domingo, 30 de agosto de 2009

A China encara a crise

O combate seus efeitos ao estilo de Pequim: um pacote de 586 bilhões de dólares, estímulo ao consumo e obras monumentais. O resto do mundo torce para que funcione

Zhang Wei/AFP Em Pequim, 30 000 pessoas buscam trabalho numa feira de recolocação: o desafio de gerar empregos

Luciene Antunes, Fabiane Stefano e Tiago Maranhão
"Negócio da China" é uma expressão gasta que caracterizava bem o curtume Vitapelli. A empresa foi criada em 2000 e, num período de sete anos, seu faturamento saiu de zero para 180 milhões de dólares. As taxas de crescimento nunca ficavam abaixo dos dois dígitos anuais. A produção e o número de funcionários multiplicavam ano após anos conforme a demanda crescia. A Vitapelli era uma dessas empresas surgidas no seio da globalização e que se davam bem só graças a ela. Quase metade de seus couros, produzidos em Presidente Prudente, no interior paulista, viajava 19 000 quilômetros até chegar à cosmopolita Xangai, o centro financeiro da nova China. Lá, eles viravam a principal matéria-prima da Natuzzi China Limited, subsidiária da fabricante italiana de móveis Natuzzi.

A Vitapelli foi um sucesso enquanto o ciclo de crescimento que alimentou a globalização funcionou. Nos últimos meses, os telefonemas da Natuzzi China aos vendedores de Presidente Prudente rarearam. A produção de móveis foi reduzida à medida que os consumidores americanos - o grande mercado da empresa - deixaram de comprar novos sofás para a sala de estar e passaram a se preocupar com o emprego e as contas a pagar. A Natuzzi teve de reduzir o número de funcionários em Xangai. Como numa onda, a Vitapelli demitiu 60% de seus quadros nos últimos meses. A história se repete em Portão, cidade de 30 000 habitantes no Rio Grande do Sul. A produtora de couros AP Müller diminuiu 80% de sua produção nos últimos meses. Seu principal cliente é a Sunex, fabricante de cintos e bolsas instalada na região do Cantão. "Só voltaremos a comprar mais do Brasil quando a situação melhorar", diz James Wu, presidente da Sunex. "Nosso destino sempre esteve muito ligado aos chineses e, agora, nossa recuperação depende deles", diz Cezar Müller, dono da AP Müller.



Eis um quadro que vai muito além de um mero problema setorial. Nos últimos anos, a existência e o crescimento de várias empresas, no Brasil e no mundo, foram vinculados à China. Com sua abundância de commodities, o Brasil foi um dos grandes beneficiados pelo crescimento chinês. Em 2008, o país foi nosso segundo maior parceiro comercial, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. No final da década de 80, a China importava do Brasil por ano o mesmo volume de mercadorias que o Paquistão nos dias de hoje. No ano passado, comprou 16,4 bilhões de dólares em produtos nacionais, sobretudo minério de ferro e soja. O minério - sobretudo o da Vale - sustentou as formidáveis obras de infraestrutura; a soja, a inclusão de milhões de chineses miseráveis no mercado consumidor. Em troca, a China despejou no Brasil uma relação de produtos que iam de máquinas pesadas a quinquilharias eletrônicas. Em duas décadas, as importações de mercadorias chinesas cresceram 12 000%. "A China é hoje quase uma economia complementar à brasileira", afirma Cláudio Haddad, presidente da escola de negócios Ibmec São Paulo.

Os economistas de Pequim gostam de comparar a China a um elefante numa bicicleta. Ele só se equilibra se conseguir pedalar rapidamente. Caso contrário, pode cair. "E aí a Terra treme", conclui o jornalista britânico James Kynge em seu livro A China Sacode o Mundo. O mundo teve dois grandes motores de crescimento nos últimos anos. O principal deles, os Estados Unidos, parou. Resta a China. E é por isso que, hoje, os olhares do mundo se dividem entre o que Barack Obama faz na Casa Branca e o que os sucessores de Deng Xiaoping decidem no Palácio do Povo. Nem mesmo os mandarins do Partido Comunista Chinês, hábeis fabricantes de estatísticas, desmentem que o elefante diminuiu o ritmo das pedaladas. Neste ano, segundo estimativas do governo, a China crescerá 8%. O Fundo Monetário Internacional projeta 6,7%. Trata-se de uma enormidade diante dos índices deprimentes de países europeus, do Japão ou dos Estados Unidos. Mas não deixa de ser um número preocupante para um país que precisa incluir 24 milhões de pessoas por ano no mercado de trabalho. Uma queda de três ou quatro pontos percentuais no PIB chinês significa cenas como a da feira de recolocação de desempregados, recentemente ocorrida em Pequim e que recebeu 30 000 pessoas em apenas dois dias. Significa produção menor e redução de compras de matérias-primas, afetando diretamente economias como a brasileira.

No final do primeiro semestre de 2008, a indústria brasileira de celulose comemorou um aumento de 90% nas vendas em relação ao mesmo período de 2007. Os fabricantes de embalagens chineses foram fundamentais para esse resultado. Em agosto, a festa transformou-se em apreensão. Clientes ocidentais reduziram as compras na China. A demanda por embalagens caiu imediatamente - assim como a de celulose brasileira. O ano fechou com um crescimento de 60% nas vendas do produto. Mas com o número veio a dúvida: se os chineses, responsáveis por 17% das exportações brasileiras de celulose, não se recuperarem, como será 2009?

Uma diminuição brusca no crescimento do PIB chinês significa também que eles se tornarão mais agressivos diante do mercado global - um argumento a mais para os defensores do protecionismo. Em janeiro, as exportações totais chinesas caíram 17,5%, o pior resultado na última década. A reação dos fabricantes foi tentar desovar seus estoques de produtos longe dos mercados mais afetados pela crise. O Brasil é um dos alvos preferenciais. No setor de calçados, o volume de importações cresceu 35% apenas em janeiro. "A maior parte dessa enxurrada anormal de produtos do exterior veio da China", afirma Milton Cardoso, presidente da Vulcabras/Azaleia, um dos maiores fabricantes nacionais do setor. Com 80% das vendas concentradas no mercado brasileiro, a Vulcabras/Azaleia sentiu o golpe. No fim do ano, devido aos estoques em alta provocados pela falta de compradores, a empresa concedeu férias coletivas de 20 dias a seus 31 000 funcionários. Nas primeiras semanas de fevereiro, foi obrigada a repetir a dose com um grupo de 2 300 empregados. "Se o cenário não mudar, teremos de adotar medidas mais radicais", diz Cardoso. Outros fabricantes já recorreram a esse remédio amargo. No último trimestre de 2008, o setor calçadista demitiu 40 000 pessoas.

A turbulência que vem ocorrendo na China mostra como a crise atual tem sido devastadora sobre os prognósticos apressados e demasiadamente otimistas. Quando o vendaval financeiro começou a corroer as estruturas das economias dos Estados Unidos e de boa parte da Europa, alguns analistas chegaram a sustentar que a China não só poderia escapar dos problemas como seria capaz de substituir as tradicionais forças capitalistas ocidentais na função de locomotiva encarregada de puxar o crescimento mundial. A tese do "descolamento" continha o erro básico de subestimar o grau de dependência da China em relação aos mercados internacionais. Desde o início de seu processo de abertura, há 30 anos, a economia moderna da China foi concebida dentro do modelo da globalização. A conquista de mercados internacionais por seus produtos é um dos pilares de sustentação do modelo de crescimento do país. O fato de as exportações responderem atualmente por mais de um terço do PIB chinês representa a prova eloquente da missão cumprida à risca.

Agora, quando os seus principais parceiros comerciais já baixaram na UTI financeira, não há como o governo de Pequim construir uma grande muralha para evitar o contágio. A dúvida é quão profundo ele será e em que medida o Estado chinês será eficiente para combater seus efeitos. "Existe uma onda de pessimismo ao redor do desempenho da China, mas ainda é muito cedo para avaliar a extensão da crise no país", afirmou a EXAME o economista Tarun Khanna, professor da Universidade Harvard e autor do livro Bilhões de Empreendedores, que retrata a ascensão de China e Índia no cenário internacional.

A onda de pessimismo a que Khanna se refere está baseada em números bem menos impressionantes do que os apresentados no passado recente. O ritmo de crescimento da produção industrial era três vezes maior em março de 2008 em comparação a dezembro do mesmo ano. A inflação alta, fruto dos tempos em que o crescimento vigoroso da economia pressionava os preços, deixou de ser um problema. A ameaça agora é a deflação. A taxa de desemprego deve chegar, segundo o governo de Pequim, a 4,6% até o final deste ano, o nível mais alto da década (veja quadro na pág. 23). Baixa em comparação à maioria dos países desenvolvidos, essa taxa já vem provocando pequenas ondas de protesto, vistas com preocupação num governo que tenta esquecer o episódio da Praça da Paz Celestial, em 1989. Províncias como Guangdong e Zhejiang, que ocupavam legiões de trabalhadores na produção de todo tipo de mercadoria destinada à exportação, sofrem mais. Calcula-se em mais de 100 000 o número de fábricas, de diversos setores, que fecharam as portas no ano passado. Por causa disso, cerca de 20 milhões de trabalhadores migrantes perderam o emprego e tiveram de retornar à sua cidade de origem, na zona rural do país. "Nos centros mais modernos e desenvolvidos, porém, esse tipo de problema ainda não ocorreu", afirma Marcos Caramuru, cônsul-geral do Brasil em Xangai.

A principal fonte da turbulência que aflige a China é externa. Os Estados Unidos e a Europa estão em ponto morto, assim como seus principais vizinhos da Ásia, um mercado estratégico para os chineses. No último trimestre de 2008, Japão, Singapura, Coreia do Sul e Taiwan começaram a acumular claros sinais de recessão. Os recém-divulgados dados sobre o desempenho japonês no último trimestre de 2008 revelaram uma retração de 3,3% do PIB, a pior desde a crise do petróleo, ocorrida há mais de 30 anos. "A queda na demanda mundial já era esperada, mas ninguém previa baixas dessa magnitude", diz a economista Linda Yuen-Ching Lim, professora especialista em mercados asiáticos da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.

Em razão da importância da economia chinesa para as engrenagens do mundo globalizado - o país é responsável hoje por 8% do comércio internacional -, os passos dos mandarins de Pequim são objeto hoje de quase tanta atenção quanto as primeiras decisões de Barack Obama no comando dos Estados Unidos. E a reação chinesa chegou com a mesma velocidade com que novas ferrovias e prédios são erguidos no país. No final do ano passado, o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, anunciou um pacote de estímulo econômico de 586 bilhões de dólares. Os recursos, que deverão ser empregados ao longo dos próximos dois anos, vão principalmente para projetos de infraestrutura e incentivos ao consumo (veja quadro na pág. 25). Recursos estão sendo alocados em áreas sensíveis, como meio ambiente, pesquisa e desenvolvimento tecnológico e saneamento básico. Com isso, o governo tenta, ao mesmo tempo, combater a inércia econômica e calar os críticos de plantão. A prioridade é o emprego, fundamental para que o mercado interno possa substituir parte das vendas para o exterior. Emprego e renda estão na base de sustentação do que o Partido Comunista Chinês chama de projeto de uma sociedade harmoniosa, uma combinação da prosperidade do capitalismo com a disciplina e o controle socialistas. Dias após o anúncio do plano, apareceram as primeiras fotos de operários chineses em ação na construção de uma ferrovia de 17,6 bilhões de dólares que cruzará o deserto no noroeste do país. Nos próximos dois anos, se tudo der certo, serão construídas mais de 70 grandes obras. Entre as mais impressionantes - pelo porte e pela velocidade de execução dos projetos - estão uma malha ferroviária de carga na província de Shanxim e uma linha de trem para passageiros ligando Pequim a Guangzhou. Custo dos dois projetos: 46 bilhões de dólares. Foi mais ou menos o que os Estados Unidos aportaram no Citi. "O governo está repetindo a estratégia de recuperação que colocou em prática durante a crise asiática dos anos 90", disse a EXAME Jianmao Wang, professor de economia na escola de negócios China Europe International Business School (Ceibs). "A vantagem é que hoje a China é mais rica, com cerca de 2 trilhões de dólares em reservas estrangeiras."

O número mágico a ser perseguido na economia da China em 2009 é 8%. Ele vem sendo repetido feito um mantra pelas autoridades do governo de Pequim desde os primeiros sinais da chegada da crise ao país. "Faremos o que for necessário para garantir um crescimento de 8% neste ano", afirmou Wen Jiabao, numa entrevista recente ao jornal inglês Financial Times. Esse índice de evolução do PIB - contestado por muitos analistas - é considerado o número mínimo para garantir paz social. "A população, que se acostumou com um longo período de quase 30 anos de crescimento robusto, pode se ressentir se ocorrer uma retração", diz Marvin Zonis, professor da escola de negócios da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos.

Embora exista alguma polêmica por parte dos analistas internacionais em torno da dosagem de algumas medidas recentes e nos detalhes das estratégias adotadas, há quase um consenso a respeito do acerto dos chineses nas políticas macroeconômicas ao atacar desde já os problemas sem poupar esforços. E, pelo menos por enquanto, os chineses não se depararam com bancos falidos, ativos tóxicos e numerosos setores agonizantes. "A criação de empresas e os investimentos em áreas como saúde, agricultura, biotecnologia e microfinanças, que são setores mais imunes à demanda externa, não pararam na China. Pelo contrário, continuam crescendo", afirma Tarun Khanna, da Universidade Harvard.

Parece inquestionável que a China caminhe para ser um país com uma classe média. A recessão mundial deve retardar esse processo, mas não para sempre. O que Pequim tenta fazer hoje - com repercussões em todo o mundo - é garantir que esse adiamento seja o mais curto possível. Hoje, a classe média chinesa é composta de cerca de 150 milhões de pessoas. Segundo um estudo do McKinsey Global Institute, esse número deve quadruplicar até 2025. Quase sempre que são estimulados a ir às compras, os chineses respondem de forma impressionante. Exemplo disso ocorreu em janeiro, quando o governo reduziu pela metade os impostos sobre a compra de carros com motores abaixo de 1.6 litro. Ao fim de um mês, as vendas já haviam subido 4,4%, chegando a 610 600 carros. Com isso, pela primeira vez na história, a China superou as vendas nos Estados Unidos, que foram de 522 000 unidades em janeiro. A pior crise do setor automotivo americano, cuja atividade chegou ao menor nível dos últimos 26 anos, contribuiu para o resultado. Mas não deixa de ser emblemático o fato de os chineses desbancarem os consumidores do país que criou os drive-in, os muscle cars, as freeways e todos os outros elementos da cultura de adoração aos motores.

A reação dos chineses à redução de impostos para carros explica o otimismo em torno dos efeitos possíveis do pacote de 586 bilhões de dólares, dentro e fora da China. O país assombrou o mundo em 2008 ao organizar os Jogos Olímpicos mais caros da história - um investimento de 40 bilhões de dólares. O pacote de estímulo ora em vigor é mais de 14 vezes maior. Ao lado das obras de infraestrutura, um dos pilares do programa de emergência é justamente o incentivo ao consumo interno. Entre outras ações adotadas, o governo vai gastar 4,4 bilhões de dólares numa política de subsídios de 13% na compra de produtos como celulares, eletrodomésticos e computadores.

Para conduzir todas essas ações, a China tem abundância de mão-de-obra - mas falta matéria-prima. E aí surgem oportunidades para países como o Brasil. Para construir suas ferrovias, rodovias e pontes, será necessário muito minério de ferro. E, hoje, dificilmente os chineses podem deixar de comprar da Vale. "Sem essas obras, a demanda mundial por minério de ferro fatalmente cairia em 2009, prejudicando os grandes exportadores", afirma o economista mexicano Carlos De Alba, vice-presidente do Morgan Stanley Research. Diante do novo cenário, as previsões indicam agora que os chineses devem comprar ao longo deste ano 100 milhões de toneladas brasileiras de minério de ferro, quase o mesmo volume de 2008. É uma boa notícia para um setor que havia desistido de repetir a fase de exuberância ocorrida entre 2000 e 2008, mesmo sabendo que as negociações endureceram e que os preços devem cair de 9% a 30%.

A Vale, é a empresa brasileira mais diretamente afetada pela decisão do governo chinês. Mas os efeitos do pacote podem se irradiar por quase toda a economia. Dos milhares de empregos nas minas que poderão ser mantidos, garantindo consumo no mercado interno, ao poder de atração da bolsa de valores brasileira. A cadeia se repete nos setores de alimentos e produtos agrícolas. Com 1,3 bilhão de pessoas para alimentar e um número insuficiente de terras disponíveis, a China tem de recorrer constantemente ao mercado internacional. Mais uma vez, o Brasil é um vendedor óbvio. Um quarto dos grãos consumidos no mercado chinês sai daqui. E, provavelmente, vai continuar saindo. Em janeiro, o preço da soja voltou a subir após a constatação de que a China começara a repor seus estoques. São sinais de que, felizmente para o resto do mundo, o elefante continua a pedalar.

Revista Exame - 02.2009

Nenhum comentário:

Geografia e a Arte

Geografia e a Arte
Currais Novos