domingo, 30 de agosto de 2009

Como enfrentar o protecionismo

A onda de fechamento de mercados que toma conta do mundo é perigosa e merece ser confrontada pelo Brasil - e há um jeito certo de fazer esse combate

Christopher Furlong/Getty Images Ingleses protestam contra o emprego de estrangeiros: volta do nacionalismo


Angela Pimenta e Roberta Paduan
De tempos em tempos, quando a economia global adoece, como agora, uma infecção oportunista - o protecionismo - começa a se manifestar pelo mundo todo. Nesse quadro, é comum ver empresários reivindicando barreiras contra produtos importados e trabalhadores gritando contra o emprego de imigrantes estrangeiros. Governos, que dependem de votos tanto de trabalhadores quanto de empresários, tendem a ceder às reivindicações. O passo seguinte normalmente é a adoção de medidas que interrompem o fluxo normal do comércio, transformando-se em distorções econômicas com efeitos potencialmente destrutivos. "Na década de 30, o protecionismo levou ao nacionalismo e à Segunda Guerra", disse o vice-chanceler britânico, Mark Malloch Brown, a EXAME. De fato, enquanto eram castigados pela profunda recessão que sucedeu à queda da bolsa em 1929, os Estados Unidos aumentaram os impostos de importação de 20 000 produtos. O resultado foi uma reação em cadeia dos europeus,
barrando a entrada de produtos americanos. Três anos depois, as exportações e importações americanas tinham caído mais de 60% e a crise virou a Grande Depressão. Passadas quase oito décadas, o mundo começa a flertar com os mesmos erros. Desde que a crise americana começou a afetar outras economias, o vírus protecionista voltou a atacar em escala planetária e tornou-se uma ameaça à globalização. Ele também é mais uma ameaça ao comércio mundial, já enfraquecido pela crise - a previsão é que, após 27 anos consecutivos de crescimento, as trocas entre os países declinem em 2009.


Infiltradas em pacotes de estímulo econômico ou infringindo descaradamente regras básicas do comércio internacional, investidas protecionistas se multiplicaram nos últimos meses. Nos Estados Unidos, maior parceiro comercial do Brasil, o governo Obama lançou um pacote de quase 800 bilhões de dólares, incluindo as controversas cláusulas buy american (algo como "compre produto americano"), com o intuito de gerar pelo menos 3 milhões de empregos. Na prática, foram inicialmente estabelecidos benefícios fiscais a empresas americanas que preferirem ferro, aço e outros itens produzidos no país. A iniciativa gerou protestos no mundo todo, e Obama decidiu retirar do pacote as restrições às empresas europeias e canadenses, que ameaçaram abrir processo contra os Estados Unidos na Organização Mundial do Comércio. No mesmo rumo, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, aprovou ajuda de 6,5 bilhões de euros para montadoras, recomendando que as beneficiadas investissem dentro da França para criar ou manter empregos no país. A crise ainda gerou uma nova variedade de vírus protecionista, o que a revista The Economist chama de "nacionalismo econômico". Trata-se da recusa, seja por incapacidade financeira, sejam por restrições deliberadas, de os bancos de países ricos emprestarem aos do mundo em desenvolvimento. Foi justamente esse corte repentino no crédito o principal canal de contágio da crise global no Brasil. O presidente do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Kahn, se diz preocupado com o fato de, ao capitalizar bancos em dificuldades, os governos do Primeiro Mundo instruírem os banqueiros a manter o dinheiro em casa.

Para o Brasil, os efeitos comerciais mais diretos estão sendo provocados pelas medidas impostas pela Argentina, segunda maior importadora de produtos brasileiros. Lá, o protecionismo ressurgiu inicialmente sob o disfarce da burocracia: o governo da presidente Cristina Kirchner promoveu aumento de alíquotas de importação e ampliou o número de produtos que precisam de licença para entrar no país. O documento está dentro das regras da OMC, mas vem sendo emitido com prazo superior ao máximo de 60 dias fixado pelo órgão. O setor calçadista brasileiro tem sido um dos mais afetados. "Muitos clientes cancelaram pedidos por causa dos atrasos, pois os sapatos seguem as estações do ano e têm tempo certo para ser vendidos", diz Paulo Tigre, presidente da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul. Para tentar resolver o impasse, argentinos e brasileiros travam intensas negociações. Depois de um primeiro encontro em Brasília, em fevereiro, mais duas reuniões de alto nível estão marcadas para São Paulo e Buenos Aires. De sua parte, os argentinos dizem não poder suportar a competitividade brasileira. Irritado com a resistência argentina em manter as barreiras aos produtos brasileiros, o secretário de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Welber Barral, ameaça acionar a OMC. "Em 2008, as barreiras argentinas causaram prejuízo de 1,5 bilhão de dólares aos exportadores brasileiros", diz Barral.


Num ambiente em que governos de vários países, incluindo os mais desenvolvidos, agem de maneira protecionista, o que é melhor fazer? Aderir à onda ou lutar contra ela? Há, no leque de reações possíveis, formas mais ou menos inteligentes de lidar com o problema? Com a experiência de quem foi embaixador brasileiro em Londres e em Washington, o ex-diplomata Rubens Barbosa avalia que há, sim, alternativas boas e más entre as opções. "O protecionismo é ruim para todo mundo no longo prazo e o Brasil precisa afirmar sua posição contrária a ele", diz. "Mas também é necessário saber se defender." Nesta fase, em que o problema se dissemina com força no mundo, é recomendável que o governo monitore com frequência redobrada e com lente de aumento poderosa todo o movimento de importações e exportações. O Brasil conta com mais de uma centena de especialistas distribuídos pelos ministérios das Relações Exteriores e do Desenvolvimento, além da Apex, agência de promoção comercial brasileira. No âmbito do Itamaraty, além de um time de 40 profissionais do departamento comercial, o governo mantém diplomatas espalhados pelo mundo, atentos ao surgimento de barreiras a produtos brasileiros. O país tem ainda uma série de entidades de classe na iniciativa privada que podem ajudar com informações. "Esse trabalho técnico é fundamental, pois é preciso saber o que ocorre com milhares de produtos vendidos em inúmeros países", diz Barral. "Além disso, muitas vezes o protecionismo é disfarçado, o que torna o trabalho de acompanhamento ainda mais difícil - e importante."

Caso sejam identificadas práticas de concorrência desleal, a saída é reagir, mas sempre obedecendo às normas internacionais. O melhor caminho é usar a favor as regras e os foros de solução de conflitos de organismos como a própria OMC, como o Brasil já fez no passado, obtendo vitória contra os europeus no mercado de açúcar. Também não vale deflagrar uma guerra comercial por um problema localizado num único setor, já que isso só faz crescer o problema. "Não adianta partir para o simples olho por olho, dente por dente, pois a criação de barreiras às importações pode prejudicar ainda mais as empresas locais", diz Mário Marconini, presidente do Conselho de Relações Internacionais da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Essa visão, de que as relações internacionais são complexas e devem ser tratadas com cautela, foi o que moveu muitos empresários brasileiros em janeiro a reclamar quando o governo impôs licenças prévias de importação para produtos de 17 setores que representam mais de 60% das compras externas do país. Diante da medida rudimentar, os protestos foram imediatos, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva logo a revogou, praticamente se desculpando pela barbeiragem de sua equipe. Os empresários "insurgentes", que fizeram a pressão nesse episódio, são os que aprenderam que a globalização é uma via de duas mãos. No curto prazo, a restrição às importações pode trazer algum benefício, mas no médio e longo prazo as próprias empresas locais sofrem prejuízos, pois não conseguem obter por preço razoável insumos sem os quais perdem competitividade. Além disso, o comportamento atabalhoado deve ser evitado porque suja a imagem do país.


Uma regra de ouro, portanto, é nunca fechar o mercado levantando barreiras acintosas com alíquotas ou cotas restritivas - a menos que sejam identificadas práticas claras de concorrência desleal, como o dumping, por parte de empresas de outros países. "Em vez de fechar as fronteiras, é melhor o governo tentar ajudar os setores produtivos a ser mais competitivos e estimular o consumo doméstico", afirma Ricardo Mendes, da Prospectiva, consultoria especializada em relações internacionais. É o que vem sendo feito, com pacotes de centenas de bilhões de dólares, na China e em países europeus, além dos Estados Unidos. No Brasil, parte disso está se concretizando via aportes do BNDES e cortes de impostos que tornam os produtos caros para os consumidores brasileiros ou reduzem sua competitividade no mercado externo. Bons projetos de infraestrutura são preciosos para facilitar o escoamento dos produtos - que poderão chegar a preços melhores nos mercados lá fora. Há mais a fazer nessa linha. "O Brasil pode usar a desoneração tributária e a melhoria de crédito aos exportadores para dar competitividade aos setores prejudicados", diz André Nassar, presidente do Icone, um centro de estudos do comércio internacional mantido por associações do agronegócio.

Não é de hoje que medidas de proteção seduzem cidadãos e políticos. Mas já há consenso, na literatura econômica, de que o estímulo provocado por medidas dessa natureza se limita ao curto prazo. No longo prazo, países mais fechados tendem a crescer menos e a ver sua indústria ficar para trás. Alguns economistas consideram positiva a proteção à chamada "indústria nascente" - quando os países elegem algum novo setor para apoiar, e mesmo assim por tempo limitado. "Na história recente, os exemplos de proteção adotados por Japão, Coreia do Sul e Suécia demonstram que esse é o caminho para desenvolver negócios inovadores em seu estágio inicial", diz o economista sul-coreano Ha-Joon Chang, da Universidade de Cambridge. Mas, embora um alto nível de competição possa ser fatal para negócios jovens, a ausência de competição - por meio do protecionismo continuado - também é letal para a inovação e a produtividade.

Parte do agronegócio europeu é exemplo disso. O custo da carne produzida no Velho Continente é significativamente maior que o do Brasil. No entanto, a Europa impõe limites de volume às importações, impedindo a expansão das compras de países como o Brasil. Pior: a União Europeia só autoriza a compra de carne brasileira industrializada, alegando riscos sanitários para impedir a entrada do produto in natura. Muitos consideram que isso é, na verdade, um artifício para favorecer produtores locais. "Sob o disfarce de precauções sanitárias ou de querer proteger o meio ambiente e os direitos trabalhistas, muitas dessas barreiras visam neutralizar a competição que eles exercem sobre os mercados desenvolvidos", diz o economista Jagdish Bhagwati, da Universidade Columbia, uma autoridade mundial em comércio. Segundo ele, as barreiras não tarifárias são a forma mais perversa de protecionismo praticado por países ricos. A saída, diz, é centrar esforços em novas rodadas de liberalização comercial - que hoje parecem cada vez mais distantes.

Diante das dificuldades para concluir a Rodada de Doha, da OMC, a principal negociação global em curso, uma nova tendência são os acordos setoriais. "O futuro do comércio internacional passa necessariamente por esse tipo de acordo", diz o ex-ministro do Desenvolvimento e ex-embaixador Sérgio Amaral. "Por serem menos ambiciosos, eles são muito mais viáveis." Tais acordos consistem na reunião de setores produtivos afins de um ou mais países para negociar a liberalização do comércio, com redução gradual de tarifas. No Brasil, setores competitivos, como o de minérios, vidros planos e pedras como granitos, já demonstraram estar abertos a esse tipo de negociação com outros países. Para Otto Nogami, professor de mercado econômico global do Ibmec São Paulo, esta seria também a hora de o Brasil retomar uma agenda que ficou para trás: a dos acordos bilaterais de país para país. "Eles funcionam como uma via de mão dupla, com concessões em troca de concessões, o que pode ser útil contra o protecionismo e facilitar o comércio", diz.

É incontestável que a globalização amplifica a concorrência e as crises econômicas, como a atual. O trabalhador de uma fábrica brasileira pode perder o emprego se consumidores na Europa ou nos Estados Unidos deixarem de comprar o produto que ele fabrica. Ocorre que os benefícios proporcionados pela globalização são igualmente inegáveis. O aprofundamento da integração comercial e financeira na década de 90 promoveu uma aceleração no crescimento de países em desenvolvimento acima da média global. Como resultado disso, diminuiu a extrema pobreza e a classe média no mundo aumentou quase 70% em 15 anos, o maior avanço registrado desde a revolução industrial. O país que melhor aproveitou a intensificação do comércio internacional, a China, conseguiu reduzir de 28% para 9% o número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. É esse tipo de progresso que pode ser perdido caso os atuais governantes insistam em práticas protecionistas e decidam retroceder na globalização. No fundo, o protecionismo está para as relações internacionais como o egoísmo para as relações humanas. O egoísta quer ganhar sempre e só respeita as regras quando está ganhando. O problema é que nem sempre é possível que todos ganhem. E também não é possível haver jogo se os jogadores quiserem mudar as regras quando perdem.

Revista Exame - 03.2009

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