terça-feira, 29 de setembro de 2009

Sobrevivência em regime de bode solto

Rebanhos resistem ao clima adverso da caatinga e garantem sustento da população

ANDRÉ CAMPOS

Caprino: adaptado às condições locais
Foto: André Campos

No semi-árido nordestino, cresce a popularização das cisternas, uma solução simples e barata para captar a água da chuva que cai no telhado das casas. O sanfoneiro, por sua vez, divide hoje espaço com as guitarras do estilo conhecido como "forró eletrônico" – ou "forró de plástico", na definição dos mais puristas. Já o jegue, durante séculos o meio de transporte oficial do sertanejo, cada vez mais é substituído pelas motos. Frequentemente, animais abandonados perambulam pelas estradas, ao deus-dará.

Muita coisa mudou no sertão. Mas há, também, o que luta para permanecer o mesmo. Em meio ao clima seco, que impõe dificuldades à agricultura, o pastoreio tornou-se a base da subsistência de muitos grupos. Assim, comunidades unidas por laços de compadrio e parentesco usam para esse fim áreas não cercadas, consideradas de todos. São terras localizadas atrás das roças das famílias, ao fundo de suas casas: os chamados "fundos de pasto".

Lá os animais se alimentam da própria vegetação nativa. São alguns bovinos, mas também ovelhas e, principalmente, cabras e bodes – preferidos por sua alta resistência às estiagens e boa adaptação ao consumo daquilo que a caatinga provê. Cotidianamente, os animais são soltos pela manhã e recolhidos ao curral no fim do dia, quando um sino amarrado no pescoço de alguns deles – cuja tonalidade específica cada dono sabe reconhecer – ajuda na tarefa de localizar o rebanho. Cortes ou marcações a ferro quente nas orelhas também diferenciam os bichos de cada um. "Dizemos sempre que não somos nós que criamos o bode, mas que é o bode que cria a gente", brinca Maria Izete Lopes, moradora da comunidade de fundo de pasto de Boa Vista, em Campo Alegre de Lourdes (BA). "Fazemos tão pouco por ele, e ele nos dá tanto de volta..."

Comunidades que se organizam em torno dos fundos de pasto estão presentes num amplo espectro de áreas do nordeste – que perpassam, por exemplo, Pernambuco e Piauí. É na Bahia, porém, onde tais grupos têm maior visibilidade. Atualmente, lá existem 487 fundos de pasto identificados pelo governo estadual, espalhados por dezenas de municípios. Usufruem deles cerca de 16 mil famílias, para as quais a garantia de um futuro digno envolve uma questão fundamental: que esses territórios permaneçam como estão, ou seja, considerados terras de ninguém – mas essenciais à perpetuação do modo de vida dessas pessoas.

Arranjo frágil

Em muitos casos, os atuais grupos de fundo de pasto são formados por descendentes de vaqueiros da chamada Civilização do Couro – período que remete aos primórdios da colonização do semiárido, quando se criava gado para fornecer animais de trabalho aos engenhos de açúcar. Por seus serviços, recebiam filhotes como pagamento, arranjo que perdurou até tempos recentes no trato entre trabalhadores de poucas posses e proprietários de rebanhos maiores. "Aqui sempre sobrevivemos assim, tomando conta da criação de um e de outro. De cada quatro bezerros nascidos, a gente ficava com um", lembra Joaquim da Rocha, um dos mais velhos moradores da comunidade de fundo de pasto de Riacho Grande, em Casa Nova (BA).

Os vaqueiros mantinham, além dos bois, cabras, carneiros, porcos e roças de subsistência nas terras dos grandes sesmeiros – que, via de regra, moravam em centros urbanos distantes. Vivendo nesse relativo isolamento e com certa autonomia, seus descendentes formaram comunidades fechadas, onde o pastoreio solto em áreas utilizadas por todos se explica, em grande medida, pela necessidade de socializar a pouca água do sertão. Livres, os animais vão em busca das folhagens verdes e dos açudes naturais formados onde mais choveu.

Além dos vaqueiros, outras populações de origem branca, indígena ou mesmo quilombola geraram povoados do gênero. Essa diversidade étnica, de acordo com Luiz Antonio Ferraro Júnior, pesquisador da Universidade Estadual de Feira de Santana, reflete a realidade atual dos fundos de pasto. "Há tanto comunidades predominantemente negras quanto brancas", atesta ele em sua tese de doutorado, que ressalta ainda a prevalência da mestiçagem na maioria delas.

No século 19, a decadência dos engenhos levou ao esvaziamento do ciclo do gado no sertão. Desmembradas as enormes sesmarias, e paralelamente à apropriação de grandes áreas pelos "coronéis", parte das terras devolvidas ao Estado permaneceu habitada informalmente por comunidades pastoris. Esse frágil arranjo fundiário sofreria fortes abalos no século seguinte, quando fazendeiros aceleraram o cercamento de territórios até então utilizados na criação em regime de "bode solto".

A década de 1980 marca um agravamento dessa disputa, impulsionada pelas chamadas "leis dos quatro fios" ou "leis do pé alto" – regulamentos municipais que obrigavam à criação de caprinos e ovinos apenas em áreas cercadas, a fim de evitar prejuízos em propriedades alheias. Na prática, inviabilizavam o modo de vida de muitos grupos, fato que deu origem à mobilização em torno da bandeira dos fundos de pasto. "Não havia denominação comum, identidade ou organização política dessas comunidades pastoris previamente aos conflitos", explica Ferraro Júnior.

Como resultado dessa pressão, a Constituição da Bahia de 1989 abriu uma inédita possibilidade de titulação dessas terras públicas utilizadas no pastoreio coletivo. No entanto, dos quase 500 fundos de pasto reconhecidos hoje pelo estado, só cerca de 110 estão regularizados. Desde 2007, aliás, nenhum novo título de terra foi entregue às comunidades. Um parecer da Procuradoria Geral do Estado considerou que tal regularização deve ocorrer por meio da concessão do uso das terras, que continuariam a pertencer à União – antes, documentos de posse eram emitidos em nome de associações constituídas pelas famílias. A mudança, segundo Luís Anselmo Pereira de Souza, coordenador executivo da Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA) – órgão estadual à frente das ações de ordenamento fundiário –, gerou novas burocracias que atrasam o processo. "Em minha opinião, é importante modificar a lei para possibilitar a transferência do domínio às comunidades", afirma.

Enquanto se discutem as leis, permanecem os conflitos por terra. Atualmente, um dos mais emblemáticos remete à região de Areia Grande, no município de Casa Nova, habitada por quatro comunidades de fundo de pasto, que totalizam cerca de 360 famílias. Em março de 2008, policiais entraram no local para cumprir decisão da Justiça que determinava a retirada de alguns de seus moradores. A ação resultou de um processo movido por dois empresários que reivindicam a posse de cerca de 25 mil hectares na região.

O território em questão é palco de celeuma antiga, relacionada ao episódio nacionalmente conhecido como "escândalo da mandioca". Há cerca de 30 anos, instalou-se em Areia Grande a Agroindustrial Camaragibe, empreendimento que obteve incentivos públicos para produzir álcool a partir do plantio de mandioca. Mais tarde, denúncias o apontariam como parte de um esquema para apropriação de empréstimos estatais e seguros agrícolas, com base na alegação de que a seca destruía as plantações.

Já naquela época, questionava-se a autenticidade dos títulos de propriedade da empresa – sobrepostos, segundo as famílias, a áreas de pastoreio. Com o abandono do empreendimento, em meados da década de 1980, as terras foram ocupadas no sistema de fundo de pasto. Os conflitos ressurgiram quando, em 2006, os citados empresários adquiriram, do Banco do Brasil, os direitos sobre a dívida deixada pela Agroindustrial Camaragibe – posteriormente, em acordo estabelecido com os representantes da companhia, obtiveram os títulos das terras como pagamento.

Após idas e vindas, o despejo dos moradores foi suspenso no final de 2008. Na ocasião, um laudo da CDA sobre os registros fundiários em Areia Grande concluiu serem tais títulos fruto de grilagem. Pouco tempo depois, em fevereiro de 2009, José Campos Braga, uma das principais lideranças locais, foi encontrado morto a tiros em sua casa, crime ainda sob investigação policial. Segundo a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia, há fortes suspeitas de ação de pistolagem. "Existem muitas queixas de ameaças anteriores ao assassinato, e elas continuam após o ocorrido", atesta Emília Teixeira, advogada da entidade.

Procurado pela reportagem, o ex-diretor do Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Juazeiro (BA), Alberto Martins Pires Matos – um dos empresários postulantes à área –, qualificou como "infeliz" a tese de que aquelas são, na verdade, terras públicas. "É um título com mais de 50 anos. Inclusive, quando vistoriamos a fazenda, à época da aquisição, não existia ninguém morando na região. Houve uma invasão", argumenta.

Novas ameaças

Marina Braga, agente da Comissão Pastoral da Terra na Bahia (CPT-BA), relata a existência de diversas outras ameaças aos territórios de fundo de pasto. Projetos de mineração, de produção de agrocombustíveis, de construção de barragens e até mesmo de parques eólicos são, segundo ela, iniciativas em andamento sobre as quais pairam muitas dúvidas. "Existem muitos empreendimentos pensados para áreas dessas comunidades, a respeito dos quais há poucas informações", diz.

Atualmente, um dos casos mais polêmicos é a criação do Parque Nacional do Boqueirão da Onça, encampada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA). Perfazendo 862 mil hectares, a proposta, ainda em estudo, atinge parte considerável de cinco municípios – incluindo áreas de fundo de pasto – e prevê a desapropriação dos imóveis dentro de seu perímetro. "Sempre que possível, evitou-se a inclusão de áreas com potencial agrícola, assim como aquelas ocupadas por comunidades rurais", justifica o órgão. "Entretanto, alguns povoamentos situados no centro da área não puderam ser excluídos."

No passado, as próprias pessoas de Areia Grande já foram afetadas por um grande projeto – a Usina Hidrelétrica de Sobradinho, cuja barragem inundou parte das áreas ocupadas e obrigou diversos moradores a se mudar para agrovilas construídas em Serra do Ramalho (BA). Ironicamente, passados mais de 30 anos, as comunidades locais permanecem sem acesso à eletricidade, a poucos quilômetros do reservatório da usina. Sobre suas casas passam os cabos que levam a energia de Sobradinho ao Piauí.

No relato de membros das comunidades de fundo de pasto, a falta de eletricidade não é a única lacuna de infraestrutura e atuação do poder público. Burocracia para acessar recursos e programas governamentais e a ausência de políticas de crédito condizentes com o modelo de produção desses grupos são outros entraves citados. E mesmo quando o Estado chega, há reclamações – relacionadas, por exemplo, à introdução de raças para o melhoramento genético do rebanho não adaptadas ao pastoreio solto na caatinga.

Além da criação de animais e das roças de subsistência, a produção de mel e o extrativismo de frutas típicas são outros dois exemplos de atividades eventualmente realizadas nos fundos de pasto. Contudo, segundo José Edmilson dos Santos, membro da Articulação Estadual de Fundos de Pasto, quando o assunto são as ações governamentais de fortalecimento produtivo, falta capacitação às famílias para a continuidade dos projetos. "Existem hoje muitas casas de farinha, fábricas de costura e padarias quebradas ou fechadas nas comunidades", ressalta. Em geral, diz ele, sempre é preciso recorrer ao poder público para, por exemplo, consertos e reposição de peças. "As coisas são feitas de forma que a comunidade fique eternamente dependente."

Cenário semelhante remete à delicada questão do acesso à água. Apesar de avanços nas últimas décadas, há ainda, segundo Santos, um déficit de políticas consistentes em benefício do sertanejo. Como exemplo, ele cita casos que envolvem a construção de cisternas de baixa durabilidade. "Muitas vezes não são programas que visam acabar com o problema, mas sim propagandear estatísticas."

No semiárido nordestino, armazenar água é estratégia crucial para a sobrevivência das famílias e de seus rebanhos. Historicamente, poços perfurados em locais de água muito salgada ou mesmo açudes públicos construídos com grande perímetro e pouca profundidade – facilitando, assim, a evaporação – são exemplos de obras inadequadas. Além disso, há também uso político das condições climáticas, que inclui o voto de cabresto sustentado em ações emergenciais para os flagelados. "É comum as pessoas se sentirem em dívida com aquele político que lhes mandou um carro-pipa na hora do aperto", conta Moisés das Neves, técnico em agropecuária do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (Sasop) – ONG que executa ações voltadas a agricultores familiares do semiárido.

O histórico de coronelismo é, ainda hoje, um entrave ao desenvolvimento dos fundos de pasto, na opinião de Egnaldo Xavier, gerente da Cooperativa de Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá (Coopercuc) – entidade que reúne 16 grupos do gênero na produção de geleias, doces, sucos e outros alimentos feitos com frutos da caatinga. "Tivemos aqui a Guerra de Canudos, uma experiência de organização coletiva que foi destruída", lembra. Tudo isso, de acordo com ele, dificulta a percepção do associativismo como uma ideia boa.

"Nós, nordestinos, somos muito solidários. Se você precisa de mim eu o ajudo, se adoece eu levo um chazinho e tudo mais. Agora, na hora de desenvolver ações produtivas, é assim: você cuida do seu e eu cuido do meu", ilustra. A Coopercuc conta atualmente com 141 cooperados e vende seus produtos nos mercados interno e externo. "Acreditamos que o trabalho representa hoje um acréscimo de 20% a 30% na renda das famílias participantes", estima Xavier.

Estigma do atraso

Apesar da luta para valorizar os fundos de pasto, é certo que, em muitos corações e mentes, adjetivos como "arcaico" e "obsoleto" permanecem associados a essas populações. No entanto, pesquisa apresentada em 2006 por Fabiano Toni, da Universidade de Brasília, atesta que o uso coletivo das terras pode ser considerado uma estratégia vantajosa ante as peculiaridades do sertão.

Toni entrevistou 549 agricultores em 12 municípios do semiárido baiano, divididos entre pequenos proprietários e criadores de animais em fundos de pasto. Apesar de os primeiros tenderem a um uso ligeiramente maior de tecnologias intensivas, isso não lhes proporcionou uma renda melhor. Segundo o estudo, os membros das comunidades tradicionais desfrutavam de maior segurança alimentar, consumindo mais carne que os pequenos proprietários e seus dependentes.

De acordo com Toni, a explicação é simples: como os agricultores que utilizam terras coletivas investem mais em pequenos animais, eles possuem rebanhos maiores, o que permite abater um ou outro bicho com mais frequência. "Uma cabra ou um carneiro podem ser comidos em alguns dias por uma família, partilhados com os vizinhos ou salgados", explica. "As vacas, por outro lado, precisam ser vendidas no mercado, pois uma família não pode estocar ou consumir toda a carne, mesmo quando possui geladeira."

Apesar dessa vantagem comparativa, no entanto, há uma ameaça cada vez mais urgente na rota da sustentabilidade dos fundos de pasto: a degradação da caatinga. "Os rebanhos aumentaram e muitas terras já foram cercadas. Isso provoca pastoreio excessivo", diz Santos. A despeito das preocupações – visto que a mata nativa é a base da alimentação dos rebanhos –, são ainda embrionárias ações de recomposição florestal que envolvam essas comunidades.

Em 2007, nos municípios baianos de Uauá e Andorinha, a divisão de caprinos e ovinos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) implementou, em fundos de pasto, dois projetos pioneiros de sistema agrossilvipastoril – método que inclui árvores, plantio e pastagens numa mesma área, manejados de forma integrada e racional. Para a pesquisadora Mônica Campanha, da instituição, trata-se de um modelo que pode ser incorporado às políticas de apoio destinadas a essas famílias. "Ele apresenta um elevado custo de implantação, mas é enorme o ganho ambiental", afirma ela.

Revista Problemas Brasileiros

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