídricos são algumas ações e atividades já desenvolvidas e que têm estimulado políticas públicas de longo prazo para a gestão dessas bacias.

Outros exemplos relevantes em que a cooperação internacional tem atuado intensivamente para resolver problemas comuns de disponibilidade, demanda e escassez são:

• Programas de cooperação internacional nos dez países que compartilham a bacia do Rio Nilo (Magadza, 2002), os quais, com uma população de aproximadamente 230 milhões de habitantes, têm necessidades crescentes quanto aos usos e à demanda de águas e grandes problemas de saneamento (crescimento populacional de 3,9% ao ano).
• Cooperação internacional para gerenciamento do Mar Cáspio compartilhado por cinco países. Um dos principais problemas é a exploração de petróleo e o potencial de contaminação nessa região, além da produção pesqueira que é importante economicamente (Golubev, 2002).
• Cooperação internacional no Rio Danúbio, cuja bacia hidrográfica é compartilhada por dez países (principais problemas: navegação e transporte, usos da água, controle da poluição e projetos de proteção ambiental da bacia do Rio danúbio e seus trezentos tributários (Jansky, 2002)).
Atualmente, 150 acordos internacionais relacionados com bacias hidrográficas transfronteiriças estão em curso, na Europa e nos Estados Unidos.

Um avanço considerável na gestão compartilhada dos recursos hídricos na Europa são as Diretrizes da União Européia para a gestão das águas (European Water Framework Directive (Jansky, 2002), essas diretrizes têm os seguintes objetivos:

• Disponibilidade de água de melhor qualidade para abastecimento humano.
• Disponibilidade de água de melhor qualidade em rios e lagos para utilização pública em recreação (banhos e natação).
• Água menos poluída como parte das heranças locais e regionais e parte das ações ambientais rumo à sustentabilidade.
Outra iniciativa importante é a ação proposta pelo InterAcademy Panel (IAP) que reúne 96 Academias de Ciências para ampliar e aprofundar a capacidade de formação de gestores de recursos hídricos com uma visão integrada e sistêmica. Atualmente, seis países já promoveram seminários regionais, cursos e publicações em um esforço conjunto da rede internacional: África do Sul, Brasil, China, Rússia, Polônia, Jordânia. Além desse esforço, Academias de Ciências das Américas agrupadas em uma associação internacional, InterAmerican Network of Academies of Sciences (Ianas), estão promovendo cursos, discussões, seminários e a implementação de um volume para cada país com diagnósticos, prognósticos e estratégias de gestão das águas nos países da Américas (Tundisi & Scheuenstuhl, 2008, no prelo).

Recursos hídricos e energia

A produção de energia, especialmente no Brasil, depende da disponibilidade de recursos hídricos, dada a matriz energética brasileira que depende em 50% desse recurso. Além disso, o transporte de água tratada depende de energia para bombeamento, o que aumenta os custos para disponibilizá-la. No caso do Brasil e de outros países dependentes da energia hidroelétrica, estudos estratégicos de longa duração devem fixar as bases para essa exploração futura, bem como examinar as conseqüências dessa exploração nas bacias hidrográficas e no ciclo hidrossocial.



Recursos hídricos no Brasil: prioridades para governança, conservação e recuperação

O Brasil, com 14% da água do planeta, possui, entretanto, uma distribuição desigual do volume e disponibilidade de recursos hídricos: enquanto um habitante do Amazonas tem 700.000 m3 de água por ano disponíveis, um habitante da Região Metropolitana de São Paulo tem 280 m3 por ano disponíveis. essa disparidade traz inúmeros problemas econômicos e sociais, especialmente levando-se em conta a disponibilidade/demanda e saúde humana na periferia das grandes regiões metropolitanas do Brasil: esse é um dos grandes problemas ambientais deste início de século XXI no Brasil. Portanto, saneamento básico, tratamento de esgotos, recuperação de infra-estrutura e de mananciais são prioridades fundamentais no Brasil. Outra prioridade é avançar na gestão dos recursos hídricos com a consolidação da descentralização e da governabilidade com a abordagem de bacias hidrográficas. Nesse caso, a interação entre disponibilidade/demanda de recursos hídricos com a população da bacia hidrográfica e a atividade econômica e social, considerando-se o ciclo hidrosocial, é também fundamental e de grande alcance para o futuro.

A grande disponibilidade de água em certas regiões do Brasil deve ser considerada, sem dúvida, um enorme recurso natural a ser utilizado para o desenvolvimento econômico regional, para o estímulo à economia e para a promoção de alternativas adequadas para o desenvolvimento, baseadas no ciclo hidrossocial.

A revitalização de rios, lagos e represas em muitas regiões do Brasil, especialmente no Sudeste, pode também promover estímulos econômicos e recuperar o ciclo hidrossocial. Nessas regiões impactadas do sudeste com um passivo ambiental muito alto, a revitalização pode promover geração de emprego e renda, novas oportunidades de usos múltiplos e gerar uma indústria de novas e promissoras tecnologias para gestão (monitoramento avançado, consultorias, formação de recursos humanos).

É fundamental, entretanto, promover, em âmbito nacional no Brasil, um conjunto de estudos estratégicos sobre recursos hídricos e energia, recursos hídricos e economia, água e saúde humana, água e mudanças globais, com a finalidade de promover visões e cenários de longo prazo que estimulem políticas públicas consolidadas.

Deve-se ainda considerar o importante papel de dessalinização no abastecimento de cidades das regiões litorâneas e mesmo em lagos salinos do interior do Nordeste, tornando disponível mais água para a população. Essa é uma das soluções que poderão tornar-se viáveis após a tecnologia a desenvolver tornar o custo da dessalinização mais acessível.

Quanto às transposições, mais especificamente a transposição do Rio S ão Francisco, é importante considerar que somente um projeto conjunto de revitalização do rio (e despoluição) e um grande projeto de desenvolvimento regional poderão ser a base para a transposição (Tundisi et al., 2008).



Conclusões

Uma abordagem de gerenciamento, pesquisa e elaboração de banco de dados a partir da bacia hidrográfica deve incluir uma valoração dos "serviços" dos ecossistemas aquáticos e dos recursos hídricos, uma capacidade preditiva baseada em um programa denso e tecnicamente avançado de monitoramento e um sistema adequado de governança de água com a finalidade de promover oportunidades de desenvolvimento regional e sustentável a partir da água disponível e da demanda. Gerenciamento integrado, preditivo com alternativas e otimização de usos múltiplos deve ser implantado no nível de bacias hidrográficas com a finalidade de descentralizar o gerenciamento e dar oportunidades de participação de usuários, setor público e privado. Educação da comunidade em todos os níveis e preparação de gestores com novas abordagens é outro necessário desenvolvimento da gestão de recursos hídricos no século XXI.
José Galizia Tundisi é presidente e pesquisador do Instituto Internacional de Ecologia, São Carlos-SP. @ – tundisi@iie.com.br
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo

ONU no século XXI

ONU no século XXI

Jacques Marcovitch

A Organização das Nações Unidas (ONU) nasceu após o segundo conflito mundial para salvar as gerações futuras do flagelo das guerras e preservar a segurança internacional. A Assembléia Geral da instituição iniciou sua sessão de 2008, em setembro último, abordando as crises que o mundo tem sido incapaz de resolver. A crise financeira, a fome, a intensificação das mudanças climáticas, guerras no Iraque, no Afeganistão e na Geórgia. Atentados terroristas de Islamabad, a pobreza e a febre amarela foram outros temas abordados. Todos os 192 países-membros têm direito a palavra, mas apenas o Conselho de Segurança, integrado por cinco membros permanentes com direito a veto e dez membros rotativos, detém efetivamente poder executivo. Foi esse órgão o responsável pela adoção, em 22 de maio de 2003, da Resolução 1843 que, no seu item 8º, diz:

Solicita ao Secretário-Geral que nomeie um Representante Especial para o Iraque, cujas responsabilidades, a exercer de forma independente, consistirão em submeter periodicamente ao Conselho relatórios sobre as atividades que realize nos termos da presente resolução, coordenar as atividades das Nações Unidas no processo pós-conflito no Iraque, assegurar a coordenação entre as Nações Unidas e organismos internacionais envolvidos na assistência humanitária e nas atividades de reconstrução no Iraque e, em coordenação com a Autoridade, prestar assistência ao povo iraquiano.

Essas responsabilidades propiciariam condições favoráveis à criação de instituições nacionais e locais que possibilitassem a formação de um governo representativo, a reconstrução econômica, a criação de condições para um desenvolvimento sustentável, a proteção dos direitos humanos, a recuperação das forças da polícia civil iraquiana e, finalmente, o incentivo aos esforços internacionais para promover uma reforma jurídica.

Três meses após a adoção daquela resolução, foi assassinado o representante especial do secretário-geral Kofi Annan. Sérgio Vieira de Mello, sem a devida proteção e apoio, mas com a difícil tarefa de abreviar os conflitos e tentar a restauração de uma nação em pedaços, morreu após horas de agonia, em pleno cumprimento do seu dever. Tombou em Bagdá, vítima do terror jihadista, quando iniciava esforços para a construção de uma legítima autoridade iraquiana.

O livro de Samantha Power, O homem que queria salvar o mundo, descreve a trajetória e confirma o legado de Sérgio, que se distinguiu mundialmente pela crença inabalável no diálogo e na democracia, mesmo em condições agudamente desfavoráveis. Foi essa crença que o animou nas complexas missões em Moçambique, no Kosovo, no Timor Leste, no Sudão, no Líbano e outras regiões tragicamente dominadas pelo caos. Unindo ação e pensamento, ele demonstrou, nessas literais provas de fogo, a sua grande capacidade agregadora e uma eficiência administrativa também fora do comum. Tendo sempre, como princípio orientador, o culto permanente aos valores da liberdade.




A obra publicada no Brasil pela Companhia das Letras retoma o enfoque de livros precedentes, como o de Jean-Claude Buhrer & Claude B. Levenson, Sergio Vieira de Mello, un espoir foudroyé, e o de George Gordon-Lennox & Annick Stevenson, Sergio Vieira de Mello: un homme exceptionnel, ambos lançados em 2004. Apenas um ano depois da tragédia em Bagdá, esses dois autores já se detinham no percurso humano e profissional do exemplar construtor da cidadania e dos direitos humanos em territórios conflagrados. Além de adotar o mesmo enfoque, Samantha Power também leva o leitor a recordar o premiado filme-verdade A caminho de Bagdá (2004), da jornalista Simone Duarte, que descreveu com sobriedade a vida desse influente servidor público internacional, assim como outro documentário, Timor Lorosae – o massacre que o mundo não viu (2001), de Lucélia Santos, que retratou os sofrimentos dos timorenses e a história dos conflitos naquele pequeno país, antes da intervenção das Nações Unidas, liderada por Sérgio Vieira de Mello. No capítulo em que Samantha revive o dia do atentado, o leitor lembrará o documentário Pulled from the Rubble (Retirado dos escombros) (2005), de Margaret Loescher, cujo pai perdeu as pernas e parte do braço, sendo um dos poucos sobreviventes daquele brutal acontecimento.

Apesar de algumas concessões aparentemente feitas para viabilizar o roteiro de um novo filme já contratado, o livro de Samantha Power tem méritos indiscutíveis. Entre estes, a análise densa das limitações do atual sistema multilateral, uma dramática descrição das poucas horas transcorridas entre a explosão do escritório da ONU e a morte de Sérgio Vieira de Mello, além das lições oferecidas pelos fatos e tratadas com grande competência por uma ganhadora do Prêmio Pulitzer em 2003. Em síntese, valiosa contribuição para a história da ONU e para repensar o seu papel no contexto do século XXI.


Jornalista e especialista em relações internacionais, a autora sublinha a importância da ONU, mas também evidencia a lentidão do seu Conselho de Segurança em face de ameaças graves à segurança mundial, bem como a impotência, nesses fatos, do secretário-geral. Inércia que decorre, em parte, de perspectivas distintas, quase opostas, sobre os objetivos dessa organização multilateral. Para uns, a missão do Conselho de Segurança da ONU se limita a fazer o que as grandes potências (em especial os Estados Unidos) são incapazes de fazer sozinhas. Para outros, cabe à ONU defender a indivisibilidade de três valores fundamentais: viver sem medo, viver sem miséria e viver com dignidade. Em outras palavras, cabe-lhe promover a construção da paz, do desenvolvimento e dos direitos humanos. É nesse espaço contraditório que o secretário-geral e sua equipe devem cumprir as determinações nem sempre claras do Conselho de Segurança.

Reconhecida pesquisadora do multilateralismo, Samantha Power demonstra que boa parte da diplomacia norte-americana entende as Nações Unidas como um instrumento para viabilizar seus interesses estratégicos. Foi esse um dos motivos que levaram ao mandato contido na Resolução 1843 do Conselho de Segurança, que buscava, paradoxalmente, conciliar a missão do representante da ONU (acelerar a transferência do poder aos iraquianos) e os interesses da força militar ocupante, liderada pelo embaixador norte-americano Paul Bremer num território historicamente abalado pelas rivalidades entre facções religiosas.

Tendo por pano de fundo esse quadro tenso e perigoso, com base em entrevistas e extensas pesquisas, o livro confirma a teia criminosa que envolveu a tragédia. Como sabemos, o movimento jihadista, antes liderado por Abu Musab Al Zarqawi, foi o principal responsável. Coube a outro fanático, Abu Omar Al-Kurdi, construir a bomba colocada no caminhão que explodiu, em 19 de agosto de 2003, destruindo o Canal Hotel. O objetivo dos terroristas era minar a formação pela ONU de um Conselho de Governo no Iraque, tarefa construtiva e apaziguadora, na qual Sérgio Vieira de Mello estava diretamente engajado. Também restou provado que Fahdal Nassim, um argelino suicida, dirigiu o caminhão carregado de explosivos detonado ao lado da representação da ONU.

O líder terrorista Abu Musab Al Zarqawi, morto em junho de 2006, era um jordaniano que combateu no Afeganistão. Tinha se declarado mentor desse atentado que provocou a morte de 22 pessoas e 167 feridos, a maioria funcionários das Nações Unidas. Foi também responsável pelos ataques às mesquitas xiitas em Bagdá e Kerbala, matando 181 pessoas, e da mesquita do Imã Ali, que levou a vida de 105 pessoas. Ele arquitetou a campanha para inibir a construção de um poder local em condições de assumir as rédeas do processo político no Iraque. Assim atuava por integrar o fundamentalismo sunita que não reconhece os xiitas como verdadeiros muçulmanos. Essas agressões assassinas continuam enlutando centenas de famílias.

Samantha Power respalda seu texto no relatório sobre as condições de segurança no escritório da ONU em Bagdá, o qual concluiu que a instituição foi incapaz de evitar os riscos para o trabalho previsto. A pesquisadora lança mão do comunicado do Grupo de Estudos das Responsabilidades pela Segurança no Iraque, criado em novembro de 2003 pelas Nações Unidas. Lembra não ter havido missão precursora da ONU para avaliar as condições no Iraque, antes da chegada dos primeiros agentes humanitários. É dito, ainda, que os critérios da gestão de segurança aplicados à sede da ONU em Bagdá eram totalmente deficientes, o que levou o secretário-geral a adotar sanções punitivas, mas tardias. Resta o conforto de que novas tragédias podem ser evitadas.

A biógrafa reitera, nesses pontos, aspectos abordados em outro livro, Mission inachevée, de Gabriel Pichon, publicado em 2005. Pichon foi auxiliar da ONU em Bagdá e recordou a precariedade das medidas de segurança proporcionadas aos integrantes da representação e dos recursos de imediato socorro em casos de emergência. Basta lembrar que do horário da explosão terrorista até a remoção do corpo do Sérgio Vieira de Mello passaram-se mais de quatro horas, das quais em mais de duas ele esteve com vida e consciente.

Olhando para o século XXI que se inicia, quais lições foram recolhidas pela comunidade internacional e pela ONU? A autora se debruça sobre essa e demais perguntas desde então formuladas. Qual é o papel da ONU em zonas conflitadas, onde seus quadros correm riscos de morte? Como conciliar a ajuda multilateral de caráter humanitário e os interesses nacionais dos Estados? Como distinguir as forças de paz da ONU das forças militares ocupantes de um país ou de uma região?

Respostas a essas perguntas encontram-se em artigo publicado pelo Institut Universitaire d'Étude du Développement, de Genebra, sob o título Les dix enseignements du Timor (2003). Com base na sua experiência no Timor Leste, Sérgio Vieira de Mello expôs os riscos a enfrentar e os deveres das Nações Unidas com a organização do novo Estado.

Nessa exposição, sempre advertindo contra a fácil tentação do improviso em administração, ele insistiu no desmantelamento por tropas internacionais do que chamou "forças da sombra". Forças que eram no Timor as milícias clandestinas e, depois, em Bagdá, os comandos suicidas que o mataram. Ao defender um adequado recrutamento de recursos humanos aproveitáveis nos tribunais e grupos de polícia, como forma de anular o veneno da incompetência, relatou iniciativa marcante de sua gestão, que foi a rigorosa paridade entre homens e mulheres no corpo funcional do novo Estado. Foi sublinhada fortemente a inércia da comunidade internacional, que muitas vezes retardou o aporte de dotações. Falhas da ONU e dos países-membros não foram omitidas, as quais, coincidentemente, causaram a sua morte em Bagdá.

Para os aspirantes à carreira diplomática e estudiosos das relações internacionais, Sérgio Vieira de Mello deixou o exemplo da aquisição permanente do conhecimento. Ele não foi apenas o homem de decisões acertadas, mas um intelectual dedicado à filosofia e à história, duas chaves-mestras para a compreensão das relações internacionais. Mirem-se, portanto, as lideranças em formação no pensamento desse homem excepcional sobre questões como direitos humanos, defesa da paz, combate à exclusão, papel da mulher na sociedade e reconstrução de comunidades arruinadas pela violência.

Até nos derradeiros minutos de vida, Sérgio Vieira de Mello preocupava-se com o destino do multilateralismo. É comovedor o depoimento de um técnico em emergências médicas que esteve perto dele e o avistou, quase soterrado por toneladas de cimento, a formular um apelo: "Don't let them pull the UN out!" ["Não os deixe expelir a ONU do Iraque!"].

Sérgio Vieira de Mello, desde o início de sua jornada profissional, empenhou-se na construção de uma identidade baseada em valores humanos fundamentais. Em Genebra, ouvi de outro humanista, Jean Halperin, que Sérgio começou a trabalhar como simples redator de correspondência na Comissão das Nações Unidas para os Refugiados. Aceitou essa iniciação modesta, entre outros motivos, porque precisava suprir o próprio sustento. Desde então, como demonstram seus textos da juventude à maturidade, ele insistiu na visão universalista de que a espécie humana constitui uma comunidade única e indivisível. Esse foi outro exemplo que ele deixou aos seus jovens compatriotas.

A biografia escrita por Samantha Power, na boa trilha de outros livros e documentários, reconstitui o percurso de um obstinado guerreiro da paz, que usou a palavra como instrumento de persuasão ou de combate. Ele inscreveu o seu nome no panteão dos heróis contemporâneos e receberá, para sempre, a grata reverência de toda a humanidade.

Jacques Marcovitch é professor do Instituto de Relações Internacionais e da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, ambas da Universidade de São Paulo. Organizador da obra Sérgio Vieira de Mello: pensamento e memória (Edusp/Saraiva, 2004) e curador do portal www.usp.br/svm @ – jmarcovi@usp.br

Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo

Prioridades para investimentos em usinas elétricas


Prioridades para investimentos em usinas elétricas

Joaquim Francisco de Carvalho


Introdução

Para recuperar o atraso nos investimentos do setor elétrico brasileiro, é necessário atribuir prioridades a projetos que possam entrar em operação em médio prazo. Claro está que os projetos prioritários não devem ser selecionados sob pressões comerciais, como às vezes acontece, mas sim com base em comparações entre as diversas opções disponíveis para a geração de eletricidade em larga escala, relativamente a aspectos tais como os impactos ambientais, a eventual exposição da população a riscos de acidentes e os custos, sobre os quais são estruturadas as tarifas a serem pagas pelos consumidores. É indispensável que se considerem também aspectos estratégicos, tais como os prazos previsíveis para a entrada em operação, as garantias de suprimento de combustíveis (gás, óleo etc.) e a existência de capacidade industrial em escala suficiente para o enriquecimento de urânio e fabricação dos elementos combustíveis, no caso de usinas nucleares.

Por força da extensão do assunto, este artigo restringe-se a uma comparação entre os custos previsíveis da energia gerada nos principais projetos atualmente considerados pelo governo, para entrar em operação em médio prazo, que são o da usina nuclear de Angra III e os das hidrelétricas de Belo Monte, no Rio Xingu, e Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira.



Generalidades sobre os custos da energia elétrica em usinas nucleares e hidráulicas

Os custos de produção de energia elétrica compõem-se de uma parte fixa, com base na qual o capital investido é remunerado e recuperado ao longo do prazo de depreciação contábil da usina geradora; e de uma parte administrável, composta pelas despesas necessárias ao funcionamento dessa usina. A parte fixa (capital investido) abrange as despesas incorridas na implantação da usina (estudos de viabilidade e de engenharia, equipamentos, canteiro da obra, construção, montagem e testes), e a parte administrável compreende as despesas de operação e manutenção, seguros, impostos, salários, encargos trabalhistas etc.

Os custos finais (soma das partes fixa e administrável) devem ser calculados de forma a permitir a estruturação de tarifas que assegurem uma remuneração que seja ao mesmo tempo atraente para o investidor e justa para os consumidores. Para isso – ou, por outras palavras, para evitar que os lucros do investidor (concessionário) sacrifiquem os consumidores –, a taxa interna de retorno (TIR) empregada no cálculo dos custos de geração deve ser estabelecida por meio de negociações entre o poder concedente e o investidor, nas quais entram critérios subjetivos tais como "atratividade" para o investidor e "razoabilidade" para os consumidores; daí o imperativo ético de que o processo seja absolutamente transparente. Na prática, com o setor elétrico submetido às forças do mercado, a taxa de retorno tende a acompanhar o custo da alternativa de investimento, isto é, o custo da oportunidade de se aplicar o capital em outros projetos (Bitu & Born, 1993; Viscusi et al., 2000).

Em projetos capital intensive como são os do setor elétrico, o principal componente do custo corresponde à amortização do investimento (custo do capital). Os demais componentes (despesas de operação, seguros, taxas, salários etc.) incidem com intensidade menor, porém, na medida em que o projeto se aproxima do fim do prazo de depreciação contábil, a importância dessas despesas cresce em relação ao custo do capital.

A vida útil das hidrelétricas supera seu prazo de depreciação contábil, que é convencionalmente estabelecido em 30 anos. Assim, usinas já amortizadas continuam gerando energia a um custo que se reduz às despesas de operação e manutenção; seguros; salários e encargos trabalhistas. Existem no mundo hidrelétricas implantadas nos primeiros anos do século passado que continuam operando normalmente, o que constitui uma vantagem para a sociedade, que se beneficia do serviço sem o ônus de um novo investimento. A propósito, o custo de geração das usinas hidrelétricas brasileiras já amortizadas, que respondem por uma parte considerável da energia elétrica gerada no país, está em apenas cerca de US$ 4/MWh (Campos Ferreira, 2002). Portanto, teria sido possível compor para o sistema elétrico brasileiro um mix tarifário que restituiria à sociedade as taxas e os impostos pagos ao longo de muitas décadas, para financiar a implantação desse parque. Com a desregulamentação do sistema elétrico e a privatização de grandes hidrelétricas que estavam prestes a chegar ao fim de seus prazos de depreciação contábil, tal composição tarifária tornou-se inviável.

Nas usinas hidrelétricas, o número de empregados das áreas operacional e administrativa fica em torno de 0,1 empregado por MW instalado. Nas usinas nucleares esse número é de, aproximadamente, 0,7 empregado por MW instalado. No Brasil, incluindo-se os encargos trabalhistas, as despesas salariais são da ordem de R$ 48.000,00 por empregado/ano, nas usinas nucleares; e de R$ 36.000,00, nas hidrelétricas.

Os aproveitamentos hidrelétricos mais próximos dos pólos de consumo já estão sendo explorados, portanto não se pode esperar que a energia gerada em novas usinas tenha custos comparáveis aos das antigas, pois, entre outras coisas, deve-se acrescentar o custo da transmissão cuja incidência vai aumentando na medida em que os novos aproveitamentos localizem-se em regiões mais afastadas.

O custo do combustível das usinas nucleares é composto pela soma dos custos de cada uma das etapas do ciclo do urânio, que vai da mineração até a fabricação dos elementos combustíveis. Nessa composição a etapa mais onerosa é a do enriquecimento, que entra com 36%. A incidência do custo do urânio (U3O8) fica em torno de 27%.

O prazo de depreciação contábil das usinas nucleares coincide com a sua vida útil (cerca de 40 anos), após o que elas devem ser descontaminadas e descomissionadas.

As despesas de descomissionamento devem ser trazidas ao valor presente e incluídas nos custos de geração, a fim de constituir um fundo com recursos suficientes para aquelas despesas.

Na Grã-Bretanha, por exemplo,1 o governo atribuiu ao órgão público responsável pelo descomissionamento (Nuclear Decommissioning Authority) uma dotação orçamentária de £ 2,47 bilhões (US$ 4,34 bilhões) para o exercício de 2007/2008.

Outros componentes do custo da geração nuclear são o da administração dos rejeitos de baixa e média atividade, e o da deposição final dos rejeitos de alta atividade.

Tanto para as hidrelétricas como para as nucleares e as térmicas convencionais, os prêmios pagos às companhias de seguros são, em média, da ordem de 1% ao ano, sobre o capital investido.



Custo de geração de Angra III

Segundo a Eletronuclear (Barata, 2007), o orçamento para a conclusão de Angra III (atualizado em dezembro de 2007) é da ordem de R$ 7,35 bilhões, sem incluir os juros durante a construção. A quantia já investida no projeto monta a R$ 1,61 bilhão, sendo 65% (R$ 1,05 bilhão) em despesas financeiras incorridas durante o tempo em que a obra ficou parada. Os restantes 35% (R$ 560 milhões) destinaram-se à aquisição dos principais componentes mecânicos do sistema nuclear de geração de vapor (vaso do reator, pressurizadores, geradores de vapor, bombas principais de refrigeração e suportes desses componentes). Foram também adquiridos alguns dos principais componentes do circuito secundário, tais como o grupo turbogerador, as bombas principais de água de alimentação e de condensado e, ainda, vários equipamentos de processo (estações de válvulas, trocadores de calor, vasos de pressão, tubulações etc.). Esses componentes estão armazenados no próprio sítio da usina e nas instalações da Nuclebrás Equipamentos Pesados S. A. (Nuclep), em Itaguaí (RJ).

Depreende-se daí que o verdadeiro custo de Angra III será de R$ 7,91 bilhões (isto é, R$ 7,35 bilhões + R$ 560 milhões), sem os juros durante a construção. Nos cálculos apresentados na Tabela 1, as despesas já feitas foram lançadas a fundo perdido, pois o governo assim já decidiu. Por conseguinte, o valor calculado (R$ 180,00/MWh) é, na realidade, um custo subsidiado, que, evidentemente, não deverá prevalecer para futuras usinas do mesmo tipo que, porventura, venham a ser implantadas.





Nesses cálculos, admitiu-se que a TIR será de 10% ao ano e que Angra III operará com o fator de capacidade esperado pela Eletronuclear (87%), valor muito otimista, comparado, por exemplo, ao do parque nuclear francês, que não chega a 78%.2

Admitiu-se, ainda, que o BNDES financiará 70% do orçamento para a conclusão da obra, a juros de 7,5% ao ano (TJLP + 1%), entrando os 30% restantes como equity, a 8% ao ano, durante a construção.

De acordo com a Eletronuclear, a implantação de Angra III levará 66 meses (construção civil, montagem eletromecânica, comissionamento dos sistemas e testes pré-operacionais), começando com os trabalhos de concretagem da laje de fundação do edifício do reator e terminando com os testes de potência da usina.

Para comparação, cabe notar que, internacionalmente, o prazo de construção de usinas nucleares é, em média, de cinco a sete anos; a taxa de juros durante a construção (JDC) é de 8% a 10% ao ano sobre 50% do investimento (os outros 50% constituem capital acionário); a TIR é de 10% a 15% ao ano, e o prazo de amortização é de 40 anos, coincidindo com a vida útil da unidade, ao cabo da qual deve ela ser descomissionada.

O descomissionamento implica futuros investimentos entre US$ 350 e US$ 500 por kW elétrico instalado.3

Estima-se que, no Brasil, as despesas de descomissionamento, somadas aos custos da administração dos rejeitos de baixa e média atividade e ao que será gasto futuramente, na deposição final dos rejeitos de alta atividade, incidam com cerca de R$ 3/MWh na tarifa de geração, ao longo da vida útil da usina.

Assumiu-se, como faz a Eletronuclear, que o custo do combustível ficará estacionado em apenas R$ 17,6/MWh, ou seja, o mesmo de Angra II. Aqui é importante ressalvar que, desde o final da década de 1980 até meados de 2003, a cotação do urânio (U3O8) no mercado internacional permaneceu estável, em torno de US$ 18 a US$ 20 por kg. A partir daí os preços subiram rapidamente, atingindo US$ 200 por kg, em 2006. Houve, portanto, uma valorização da ordem de 1.000% em apenas três anos (WEC, 2007).

Embora na formação do custo do combustível o preço do urânio tenha uma incidência de apenas 27% em relação às demais etapas do ciclo, é possível que a crescente demanda mundial venha a induzir uma valorização que faça desse preço um fator de incerteza. Essa eventualidade deve ser considerada na análise dos aspectos estratégicos do projeto de Angra III.



Custo de geração das usinas hidrelétricas de Belo Monte, Santo Antônio e Jirau

A usina de Belo Monte representará o primeiro passo para o aproveitamento do potencial hidrelétrico do Rio Xingu. Na região indicada para o projeto (Volta Grande do Xingu), o rio corre num canyon que faz uma curva e retorna no sentido oposto, desenhando uma figura em forma de ferradura, quase fechada. O desnível entre a entrada e a saída dessa curva é de 90 metros, e, na saída, o fluxo turbinável é de, aproximadamente, 13.900 m3/seg. O anteprojeto inicial da obra previa a construção de uma barragem na saída do canyon, para alimentar uma casa de força com a capacidade de 11.000 MW (20 máquinas de 550 MW). Essa configuração apresentava os inconvenientes de alagar uma ilha de onde teriam que ser removidos cerca de 400 indígenas, e de inundar toda a área abrangida pela concavidade da curva em forma de ferradura, descrita pelo canyon (aproximadamente 1.225 km2), numa região de biodiversidade extremamente rica. Esses inconvenientes provocaram rumorosos protestos de grupos ambientalistas.

Preparou-se então um projeto alternativo que não alagará a ilha nem a área circunscrita pela curva, preservando-se dessa forma a biodiversidade. A idéia básica desse projeto é construir, antes da entrada do canyon, uma barragem menor, formando, a montante, um lago de 420 km2, área que corresponde a apenas o dobro da expansão normal do rio em seu leito, nas épocas chuvosas. Uma pequena parte da água aí acumulada alimentará uma casa de força com sete máquinas de 25,9 MW (capacidade total ≈ 181 MW), e a maior parte descerá por um sistema de canais, diques e penstocks, diretamente até uma casa de força construída na saída do canyon, situada 90 metros abaixo, para alimentar 20 máquinas de 550 MW, ou seja, 11.000 MW. Teremos assim, no total, uma capacidade instalada de 11.181 MW.

Nessa configuração, o custo do investimento em Belo Monte será de, aproximadamente, R$ 7,5 bilhões, já incluídas as despesas de preparação do sítio e de mitigação dos impactos ambientais e sem os juros durante a construção.

Na Tabela 2 apresenta-se o cálculo do custo de geração de Belo Monte, feito com base em condições financeiras semelhantes às de Angra III.

Em razão da irregularidade da vazão do Rio Xingu, o fator de capacidade da usina será de apenas 40%, portanto sua potência firme ficará em 4.472 MW, valor que poderá melhorar, à medida que forem sendo implantados outros aproveitamentos já inventariados a montante de Belo Monte e que se interliguem os sistemas elétricos das regiões Norte e Nordeste. Estudos da Eletronorte estimam em 32.000 m3/segundo a vazão regularizada do Xingu, fluxo que permitirá ainda a instalação de projetos de menor porte, perfazendo uma capacidade da ordem de 5.000 MW, a montante de Belo Monte.

O cronograma preliminar colocava o início da obra em abril de 2010, com a primeira máquina entrando em testes em junho de 2014.


As hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, com potências instaladas de 3.150 MW e 3.300 MW, respectivamente, situam-se no Rio Madeira, Estado de Rondônia, município de Porto Velho. As usinas serão compostas por barragens a fio d'água, casas de força, vertedouros e turbinas de tipo bulbo. O aspecto inovador do projeto é o emprego de turbinas desse tipo em grandes hidrelétricas. Graças a isso, ambos os aproveitamentos serão de baixa queda, com reservatórios que inundarão áreas de 271 km2 (Santo Antônio) e 258 km2 (Jirau), pequenas para hidrelétricas desse porte.

O plano original previa ainda algumas eclusas, para formar uma hidrovia ligando o interior da Bolívia ao Rio Amazonas, numa extensão de aproximadamente quatro mil quilômetros.

O orçamento preliminar, feito por Furnas em colaboração com uma empreiteira, colocava o custo da implantação das duas usinas em R$ 25 bilhões, incluindo os juros durante a construção e as despesas do concessionário na instalação dos canteiros das obras e na mitigação dos impactos ambientais, valor que parece muito elevado, pois, dadas as características dos dois sítios, o custo unitário dessas usinas não deverá exceder R$ 2.700/kW instalado, de modo que o investimento total em ambas não deveria passar de algo em torno de R$ 17,5 bilhões. A Tabela 3 apresenta, com base nesse valor e em condições financeiras semelhantes às de Angra III, o custo de geração de Santo Antônio e Jirau.

Pelo cronograma preliminar – que está sendo reformulado –, o início da obra de Santo Antônio estava previsto para outubro de 2008, e a primeira máquina deveria entrar em testes em meados de 2012. A de Jirau começaria em outubro de 2009, e a primeira turbina seria testada em 2013.



Considerações finais e conclusões

A conexão de Belo Monte à rede básica implicará um custo de transmissão de, aproximadamente, R$ 10/MWh, de modo que sua energia deverá chegar ao sistema interligado por algo em torno de R$ 49/MWh. Para as usinas do Rio Madeira, a transmissão custará cerca de R$ 20/MWh; portanto, a energia chegará ao sistema por R$ 97/MWh, aproximadamente.

A comparação (Tabela 4) entre os custos da energia das usinas examinadas neste artigo aponta na direção do projeto de Belo Monte para, em princípio, receber tratamento prioritário no processo alocação de recursos – seja do orçamento da União, seja de bancos oficiais – para o início das obras. Uma eventual decisão de se terminar a obra de Angra III apenas para justificar o investimento já realizado poderia revelar-se equivocada, pois, em um ano de operação, Angra III produziria 10.943.913 MWh, a um custo de R$ 1,97 bilhão de reais. Em um ano, Belo Monte produziria quase quatro vezes mais energia, praticamente pelo mesmo custo.


Para gerar a mesma quantidade de energia que Angra III geraria em um ano, a um custo de R$ 1,97 bilhão, Belo Monte gastaria apenas R$ 536 milhões de reais. A economia seria, portanto, da ordem de R$ 1,43 bilhão, por ano.

Quanto à tecnologia, cumpre observar que a finalidade de usinas nucleares é gerar energia elétrica, o que não requer know-how de projeto e construção de usinas nucleares, mas apenas experiência em operação e manutenção. A Eletronuclear já dispõe de quadros altamente qualificados, que adquiriram muita experiência na operação e manutenção de Angra I e Angra II. Esses quadros renovam-se continuamente com os mais jovens que ingressam na empresa, sendo treinados e absorvendo experiência dos que estão próximos da aposentadoria. Não é necessário construir Angra III para preservar essa experiência. E construí-la com o objetivo de desenvolver tecnologia de projeto e construção de usinas nucleares equivaleria a comprar um Airbus A380, que pode ser muito bem pilotado por pilotos formados no Brasil, mas que não têm – nem poderiam ter – a incumbência de projetar e construir aviões. De fato, as companhias aéreas brasileiras sempre compraram e operaram aviões modernos, no entanto a indústria aeronáutica brasileira só se desenvolveu com a criação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica, que estimulou a criação da Embraer e as empresas que estão em sua cadeia produtiva.

Analogamente, a capacidade brasileira para fazer o projeto básico, desenvolver os materiais, desenhar os sistemas e construir uma usina nuclear, só será adquirida quando o governo – em vez de comprar projetos feitos no exterior, como o de Angra III – entregar a institutos brasileiros dedicados à pesquisa tecnológica a responsabilidade de desenvolver e construir um protótipo e, em seguida, escalá-lo para produção industrial. Entre esses institutos, destacam-se o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares de São Paulo (Ipen), a Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da UFRJ (Coppe), o Centro Tecnológico da Marinha (CTMSP) e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT), entre outros.

Um programa destinado a desenvolver um protótipo de reator a ser escalado e, posteriormente, fabricado comercialmente pela indústria local e montado por firmas de engenharia brasileiras poderia ser financiado com recursos provenientes da diferença entre os custos de geração de Angra III e Belo Monte.

Quanto à unidade de enriquecimento de urânio, em Rezende (RJ), nada impede que sua implantação seja completada e que o governo compre parte de sua produção, para acumular um estoque estratégico de urânio enriquecido a 3%, que é impróprio para fins bélicos, porém importante para ser usado futuramente, em usinas nucleares projetadas no Brasil, caso ainda não se tenha desenvolvido alternativa mais interessante para ser empregada quando o potencial hidrelétrico estiver plenamente aproveitado.

Notas

1 Nuclear Engineering International, 5 June 2007.

2 Agence pour l'énergie nucléaire de l'OCDE (http://www.nea.fr).

3 IEA Energy Technology Essentials – Nuclear Power – march 2007.


http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142008000300013&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Joaquim Francisco de Carvalho pertence ao Programa Interunidades de Pós-Graduação em Energia da Universidade de São Paulo. @ – jfdc35@uol.com.br

Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo

Aqüífero Guarani: gestão compartilhada e soberania


Aqüífero Guarani: gestão compartilhada e soberania

Wagner Costa Ribeiro

Água doce e de qualidade é vital à existência humana. Além disso, ela deve estar próxima aos usuários. O aumento do uso dos recursos hídricos em escala mundial levará a um uso ainda mais intenso das reservas de água subterrânea. Isso já ocorre em muitos lugares onde ela está disponível. Entretanto, as águas subterrâneas se distribuem irregularmente no interior da superfície terrestre e não respeitam limites fronteiriços de países. Esse é mais um elemento a ser considerado na gestão dos recursos hídricos em escala internacional.

A gestão compartilhada das águas internacionais, as que se distribuem por mais de um país como um corpo d'água superficial ou como reserva subterrânea, deve ser um dos temas mais debatidos nesse início de século XXI. As discussões estão mais avançadas quando se trata dos recursos superficiais. As 263 principais bacias internacionais têm sido analisadas por diversos especialistas.1 Um dos casos mais conhecidos resultou na Convenção de Helsinque, que desde 1992 regulamentou o uso compartilhado da água envolvendo países europeus. Porém, são ainda escassas as análises tratando da gestão compartilhada da água subterrânea.

Países como Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, que integram o Mercado Comum do Sul (Mercosul), partilham um imenso reservatório hídrico interior e não devem enfrentar dificuldades para abastecimento populacional ou para outros usos da água. Entretanto, devem regulamentar o acesso a ela para que não ocorra sua contaminação nem o esgotamento dos recursos hídricos.

Este trabalho analisa a oferta de água subterrânea do aqüífero Guarani. Além disso, procura apontar a situação institucional do Mercosul em relação à gestão compartilhada dos recursos hídricos.

Inicialmente se fará uma exposição do quadro físico do aqüífero. Depois, o Mercosul e seus organismos de gestão ambiental serão discutidos na perspectiva de avaliar a pertinência em deslocar para esse bloco de países a coordenação da gestão do Sistema Aqüífero Guarani (SAG).



O Sistema Aqüífero Guarani

O Sistema Aqüífero Guarani está distribuído por uma área de cerca de 1.196.500 km2. Situado na porção Centro-Leste do continente sul-americano, distribui-se pelo território de quatro países do Cone Sul, todos membros do Mercosul: Argentina, com 225.500 km2; Paraguai, com uma área de 71.700 km2; Uruguai, onde ocupa cerca de 58.500 km2; e Brasil, país onde chega a algo em torno de 840.800 km2 (Figura 1).

Além de conter a maior parte das reservas subterrâneas, o Brasil também conta com muitas áreas de recarga, o que lhe confere uma posição estratégica. Nesse país, o aqüífero se dispersa ao longo de oito Estados da Federação: Mato Grosso do Sul, com uma área de 213.200 km2; Rio Grande do Sul, com 157.600 km2; São Paulo, com 155.800 km2; Paraná, com 131.300 km2; Goiás, com 55.000 km2; Minas Gerais, com 52.300 km2; Santa Catarina, com 49.200; e Mato Grosso, com 26.400 km2.

O Sistema Aqüífero Guarani resulta de diversas formações geológicas situadas no Triássico e no Jurássico. Tiveram origem no Triássico as Formações Pirambóia e Rosário do Sul, no Brasil, e a Formação Buena Vista, no Uruguai. Remontam ao Jurássico as Formações Botucatu, no Brasil, Misiones, no Paraguai, e Tacuarembó, que ocorre na Argentina e no Uruguai (Rocha, 1997).

Os arenitos do Triássico têm origem flúvio-lacustre e alcançam uma porosidade média de 16%, em razão dos elevados índices de argila, o que dificulta o fluxo de água no interior da rocha (Araújo et al., 1995). Os arenitos do Jurássico têm origem eólica e uma porosidade média de 17%. Neles ocorrem os melhores reservatórios de água do sistema (ibidem).

As rochas arenosas saturadas de água estão entremeadas por rochas basálticas da Formação Serra Geral que resultaram de intrusões desse material. A espessura desse pacote de rocha arenosa oscila entre 200 e 800 m. Porém, além de aflorar em diversos pontos do território dos países citados, ela chega a atingir 1.800 m de profundidade. Por isso, existe uma variação importante na temperatura da água, que em alguns pontos chega a 65ºC e, em outros, aflora a temperatura ambiente oscilando próximo a 20ºC. O mapa da Figura 2 indica os pontos conhecidos de afloramento do aqüífero.


A condição de aqüífero confinado é estabelecida pelas rochas vulcânicas da Formação Serra Geral e pelas rochas sedimentares triássicas e jurássicas. Por isso, é freqüente o artesianismo que se verifica em cerca de 70% da área de ocorrência (Borghetti et al., 2004).

Uma das controvérsias científicas ainda sem esclarecimento diz respeito à distribuição do aqüífero. Por estar confinado entre rochas vulcânicas, sem porosidade, admite-se que o aqüífero não está como um corpo poroso contínuo no qual ocorre água (ibidem). Ele está entrecortado por rochas intrusivas que o fracionam. Essa irregularidade leva à definição do Sistema Aqüífero Guarani, uma série de corpos d'água subterrânea que podem estar isolados ou não. Outro aspecto pouco conhecido é a comunicação entre esses corpos. Haveria comunicação entre eles? Se sim, eles devem ser pensados como um conjunto que dispõe de água transferindo-a internamente. Mas e se não ocorrerem vasos comunicantes? Nesse caso, há quem advogue que a gestão compartilhada não se aplica. Daí a necessidade em aprofundar estudos que analisem a hidrogeologia do aqüífero para que se possam esclarecer esses aspectos, que implicam diretamente a gestão dos recursos hídricos do Sistema Aqüífero Guarani.

Estima-se que a quantidade de água do aqüífero seja em torno de 46.000 km3 (Borghetti et al., 2004). Em estudo muito anterior, o geólogo brasileiro Aldo Rebouças (1976) estimou as reservas em 48.000 km3. Porém, a reposição de água, oriunda de chuvas nas áreas de recarga, é estimada em aproximadamente 166 km3/ano ou 5 mil m3/s. Considerando-se perdas, chegou-se a um volume de 40 km3/ano de água utilizável, segundo divulgou o Departamento de Águas e Energia do Estado de São Paulo.2 Esse volume de água é mais que suficiente para abastecer os cerca de 15 milhões de habitantes que vivem sobre a superfície do aqüífero (Araújo et al., 1995).3

Embora as reservas de água subterrânea já estejam em uso em diversas localidades, não existe ainda uma estrutura organizada para a gestão dos recursos hídricos do Sistema Aqüífero Guarani. Apesar da controvérsia sobre o isolamento de partes do sistema, especula-se que o uso desequilibrado possa afetar a dinâmica da oferta de água. Daí ser fundamental conhecer o arranjo institucional usado como parâmetro de gestão dos recursos hídricos no Mercosul, pois os países em que essa água está disponível integram esse bloco de países. A expectativa é avaliar se os instrumentos que tal bloco oferece propiciam um uso compartilhado dos recursos subterrâneos do Sistema Aqüífero Guarani.



O Mercosul

A intenção de articular os países do Cone Sul em um bloco de países surgiu em meados da década de 1980, quando o Brasil e a Argentina assinaram acordos para a redução gradual de tarifas alfandegárias. A inversão de interesses de países até então oposicionistas e que se afirmavam mutuamente como inimigos é um dos principais aspectos desse momento vivenciado na América do Sul. A aproximação de dois rivais parecia distender tensões acumuladas ao longo da história. Esperava-se que uma articulação entre esses países resultasse em uma ordem baseada no entendimento e na paz entre os membros do continente sul-americano.

Esse quadro favorável permitiu a criação do Mercosul. Em 1991, em reunião realizada em Assunção, Paraguai, chegou-se ao Tratado de Assunção, que criou o Mercosul integrando Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.4 Esse documento é um acordo-quadro, portanto, amplo. Ele expressava o desejo da integração, mas não a regulamentou. Mesmo assim, o Tratado de Assunção já expressava preocupações ambientais, como consta em seu preâmbulo:

Considerando que a ampliação das atuais dimensões de seus mercados nacionais, através da integração constitui condição fundamental para acelerar seus processos de desenvolvimento econômico com justiça social;

Entendendo que esse objetivo deve ser alcançado mediante o aproveitamento mais eficaz dos recursos disponíveis a preservação do meio ambiente, melhoramento das interconexões físicas a coordenação de políticas macroeconômica da complementação dos diferentes setores da economia, com base nos princípios de gradualidade, flexibilidade e equilíbrio. (Mercosul, 1991, grifo do autor)

A integração de mercados nacionais, objetivo central da criação do Mercosul, deveria ponderar a preservação ambiental e melhorar as interconexões físicas. A temática ambiental está claramente referenciada do mesmo modo que se pode interpretar que a integração tratava também das bases físicas, fossem elas naturais ou construídas.

Em 1994, na reunião de Ouro Preto, no Brasil, definiu-se a estrutura institucional do Mercosul. Apesar disso, o bloco ainda carece de uma efetiva implementação. Grande parte das determinações de Ouro Preto ainda está a cumprir.

O Protocolo de Ouro Preto definiu a seguinte estrutura institucional: o Conselho do Mercado Comum (CMC); o Grupo Mercado Comum (GMC); a Comissão de Comércio do Mercosul (CCM); a Comissão Parlamentar Conjunta (CPC); o Foro Consultivo Econômico-Social (FCES); e a Secretaria Administrativa do Mercosul (SAM). Além dessa estrutura, funciona também a Reunião de Ministros, ocasião em que estes se reúnem de acordo com suas pastas e procuram assessorar e subsidiar as deliberações do CMC.

O Conselho do Mercado Comum é o principal foro decisório e é composto pelos ministros das Relações Exteriores e pelos ministros da Economia, ou seus equivalentes, dos Estados-parte. A presidência do CMC cabe a cada um dos países membros e se alterna de seis em seis meses, por ordem alfabética.

O Grupo Mercado Comum é o braço executivo do bloco. Segundo o artigo 11 do Protocolo de Ouro Preto, "será integrado por quatro membros titulares e quatro membros alternos por país, designados pelos respectivos Governos, dentre os quais devem constar necessariamente representantes dos Ministérios das Relações Exteriores, dos Ministérios da Economia (ou equivalentes) e dos Bancos Centrais. O Grupo Mercado Comum será coordenado pelos Ministérios das Relações Exteriores" (Mercosul, 1994).

A Comissão de Comércio do Mercosul se reúne ao menos uma vez ao mês e é composta por indicação dos respectivos Ministérios de Relações Exteriores. Já a Comissão Parlamentar Conjunta congrega os Parlamentos dos países-membros, que devem indicar os representantes, cuja função é apresentar recomendações ao CMC.

O Foro Consultivo Econômico-Social é o órgão de representação dos setores econômicos e sociais e será integrado por igual número de representantes de cada Estado-parte. Ele foi criado para atender a uma demanda de organizações sindicais e populares que procuravam estar mais presentes e influenciar as decisões do CMC. Entretanto, não consegue atuar como previsto. Por fim, à Secretaria Administrativa cabe emitir documentos em nome do Mercosul, bem como arquivar a documentação. Ela é dirigida por um diretor eleito, com mandato de dois anos, no GMC.

Em 1998, na reunião de Ushuaia, na Argentina, foi definido mais um protocolo de destaque. Ele reforçou um compromisso que havia sido acordado pelos membros criadores: manter a democracia em seus Estados. Tal exigência era compreensível em razão das ditaduras que os quatro membros enfrentaram, cada qual ao seu tempo, desde meados da década de 1960 até meados da década de 1980.

Mesmo com o reconhecimento de que o diálogo democrático era fundamental, foi preciso estabelecer um regime de resolução de eventuais problemas envolvendo as partes. Esse processo teve início em 1991, em reunião ocorrida em Brasília. Na ocasião, definiu-se o Protocolo de Brasília de Resolução de Controvérsias. A partir de então, o bloco passou a contar com um sistema de sanções entre as partes em caso de descumprimento de termos acordados por consenso, como estabelecia o Tratado de Assunção.

O Protocolo de Brasília definiu três etapas para a resolução de controvérsias: a negociação direta entre as partes – que não pode exceder a 15 dias; a conciliação, que deve ser obtida em até 30 dias por meio do Grupo Mercado Comum; e a arbitragem.

O Protocolo de Olivos, de 2002, aprofundou os termos do Protocolo de Brasília, revogando-o. Além disso, detalhou os procedimentos para a arbitragem. Cabe destacar que os laudos arbitrais devem ser aplicados no prazo fixado a critério do júri, e "são obrigatórios para os Estados partes na controvérsia a partir de sua notificação e terão, em relação a eles, força de coisa julgada" (Mercosul, 2002).



A dimensão ambiental no Mercosul

Dispostos sobre a bacia da Prata, uma área natural de escala considerável, era de esperar que os países do Mercosul tivessem uma maior articulação voltada à gestão dos recursos naturais, em especial dos recursos hídricos. Porém, não é o que se verifica. Como nos demais itens, a institucionalização do Mercosul ainda é incipiente, carece de maiores investimentos e vontade política para implementação.

Apesar disso, encontram-se documentos e deliberações que justificam uma inquietação voltada às questões ambientais. Elas são expressão do Subgrupo de Trabalho Meio Ambiente – número 6 (denominado SGT 6) que está vinculado ao Grupo Mercado Comum. Pode-se dizer que o Mercosul configura um subsistema da ordem ambiental internacional (Ribeiro, 2001).

Foi no âmbito do SGT 6 que foi elaborado e aprovado o Acordo Quadro sobre Meio Ambiente do Mercosul, em 22 de junho de 2001. Além dele, o foro de ministros também criou a Reunião de Ministros de Meio Ambiente do Mercosul, em 12 de dezembro de 2003. São essas as instâncias que tratam dos temas ambientais no Mercosul.

Enquanto a segunda procura ser um foro de influência política de representantes do poder executivo de cada parte nas discussões ambientais que funciona como uma espécie de consultor às decisões do Mercosul relacionadas ao meio ambiente, a outra reafirma compromissos da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro em 1992, em especial o do "desenvolvimento sustentável preconizado na Agenda 21" (Mercosul, 2001). Nela também se reafirma a cooperação entre as partes como instrumento central para a sustentabilidade entre as ações dos membros do bloco regional.

É no artigo 3º que estão os princípios que orientam as partes, a saber:

a) promoção da proteção do meio ambiente e aproveitamento mais eficaz dos recursos disponíveis mediante a coordenação de políticas setoriais, com base nos princípios de gradualidade, flexibilidade e equilíbrio;

b) incorporação da componente ambiental nas políticas setoriais e inclusão das considerações ambientais na tomada de decisões que se adotem no âmbito do Mercosul para fortalecimento da integração;

c) promoção do desenvolvimento sustentável por meio do apoio recíproco entre os setores ambientais e econômicos, evitando a adoção de medidas que restrinjam ou distorçam de maneira arbitrária ou injustificável a livre circulação de bens e serviços no âmbito do Mercosul;

d) tratamento prioritário e integral às causas e fontes dos problemas ambientais;

e) promoção da efetiva participação da sociedade civil no tratamento das questões ambientais; e

f) fomento à internalização dos custos ambientais por meio do uso de instrumentos econômicos e regulatórios de gestão. (Mercosul, 2001)

Entre esses princípios, destacam-se a incorporação dos temas ambientais na tomada de decisões, a promoção do desenvolvimento sustentável, que é definido nos moldes sugeridos na Declaração do Rio de Janeiro, de 1992, qual seja, manter o desenvolvimento econômico e conservar o ambiente para as gerações futuras, a participação da sociedade civil e a internalização dos custos ambientais. Esses aspectos conferem ao Acordo sobre Meio Ambiente do Mercosul um caráter progressista. Em geral, temas como participação popular e consideração de custos ambientais são relegados a segundo plano nos foros multilaterais. Mesmo em reuniões da Organização das Nações Unidas, por exemplo, a presença de organizações da sociedade civil é facultada como membros de delegações ou como observadores sem direito a voto. Já a internalização dos custos ambientais é foco de longas discussões em foros multilaterais e, em geral, é associada a princípios como o do poluidor-pagador.

Por se tratar de um acordo-quadro, ele deve ser complementado por regulamentação específica. Além disso, ele sugere, no artigo 6º, que, contando com a participação da sociedade civil, a legislação nacional sobre meio ambiente seja harmonizada às diretrizes gerais do Acordo.

A seguir, apresentam-se as quatro áreas, e respectivas subáreas, de atuação do Acordo de Meio Ambiente do Mercosul que devem ser regulamentadas por protocolos específicos. São elas:

1. Gestão sustentável dos recursos naturais

1.a. fauna e flora silvestres;

1.b. florestas;

1.c. áreas protegidas;

1.d. diversidade biológica;

1.e. biossegurança;

1.f. recursos hídricos;

1.g. recursos ictícolas e aqüícolas;

1.h. conservação do solo.

2. Qualidade de vida e planejamento ambiental

2.a. saneamento básico e água potável;

2.b. resíduos urbanos e industriais;

2.c. resíduos perigosos;

2.d. substâncias e produtos perigosos;

2.e. proteção da atmosfera/qualidade do ar;

2.f. planejamento do uso do solo;

2.g. transporte urbano;

2.h. fontes renováveis e/ou alternativas de energia.

3. Instrumentos de política ambiental

3.a. legislação ambiental;

3.b. instrumentos econômicos;

3.c. educação, informação e comunicação ambiental;

3.d. instrumentos de controle ambiental;

3.e. avaliação de impacto ambiental;

3.f. contabilidade ambiental;

3.g. gerenciamento ambiental de empresas;

3.h. tecnologias ambientais (pesquisa, processos e produtos);

3.i. sistemas de informação;

3.j. emergências ambientais;

3.k. valoração de produtos e serviços ambientais.

4. Atividades produtivas ambientalmente sustentáveis

4.a. ecoturismo;

4.b. agropecuária sustentável;

4.c gestão ambiental empresarial;

4.d. manejo florestal sustentável;

4.e. pesca sustentável. (Mercosul, 2001)

Os recursos hídricos estão destacados no subitem f da área 1, "Gestão sustentável dos recursos naturais". Porém, eles também podem estar relacionados a outras áreas, como a 2 sobre "Qualidade de vida e planejamento ambiental", que em seu subitem a estabelece o saneamento básico e a água potável como focos de atenção, e a 3, "Instrumentos de política ambiental", em especial nos subitens de a até o d, que tratam, respectivamente, de legislação ambiental, dos instrumentos econômicos, da educação ambiental e dos instrumentos de controle ambiental.

Como nos demais instrumentos do Mercosul, a resolução de controvérsias do Acordo sobre Meio Ambiente está sujeita aos termos do Protocolo de Olivos.



Gestão compartilhada do Aqüífero Guarani

Apesar do reconhecimento entre as partes do Mercosul nas quais ocorre o Sistema Aqüífero Guarani de sua situação privilegiada em termos de abastecimento hídrico no médio e longo prazos, não houve um avanço expressivo na regulamentação ambiental, em especial no que se refere ao uso compartilhado de recursos hídricos. A ausência de regulamentação regional para a gestão compartilhada dos recursos hídricos subterrâneos não deve ser considerada uma dificuldade. Ela pode ser superada por meio do diálogo entre as partes.

O Mercosul funciona melhor como instrumento de estímulo a trocas comerciais entre seus membros, objetivo inicial de sua criação, do que como meio para regulamentar a ação ambiental entre seus integrantes. No caso dos recursos hídricos subterrâneos, é fundamental que seja promovida uma maior articulação de informações e conhecimentos sobre a dinâmica natural do Sistema Aqüífero Guarani para que as decisões possam ser tomadas de maneira mais consciente. A cooperação entre as partes atende aos objetivos de criação do Mercosul e deve ser cada vez maior e envolver instituições de pesquisa e órgãos nacionais gestores de recursos hídricos.

A estrutura de decisões do bloco de países condiz com sua meta inicial, articular interesses para facilitar trocas comerciais. Ela também oferece dispositivos de regulação ambiental que devem ser ao menos experimentados na gestão dos recursos hídricos, em especial os subterrâneos. Com isso pode-se ganhar um tempo precioso na necessária regulamentação do uso dos recursos hídricos subterrâneos do Sistema Aqüífero Guarani.

Buscar construir novas formas institucionais específicas para a gestão do Aqüífero Guarani pode se mostrar pouco eficaz e demorado, ainda mais por se tratar de países sem tradição de gestão compartilhada de recursos naturais. Ressaltar e valorizar os meios já existentes, resultado de inúmeras reuniões e de um grande esforço multilateral, não implica reconhecer que eles são suficientes para levar a bom termo o uso de recursos hídricos subterrâneos. Mas eles devem ser o ponto de partida para avançar para o entendimento e congraçamento entre os países que detêm os estoques subterrâneos estratégicos que o Sistema Aqüífero Guarani representa.

O tempo não pára, o uso dos recursos hídricos também... por isso, é preciso ser ágil para evitar uma degradação dos estoques de água doce subterrânea como se verificou em outras partes do planeta por falta de diálogo entre países.



Notas

1 Para aprofundar esse aspecto, ver Ribeiro (2008).

2 Cf. , acessado em dezembro de 2005.

3 Outro uso dos recursos do aqüífero, que não será destacado neste trabalho, é a exploração da energia geotérmica. Ela foi estimada em cerca de 280 mw ano/km2 e pode ser utilizada para secagem de grãos e aquecimento de água, entre outros fins.

4 Em 2005, a Venezuela solicitou seu ingresso formal ao bloco, o que até o momento não ocorreu, o que ampliaria a área para cerca de 12.912.000 km2 e cerca de 236 milhões de habitantes. Na condição de observadores, Bolívia e Chile também freqüentam as reuniões das partes. Mas até o momento não expressaram claramente desejo de ingressar no bloco de países.



Referências bibliográficas

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Fontes eletrônicas

, acessado em dezembro de 2005.
, acessado em dezembro de 2005.
, acessado em março de 2006.


Wagner Costa Ribeiro é geógrafo, professor dos Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (Procam) e do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo. Presidente do Procam e coordenador do Grupo de Trabalho de Ciências Ambientais do Instituto de Estudos Avançados da USP. @ – wribeiro@usp.br

Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo

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