sábado, 5 de setembro de 2009

A forte economia mineira chilena e a herança de Salvador Allende

por Pedro Dantas*


No atual contexto geopolítico da América Latina, duas questões estão permanentemente na pauta das discussões. A primeira é a necessidade de cuidados de preservação ambiental e de políticas que valorizem os recursos naturais da região em prol do desenvolvimento social de suas populações. Outra questão discutida é a eficiência e a legalidade dos processos de nacionalização que são adotados por governos mais ousados, como o de Hugo Chávez na Venezuela e Evo Morales na Bolívia.


Salvador Allende
Salvador Allende Zurkovich (26/6/1908 - 11/9/1973) foi um político chileno. Médico, socialista e adepto das teorias do marxismo, foi eleito democraticamente presidente do Chile em 4 de novembro de 1970. Governou com ampla aceitação pública até 11 de novembro de 1973, quando foi deposto pela junta militar chilena. O Golpe colocou no poder o Comandante em Chefe do Estado Chileno, Augusto Pinochet, no Palácio de la Moneda. Em vida, Allende tentou implementar uma estratégia política e econômica e socializar a economia chilena, fazendo a reforma agrária e nacionalizando indústrias. Sua morte é cercada de uma nuvem de mistério. Alguns, como sua filha, acreditam que ele se suicidou no Palácio com uma arma que lhe fora dada por Fidel Castro. Outros creem que ele foi assassinado pelas forças militares invasoras no momento do Golpe Militar.


A importância da indústria estatal para a receita pública muito embora a atual tendência econômica neoliberal leve a um caminho contrário. Pensemos no papel que tem a Petrobras para a saúde monetária do Estado brasileiro. Um exemplo emblemático da importância que uma indústria estatal forte pode exercer e um país é evidente, na economia de um país e o contraste que esta pode chegar a uma semelhante privada é o que se pode observar na atual economia chilena entendida como exemplo de economia neoliberal bem-sucedida na América Latina.

O primeiro que se deve saber para entender a economia chilena é que ela é basicamente mineira, alicerçada na extração do cobre. E também que o cobre é a segunda riqueza natural mais vendida no mercado internacional, atrás apenas do petróleo. É importante saber também que a região mais rica em cobre do país é justamente o extremo norte, conquistado da Bolívia e do Peru durante a Guerra do Pacífico, ainda no século XIX. Aquela famosa guerra que deixou a Bolívia sem saída ao mar. Hoje quando se discute o direito boliviano a um porto livre no Pacífico se esquece da imensa riqueza natural que o país perdeu no conflito.

Na época do conflito, o Chile era um país que incorporava os preceitos liberais, enquanto o governo boliviano pretendia começar a cobrar impostos das companhias salitreiras inglesas e estadunidenses. Com apoio inglês, os chilenos venceram o conflito. Na mesma região conquistada pelo Estado chileno nesta guerra, algumas décadas depois, descobriram-se imensas reservas de cobre. A principal delas é Chuquicamata, a maior mina de cobre a céu aberto do mundo.

Em 1971 as riquezas dessa mina, junto às outras quatro grandes minas em exploração na época, foram revertidas ao Estado chileno graças à nacionalização promovida por Salvador Allende . A nacionalização teve como base a resolução 1803 da XVII Assembleia Geral das Nações Unidas, de 14 de dezembro de 1962, chamada Sobre a Soberania Permanente dos Recursos Naturais. Nela se reconhece o direito inalienável de todo Estado dispor livremente de suas riquezas naturais de maneira conforme interesses nacionais e em respeito à independência econômica dos Estados.

O economista chileno Julian Alcayaga Olivares, especialista na questão mineira, ressalta: "para se ter uma idéia da importância da nacionalização, em 2004 a CODELCO (Corporación Nacional del Cobre criada oficialmente em 1976 a partir da junção das cinco grandes minas nacionalizadas por Salvador Allende em 1971) rendeu aos cofres públicos através de impostos seis vezes mais do que a soma de impostos pagos pelo conjunto das mais de 10.000 empresas privadas existentes no país, incluindo as demais empresas mineiras, pesqueiras e madeireiras, os bancos, companhia de seguros, etc. Vale ressaltar que a soma da produção dessas empresas é duas vezes mais que a da CODELDCO.

Hoje, há documentos que comprovam que a nacionalização do cobre promovida por Allende foi o principal motivo da ingerência estadunidense que apoiou o golpe militar de 73, que levou Allende à morte e instaurou a política de terror e violação de direitos humanos comandada por Augusto Pinochet. O mais importante de se notar é que a importância da nacionalização era tamanha que Pinochet não voltou a privatizar as minas estatais deixadas por Allende.

No Chile, existe um total de 47 empresas multinacionais mineradoras. Nos últimos 12 anos, as multinacionais de cobre levaram do Chile 23 milhões de toneladas do mineral, o que representa um valor de 43 bilhões de dólares, e não pagaram impostos. As empresas privadas exploram hoje 2/3 do cobre extraído do país.

"Uma dona de casa que compra menos de um quilo de pão paga imposto, mas as mineradoras multinacionais não pagam."
Ricardo Lagos, ex-presidente do Chile


Ao contrário, mesmo frente às pressões internas e externas para 'desnacionalizar' o cobre, em 1976 o governo militar criou a CODELCO a partir da fusão das cinco grandes minas nacionalizadas por Allende em uma única grande empresa estatal. Pinochet indenizou as multinacionais nacionalizadas, o que até então não ocorrera, e criou decreto-lei que determina que 10% do lucro da CODELCO seja diretamente revertido às forças armadas chilenas. Paralelamente, os novos investimentos na mineração não apenas voltaram a ser permitidos ao capital privado e estrangeiro, mas o Estado chileno, aos poucos, passou a oferecer regalias ao investidor privado." Assim, hoje, no Chile aquela empresa que demonstre prejuízo em seu balanço anual, seja por pagamento de dívidas ou qualquer tipo de prejuízo inclusive fora do território chileno, fica isenta de impostos.

Graças a esse benefício, em 2004 a Comissão Especial de Tributação do Senado afirmou que entre 1995 e 2002 as mineradoras estrangeiras não pagaram nenhum dólar de imposto de renda ao Estado chileno, com exceção da Mineradora Escondida e Mantos Blancos S.A., que contribuíram em duas oportunidades.

O próprio presidente chileno à época, Ricardo Lagos, disse em um programa de televisão que "uma dona de casa que compra menos de um quilo de pão paga imposto, mas as mineradoras multinacionais não pagam". No Chile, existe um total de 47 empresas multinacionais mineradoras. Nos últimos 12 anos, as multinacionais de cobre levaram do Chile 23 milhões de toneladas do mineral, o que representa um valor de 43 bilhões de dólares, e não pagaram impostos. As empresas privadas exploram hoje 2/3 do cobre extraído do país.

Atualmente, a mineração chilena enfrenta uma questão emblemática que desnuda o tipo de atuação de boa parte das empresas multinacionais privadas na América Latina. Trata-se do projeto minerador Pascua Lama, da companhia canadense Barrick Gold Corporation, que escandaliza não apenas por suas características econômicas que não asseguram nenhum retorno financeiro ao Estado chileno, mas principalmente pelo descaso com o meio ambiente e com as populações que vivem na região onde se pretende extrair ouro. A Barrick Gold é a terceira empresa produtora de ouro no mundo, com minas ativas nos Estados Unidos, Canadá, Peru, Tanzânia e Chile.

Em 1997, representantes dos governos de Carlos Menem, da Argentina, e Eduardo Frei, do Chile, assinaram tratado de acordo binacional sobre mineração. O acordo permite que empresas estrangeiras desenvolvam projetos em jazidas que se encontrem em regiões fronteiriças. Pascua Lama é o primeiro grande projeto a fazer uso desse tratado. A Barrick Gold pretende explorar uma mina a céu aberto, onde além de ouro, obterá também prata, cobre e outros metais secundários. A mina está localizada na fronteira entre o deserto chileno de Atacama e a província de San Juan, na Argentina. O processo de mineração prevê utilização de substâncias altamente perigosas, como o cianureto.

Em fevereiro de 2006, a companhia conseguiu aprovar no Chile seu estudo de impacto ambiental e, em dezembro de 2007, obteve também autorização das autoridades da província de San Juan, na Argentina. Apesar disso, os ambientalistas afirmam que o cianureto e os demais resíduos da mina, por meio de drenagens ácidas, contaminarão as reservas de água da região. Desde o alto da cordilheira dos Andes, com nascente próxima à mina, flui ao Pacífico o rio Huasco. O vale desse rio é um verdadeiro oásis no deserto do Atacama e a região produz o melhor pisco do país, maçã e uva para exportação, além de outras frutas e verduras que abastecem o mercado local. São 70 mil habitantes que seriam diretamente afetados no caso de uma eventual contaminação.


Em Santiago é comum a ação policial com bombas de gás lacrimogêneo e carros pipa reprimindo as manifestações sociais e estudantis. Assim mesmo, a herança deixada por Allende com a nacionalização deixa aos cofres públicos ainda hoje seis vezes mais do que a soma do ingresso deixado pelas mais de 10.000 empresas privadas existentes no país.

Um dos problemas mais sérios é que no local de exploração da mina está uma enorme geleira, na nascente do rio Huasco. Segundo Lucio Cuenca, diretor do Observatório Latino-Americano de Conflitos Ambientais (Olca), "eles propõem remover a geleira de uma montanha a outra, sem destruí-la. Isso, na minha opinião, é um insulto à inteligência dos chilenos e de todos em geral". A mina utilizará também 370 litros de água por segundo, mais do que a média diária de um cidadão comum do vale Huasco. O projeto prevê um investimento de 950 milhões de dólares e uma vida útil de 20 anos. Porém, vale lembrar que as empresas estrangeiras de mineração que apresentarem perdas em seu balanço anualestão isentas de pagar impostos. Ou seja, se a bilionária Barrick Gold apresentar em sua contabilidade problemas financeiros por gastos com novos investimentos ou pagamento de dívidas, terá isenção tributárias.

O Chile está hoje entre os cinco países do mundo mais confiáveis para o investimento estrangeiro, sua economia cresce a uma media de 5% ao ano. Ao mesmo tempo, o país está entre as 10 piores distribuições de renda do mundo. O grande volume financeiro que as riquezas do país trazem ainda hoje chegam ao Estado graças à ação do "socialista" Salvador Allende. A ousadia do então presidente lhe custou a vida e a liberdade do povo do povo chileno por quase 20 anos. Hoje, a democracia vigente no país não reverteu as leis promovidas pela ditadura militar.

A CODELCO segue deixando 10% de seu lucro às forças armadas e a lei antiterrorista é a mesma da época de Pinochet de forma que muitos líderes sociais, indígenas e políticos estão encarcerados como terroristas. Em Santiago é comum a ação policial com bombas de gás lacrimogêneo e carros pipa reprimindo as manifestações sociais e estudantis. Assim mesmo, a herança deixada por Allende com a nacionalização deixa aos cofres públicos ainda hoje seis vezes mais do que a soma do ingresso deixado pelas mais de 10.000 empresas privadas existentes no país. Codelco representa sozinha mais da metade do ingresso para todo o pouco que o país oferece em serviços públicos de educação, saúde, transporte e cultura.

Será que o processo de nacionalização promovido por governos mais ousados é realmente, como dizem muitos, uma medida populista e irresponsável? Enquanto isso, países de imensas riquezas naturais como Brasil e México ocupam respectivamente os lugares 65 e 55 no ranking IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da ONU. E Cuba, uma minúscula ilha isolada pelas restrições de comércio impostas pelo vizinho gigante, está na 52ª posição.

*Pedro Dantas é documentarista e jornalista. Diretor do documentário KollaSuyo - A Guerra do Gás. Atualmente prepara o lançamento do documentário La Moneda, sobre as características da rica economia mineira chilena. www.ondeestaamericalatina.com

Revista Geografia

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