domingo, 30 de agosto de 2009

Nosso desafio energético

O mundo já enfrenta sua dependência de combustíveis fósseis baratos e abundantes.
Por Bill McKibben
Foto de Peter Essick


O fogo crepitante pode proporcionar uma atmosfera agradável. Em muitos países em desenvolvimento, centenas de milhões de pessoas usam lenha para obter mais de 74% de suas necessidades energéticas.

Estamos imobilizados - entre uma rocha inviável e um ambiente superaquecido. E é uma questão em aberto se vamos conseguir nos libertar. E essa questão vai definir se o século 21 será marcado pela manutenção do progresso ou pelo início de um declínio longo e debilitante. O que está em jogo é a salvação do planeta em que vivemos.

A energia, claro, não é apenas mais um aspecto da nossa economia. Para todos os fins, ela é nossa economia. O grande economista John Maynard Keynes certa vez afirmou que as condições de vida da maioria dos seres humanos haviam, na melhor das hipóteses, dobrado de qualidade ao longo dos milênios desde o alvorecer da história até a virada do século 18, quando aprendemos a usar o carvão para mover máquinas. Em um curto espaço de tempo, as condições de vida, no Ocidente beneficiado por essa fonte de energia, passaram a ter sua qualidade de vida dobrada em intervalos de poucas décadas. (Há motivo, afinal, para que as expressões "mundo industrializado" e "mundo desenvolvido" sejam quase equivalentes.)

O que aconteceu é que deixamos de ficar restritos ao excedente energético que se podia extrair dos raios solares incidentes no planeta. De um momento para outro, passamos a ter acesso ao capital lentamente acumulado num banco - resultado dos milhões de anos de depósitos de samambaias, plâncton e dinossauros em que o tempo havia transformado em carvão mineral, gás natural e petróleo. Éramos como os felizes herdeiros de alguém muito rico e falecido há muito cujo testamento fora afinal decifrado. E passamos a gastar essa riqueza sem pensar nas consequências. Foram esses gastos que fizeram de nós o que somos hoje. Todas as nossas revoluções (a industrial, a química, a eletrônica e até mesmo a da informática) devem sua força a esse sangue novo que 4 ui pelas veias de nossa economia. Acima de todas elas, porém, está a revolução do consumo. A ampliação de nossas casas e zonas urbanas revelou-se o método mais eficiente para aumentar a demanda por combustível fóssil. Nossa casa cada vez mais cheia de eletrodomésticos e unida por carros cada vez maiores e mais vazios fizeram com que nossos medidores de eletricidade e nossas bombas de gasolina girassem como nunca antes. Que imagens os Estados Unidos enviam ao resto do mundo por meio de seus filmes e programas de TV? Exatamente as imagens de conforto suburbano.

Aparentemente, não havia nenhum problema em tal anseio. O plano A para a raça humana é que todos nós acabaríamos ricos, que todos se beneficiariam da mesma energia cativa que tão bem serviu ao Ocidente. Tudo parecia estar ocorrendo como o previsto: o período de crescimento explosivo na década de 1990 testemunhou nossa prosperidade generalizada, e também nosso consumo maciço de energia, começando a se difundir pela Ásia. Mas havia dois pequenos problemas: há 20 anos, se alguém chegava a pensar em aquecimento global, era como ameaça distante e improvável. Cinco anos atrás, a maioria das pessoas jamais ouvira falar na possibilidade de o petróleo um dia acabar. Bem, hoje, essas são as duas mandíbulas que vêm inexoravelmente se fechando e restringindo nossas opções. Examinados com cuidado, esses problemas podem nos apontar como vai ser o futuro - uma época na qual estaremos esgotando parte da energia de que necessitamos e não poderemos usar a outra parte pelo temor de arruinar a atmosfera. Um futuro que, de repente, não se parece com nada do que imaginamos por tanto tempo.

Para entendermos o motivo disso basta um pouco de matemática. No ano passado, a Agência de Informação sobre Energia, um órgão do governo americano, previu que, mantidas as atuais condições, o consumo mundial de energia aumentaria 50% até 2030. Esse é um bom número arredondado, resumindo o anseio das pessoas de todo o mundo por geladeiras, televisões, cubos de gelo, hambúrgueres, motocicletas e, nos trópicos, aparelhos de ar condicionado.

Todavia, não é nada claro de onde vai sair toda essa energia, pois o fato é que vivemos numa época em que o petróleo está começando a acabar. Em novembro de 2008, a Agência Internacional de Energia estimou que a produção mundial dos campos petrolíferos maduros está diminuindo 6,7% ao ano, um ritmo que provavelmente vai se acelerar ao longo do tempo. Para compensar esse declínio será preciso descobrir todos os anos o equivalente à produção atual do Kuweit, ou, se isso for possível, extrair tal volume dos campos petrolíferos já existentes. Para especialistas, nós já ultrapassamos o pico de produção de petróleo. Os mais otimistas acham que ainda pode ser uma questão de anos. Mas ninguém tem dúvida quanto ao que nos reserva o futuro, e é por isso que o barril de petróleo chegou a custar 147 dólares no ano passado. Foi necessária a ameaça de uma grande depressão para que voltasse ao patamar de 40 dólares.

E quais são as opções? Bem, existem outros combustíveis fósseis. Mas o gás natural também vai se esgotar um dia. O substituto óbvio é o carvão, o qual já exploramos bastante - o problema é que o carvão nos leva a outra ponta do dilema. Ele é o mais poluente de todos combustíveis: ao queimá-lo, lançamos toneladas de dióxido de carbono na atmosfera, o principal responsável pelo aquecimento global.

Estamos imobilizados - entre uma rocha inviável e um ambiente superaquecido. E é uma questão em aberto se vamos conseguir nos libertar. E essa questão vai definir se o século 21 será marcado pela manutenção do progresso ou pelo início de um declínio longo e debilitante. O que está em jogo é a salvação do planeta em que vivemos.

A energia, claro, não é apenas mais um aspecto da nossa economia. Para todos os fins, ela é nossa economia. O grande economista John Maynard Keynes certa vez afirmou que as condições de vida da maioria dos seres humanos haviam, na melhor das hipóteses, dobrado de qualidade ao longo dos milênios desde o alvorecer da história até a virada do século 18, quando aprendemos a usar o carvão para mover máquinas. Em um curto espaço de tempo, as condições de vida, no Ocidente beneficiado por essa fonte de energia, passaram a ter sua qualidade de vida dobrada em intervalos de poucas décadas. (Há motivo, afinal, para que as expressões "mundo industrializado" e "mundo desenvolvido" sejam quase equivalentes.)

O que aconteceu é que deixamos de ficar restritos ao excedente energético que se podia extrair dos raios solares incidentes no planeta. De um momento para outro, passamos a ter acesso ao capital lentamente acumulado num banco - resultado dos milhões de anos de depósitos de samambaias, plâncton e dinossauros em que o tempo havia transformado em carvão mineral, gás natural e petróleo. Éramos como os felizes herdeiros de alguém muito rico e falecido há muito cujo testamento fora afinal decifrado. E passamos a gastar essa riqueza sem pensar nas consequências. Foram esses gastos que fizeram de nós o que somos hoje. Todas as nossas revoluções (a industrial, a química, a eletrônica e até mesmo a da informática) devem sua força a esse sangue novo que 4 ui pelas veias de nossa economia. Acima de todas elas, porém, está a revolução do consumo. A ampliação de nossas casas e zonas urbanas revelou-se o método mais eficiente para aumentar a demanda por combustível fóssil. Nossa casa cada vez mais cheia de eletrodomésticos e unida por carros cada vez maiores e mais vazios fizeram com que nossos medidores de eletricidade e nossas bombas de gasolina girassem como nunca antes. Que imagens os Estados Unidos enviam ao resto do mundo por meio de seus filmes e programas de TV? Exatamente as imagens de conforto suburbano.

Aparentemente, não havia nenhum problema em tal anseio. O plano A para a raça humana é que todos nós acabaríamos ricos, que todos se beneficiariam da mesma energia cativa que tão bem serviu ao Ocidente. Tudo parecia estar ocorrendo como o previsto: o período de crescimento explosivo na década de 1990 testemunhou nossa prosperidade generalizada, e também nosso consumo maciço de energia, começando a se difundir pela Ásia. Mas havia dois pequenos problemas: há 20 anos, se alguém chegava a pensar em aquecimento global, era como ameaça distante e improvável. Cinco anos atrás, a maioria das pessoas jamais ouvira falar na possibilidade de o petróleo um dia acabar. Bem, hoje, essas são as duas mandíbulas que vêm inexoravelmente se fechando e restringindo nossas opções. Examinados com cuidado, esses problemas podem nos apontar como vai ser o futuro - uma época na qual estaremos esgotando parte da energia de que necessitamos e não poderemos usar a outra parte pelo temor de arruinar a atmosfera. Um futuro que, de repente, não se parece com nada do que imaginamos por tanto tempo.

Para entendermos o motivo disso basta um pouco de matemática. No ano passado, a Agência de Informação sobre Energia, um órgão do governo americano, previu que, mantidas as atuais condições, o consumo mundial de energia aumentaria 50% até 2030. Esse é um bom número arredondado, resumindo o anseio das pessoas de todo o mundo por geladeiras, televisões, cubos de gelo, hambúrgueres, motocicletas e, nos trópicos, aparelhos de ar condicionado.

Todavia, não é nada claro de onde vai sair toda essa energia, pois o fato é que vivemos numa época em que o petróleo está começando a acabar. Em novembro de 2008, a Agência Internacional de Energia estimou que a produção mundial dos campos petrolíferos maduros está diminuindo 6,7% ao ano, um ritmo que provavelmente vai se acelerar ao longo do tempo. Para compensar esse declínio será preciso descobrir todos os anos o equivalente à produção atual do Kuweit, ou, se isso for possível, extrair tal volume dos campos petrolíferos já existentes. Para especialistas, nós já ultrapassamos o pico de produção de petróleo. Os mais otimistas acham que ainda pode ser uma questão de anos. Mas ninguém tem dúvida quanto ao que nos reserva o futuro, e é por isso que o barril de petróleo chegou a custar 147 dólares no ano passado. Foi necessária a ameaça de uma grande depressão para que voltasse ao patamar de 40 dólares.

E quais são as opções? Bem, existem outros combustíveis fósseis. Mas o gás natural também vai se esgotar um dia. O substituto óbvio é o carvão, o qual já exploramos bastante - o problema é que o carvão nos leva a outra ponta do dilema. Ele é o mais poluente de todos combustíveis: ao queimá-lo, lançamos toneladas de dióxido de carbono na atmosfera, o principal responsável pelo aquecimento global.

Revista NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL - 05/2009

O Nilo Berço da cultura


Desde os tempos dos faraós as felucas deslizam pelo Nilo. Graças às suas velas triangulares, os barcos podem ser facilmente manobrados
O Nilo corre por 6.671 km, desde a sua nascente, no interior da África, até o delta no Mar Mediterrâneo. Em suas margens já vivia, há milhares e milhares de anos, um povo admirável: os egípcios.
As pessoas que viviam às margens do Nilo foram as primeiras a dispor de um calendário. Também escreveram antes de todos os outros povos, com uma escrita muito peculiar. Além disso, haviam desenvolvido um sistema unificado de algarismos, medidas e pesos. Como se não bastasse, ergueram obras arquitetônicas grandiosas, templos com verdadeiras florestas de colunas, câmaras mortuárias cheias de ouro e pirâmides esplêndidas: monumentos que ainda hoje nos deixam perplexos e nos quais os pesquisadores continuam fazendo descobertas extraordinárias.

Naquele tempo, em que tudo isso surgia junto ao Nilo, os europeus, por exemplo, ainda viviam em choupanas. Como isso era possível? O que esse rio dava aos homens?
Às margens do Nilo, estende-se uma faixa verde, com até 20 km de largura. Ali crescem algodão, trigo, arroz e milho. Esse pedaço de terra fértil oferecia as melhores condições para uma vida civilizada. E assim, há cerca de 6.500 anos, cada vez mais comunidades se assentavam no vale do Nilo. Vinham das mais diferentes tribos e clãs. Apesar disso, os desentendimentos entre elas eram raros. E por que haveria de tê-los? O deserto mantinha os inimigos distantes. Alimentos havia de sobra. Enquanto os povos europeus preocupavam-se a cada colheita, os egípcios consideravam celeiros cheios uma coisa natural. Nas cheias, o Nilo levava água e aluvião ricas em nutrientes para os campos.

Quando, de julho a outubro, as lavouras estavam inundadas, os egípcios tinham tempo e lazer. Ao observarem as fases da Lua e o nível da água, eles desenvolveram o calendário. Podiam se dedicar ao artesanato artístico, esculpindo fabulosas figuras em marfim ou tecendo os mais finos panos. Mais tarde, centenas de milhares de camponeses tiveram de trabalhar para o faraó. Sem o trabalho deles, os gigantescos templos de Tebas e as pirâmides de Gizé jamais teriam sido construídos.
Vindos de pedreiras, os blocos eram transportados em balsas até o canteiro de obras. As distâncias, algumas vezes, superavam centenas de quilômetros. A madeira vinha até da distante Síria. As pedras preciosas eram trazidas da África central.

Naquela época, o Nilo era uma das maiores e mais importantes rotas comerciais do mundo. Mercadorias de todos os lugares subiam e desciam o rio, proporcionando riqueza e poder ao Egito. Os monumentos e os tesouros dos faraós ainda hoje falam de maneira impressionante daquele tempo.

Revista GEO

Ciência e Política em Descompasso


Entre os países emergentes, somente o Brasil poderia fazer a transição para o baixo carbono rapidamente
por Sérgio Abranches
Há uma brecha talvez intransponível no curto prazo entre a ciência e a política global do clima. Ela contrapõe o ritmo em que a ciência diz estar ocorrendo o aquecimento global à velocidade e profundidade das soluções políticas factíveis. O prazo e as metas de redução das emissões de CO2 capazes de nos manter na zona de segurança climática são dados pela ciência, mas dependem da política. O necessário, cientificamente, não parece politicamente viável no curto-médio prazo. O viável politicamente nesse prazo não é suficiente do ponto de vista científico. Nunca foi tão dramática essa distância entre o cálculo da ciência e o cálculo político.

A estrutura econômico-energética e a forte dependência ao carvão de países como China e Índia indicam que a transição para o padrão de baixo carbono, com as tecnologias disponíveis, levará décadas. Só o Brasil, entre os grandes emergentes, poderia fazer essa conversão com mais rapidez. Tem a vantagem da matriz energética. A moratória do desmatamento reduziria signifi cativamente nossas emissões. O necessário investimento na insuficiente e sucateada infraestrutura de transportes poderia ser orientado para uma logística sustentável do ponto de vista do carbono. Isso eliminaria o viés a favor de rodovias no transporte a longa distância e na Amazônia. É caminho sem sacrifícios, com ganhos de governança e qualidade de vida.

A defasagem entre ciência e política do clima significa que a agenda global terá de incluir como item prioritário pesado investimento em adaptação, sem abandonar o esforço de mitigação máxima possível das emissões. O princípio da precaução manda continuar buscando modos de manter o aquecimento médio global em 2ºC até o final do século e atenção ao alerta de cientistas de que esse aquecimento pode resultar em mudanças climáticas significativas, com efeitos violentos em várias partes do planeta. Mais, recomenda considerar a eventualidade de ultrapassarmos esse limite. Mesmo que seja possível manter esse limite, o volume de investimento em adaptação necessário será de grande magnitude. E aumentará quanto mais nos afastarmos desse teto de 2ºC.

O governo Obama iniciou uma nova ofensiva na política global do clima, após a frustrada conclusão do G8+5 em L’Aquila, na Itália. Intensificou negociações bilaterais com o objetivo de obter o melhor acordo possível em Copenhague e para o futuro imediato. Por isso liderou o recuo em relação à menção explícita a metas quantitativas, vetada pela China, Índia e Brasil. Quis manter o ambiente propício ao entendimento. Difi cilmente esses países serão persuadidos a mudar de posição e assumir metas cientificamente recomendadas de redução de emissões, até dezembro. Obama certamente está informado disso. Provavelmente está apostando em um avanço mais gradual, investindo para quebrar o impasse em Copenhague, mas esperando progressos mais signifi cativos em 2010 e 2011. Se for esse, realmente, o caso, é uma estratégia diplomática realista, em sintonia com esse risco de contrariedade entre a ciência e a política do clima.

Nos encontros bilaterais que o governo americano tem promovido, um dos temas centrais tem sido a parceria tecnológica. Na China, as negociações estão em andamento. O secretário de Energia americano, Steven Chu, em viagem recente e posterior à de Hillary Clinton a Pequim, anunciou que os dois países lançarão conjuntamente um Centro de Pesquisa sobre Energia Limpa, com o objetivo de promover P&D em efi ciência energética, sequestro de carbono e veículos de baixa emissão. Na Índia, a visita da secretária de Estado, não teve resultados concretos, mas há indicações de que os dois países podem vir a negociar parceria semelhante. O encontro entre os governos dos Estados Unidos e do Brasil ficou por último. Há sinais de que a parceria tecnológica pode ser também o melhor resultado dessas conversações.

Acordos bilaterais e “negociações em clube” têm melhores chances de pavimentar o caminho rumo a um pacto climático global mais efetivo. Chamo “negociações em clube” entendimentos políticos e diplomáticos formais, em pequeno grupo, reunindo os maiores emissores e detentores de recursos estratégicos, como florestas tropicais.

Dois pontos que não avançaram na agenda de discussões e que contribuem para o veto a metas de emissões são a transferência de tecnologia e os investimentos em adaptação. Claramente, parcerias reais em pesquisa e desenvolvimento fazem mais sentido para países como China, Índia e Brasil que a surrada ideia de transferência de tecnologia. Um sério e significativo arranjo que viabilize ações concretas e eficazes de adaptação nos países mais pobres e nas economias emergentes é também questão prioritária. É preciso reduzir essa brecha entre ciência e política no enfrentamento do aquecimento global. O processo na Natureza não vai mudar. A política terá de se ajustar ao ritmo recomendado pela ciência o mais rapidamente possível. Esse é o objetivo estratégico.

Sérgio Abranches é mestre em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB); M.A. e Ph.D. em ciência política pela Cornell University. Diretor e colunista de O Eco (www.oeco.com.br); comentarista de ecopolítica da rádio CBN

Scientific American Brasil

Agricultura do Futuro: Um Retorno às Raízes?

A agricultura de grande escala se tornaria mais sustentável se as principais plantas cultivadas sobrevivessem por anos e formassem sistemas de raízes profundas
por Jerry D. Glover , Cindy M. Cox e John P. Reganold
MICHAEL S. LEWIS National Geographic/Getty Images


O CULTIVO MODERNO DE ALIMENTOS depende altamente de irrigação e outros insumos; ao mesmo tempo, esgota o solo e polui o ambiente. O desenvolvimento de versões perenes como o híbrido experimental do trigo-grama Thinopyrum intermedium e triticale, mostrado na página oposta, poderia comprometer menos recursos

Para muitos de nós de regiões ricas, parece fácil para os produtores rurais cultivarem nosso alimento. No entanto, a agricultura moderna exige áreas vastas de terra, irrigação, energia e produtos químicos. Observando essa demanda por recursos, a Avaliação do Ecossistema do Milênio, de 2005, patrocinada pela Organização das Nações Unidas, sugere que “dentre todas as atividades humanas, a agricultura pode ser a maior ameaça à biodiversidade e ao funcionamento do ecossistema”.

Hoje, grande parte do alimento vem direta ou indiretamente (na forma de ração animal) de ce-reais, legumes e oleaginosas. Fáceis de transportar e armazenar, relativamente não-perecíveis e razoavelmente ricos em proteínas e calorias, essas culturas ocupam cerca de 80% das terras agrícolas globais. Mas são todas plantas anuais, ou seja, devem ser cultivadas a partir de sementes todo ano, usando métodos de cultivo com recursos intensivos. O maior problema é que a degradação do meio ambiente provocada pela agricultura provavelmente se agravará à medida que a população humana faminta crescer para 8 bilhões ou 10 bilhões nas próximas décadas.

É por isso que melhoristas de plantas, agrônomos e ecologistas estão trabalhando no desenvolvimento de sistemas de cultivo de grãos que funcionarão como os ecossistemas naturais. A chave é a transformação das principais produtoras de grãos em plantas perenes, que possam viver por muitos anos. Essa idéia poderá ainda levar décadas para ser implementada, mas avanços significativos na ciência do melhoramento de plantas finalmente a estão deixando dentro do alcance.

Raízes do Problema

Nos anos 70, o geneticista de plantas Wes Jackson, do Kansas, deu um passo para 10 mil anos no passado para comparar a agricultura industrial de hoje aos sistemas naturais que a precederam. Antes de os seres humanos impulsionarem a abundância de plantas anuais por meio da domesticação e agricultura, diversas plantas perenes dominavam quase todas as paisagens do planeta – como ainda acontece nas áreas atuais não cultivadas. Mais de 85% das espécies de plantas nativas da América do Norte, por exemplo, são perenes.


JERRY D. GLOVER


PLANTAS PERENES, como o trigo-grama Thinopyrum intermedium (à dir. nos painéis), com suas raízes bem mais desenvolvidas do que plantas anuais como o trigo-de-inverno (à esq. nos painéis), acessam nutrientes e água em um volume de solo maior. As raízes perenes também favorecem o desenvolvimento de microorganismos e outras atividades biológicas que enriquecem o substrato

Jackson observou que as gramíneas e as flores perenes das pradarias do Kansas eram altamente produtivas ano após ano, enquanto formavam solos ricos – e os mantinham. Não precisavam de fertilizantes ou herbicidas para prosperar e afastavam naturalmente pragas e doenças. A água nos solos da pradaria era cristalina e a vida selvagem, abundante.

Em comparação, viu que os campos próximos, cultivados com plantas anuais como milho, sorgo, trigo, girassol e soja, exigiam cuidados freqüentes e caros para permanecer produtivos. Como as plantas anuais têm raízes rasas – a maioria chega a 0,3 metro de profundidade – e vivem apenas até a colheita, havia problemas de erosão e esgotamento da fertilidade do solo ou contaminação da água. Além disso, os campos agrícolas eram quase que completamente destituídos de vida selvagem. Resumindo, o problema era sustentar monoculturas anuais por largas extensões de terra. E a solução, como nos campos naturais, pode estar num sistema diversificado e resistente de raízes perenes.

Se as plantas anuais são problemáticas e os ecossistemas naturais oferecem vantagens, por que nenhuma de nossas principais culturas de grãos apresenta raízes perenes? A resposta está nas origens da agricultura. Quando nossos ancestrais neolíticos começaram a colher plantas com sementes, vários fatores determinaram a preferência pelas anuais.

As primeiras plantas anuais domesticadas, o trigo emmer e a cevada silvestre, tinham sementes grandes. E para assegurar uma colheita confiável a cada ano, os primeiros agricultores teriam replantado algumas das sementes que colheram. Provavelmente, as sementes das plantas com qualidades mais desejáveis, como alto rendimento, debulha fácil e resistência, tenham sido preferidas. Assim, o cultivo ativo e a pressão da seleção evolucionária resultaram rapidamente em plantas anuais domesticadas com qualidades mais atraentes que suas parentes anuais silvestres. Apesar de algumas plantas perenes também terem sementes de bom tamanho, não precisavam ser replantadas e não estariam sujeitas ao mesmo processo de seleção – nem se beneficiariam dele.


STEVE CULMAN Cornell University


O solo resultante, escuro e granulado, retirado de uma campina perene, retém bastante água e nutrientes. O solo de uma cultura anual adjacente (à esq. na foto) é pálido e tem estrutura mais fraca e cheia de torrões

Raízes como Solução

Com suas raízes normalmente mais profundas que 2 metros, as comunidades de plantas perenes são reguladoras-chave de funções do ecossistema, como gerenciamento da água e dos ciclos de carbono e nitrogênio. Apesar de precisarem investir energia na manutenção de tecido subterrâneo suficiente para sobreviver ao inverno, as raízes perenes entram em ação sempre que as temperaturas estão altas o suficiente e os nutrientes e a água, disponíveis. Seu estado constante de prontidão permite que sejam altamente produtivas, porém resistentes aos problemas ambientais.

Em um estudo que durou um século sobre os fatores que afetam a erosão do solo, por exemplo, a grama-timóteo, uma variedade de capim perene, provou ser cerca de 54 vezes mais eficaz na manutenção da camada superior do solo que as plantas anuais, além de promover uma redução de cinco vezes na perda de água e de 35 vezes na perda de nitrato em solo plantado com uma mistura de alfafa e gramíneas perenes, em comparação com o solo cultivado com milho e soja. Raízes mais profundas e estações mais longas de crescimento também permitem às perenes ampliar seu seqüestro de carbono, principal ingrediente da matéria orgânica do solo, presente 50% a mais nos “campos perenes” que naqueles com plantas anuais. Como não precisam ser replantadas a cada ano, as perenes exigem menos maquinário, pesticidas e fertilizantes, o que reduz o uso de combustível fóssil. Assim reduzem a emissão de dióxido de carbono, ao mesmo tempo que melhoram a fertilidade do solo.

O custo com herbicidas na produção de plantas perenes pode ser de quatro a 8,5 vezes menor que com as anuais, acarretando menos gastos para o agricultor. A vida selvagem também se beneficia: a população de aves, por exemplo, mostrou ser sete vezes maior em campos de plantas perenes. Além disso, as perenes podem ser cultivadas de forma sustentável em terras marginais, que já possuem solo pobre ou que seriam rapidamente esgotadas em poucos anos de cultivo intensivo de plantas anuais.

Por todos esses motivos, os melhoristas de plantas dos EUA e do mundo iniciaram pesquisas e programas de melhoramento ao longo dos últimos cinco anos para o desenvolvimento de trigo, sorgo, girassol, Thinopyrum intermedium (um tipo de trigo-grama) e outras espécies como plantas perenes de grãos. Quando comparada à pesquisa dedicada às plantas anuais, o desenvolvimento de grãos perenes ainda está em sua primeira infância. Mas avanços significativos no melhoramento de plantas ao longo das últimas duas ou três décadas tornarão viável o desenvolvimento em grande escala de culturas perenes de grãos altamente produtivas nos próximos 25 a 50 anos.


CINDY M. COX


CROMOSSOMOS de trigo perene híbrido experimental são marcados com fluorescência para revelar se são originários do pai trigo-grama (verde) ou trigo (vermelho). Essa técnica ajuda a identificar as combinações desejáveis de cromossomo e acentua as anomalias, como cromossomos misturados (setas)

Os desenvolvedores de culturas perenes estão empregando basicamente os mesmos dois métodos usados por muitos outros cientistas agrícolas: a domesticação direta de plantas silvestres e a hibridização das plantas existentes de cultura anual com suas parentes silvestres.

Evolução Assistida

A domesticação direta de plantas silvestres perenes é a abordagem mais direta para a criação de culturas perenes. Com métodos comprovados de observação e seleção de plantas superiores, os melhoristas buscam aumentar a freqüência de genes para características desejáveis, como separação mecânica fácil da semente da palha, uma semente grande que não se despedaça, maturidade simultânea, palatabilidade, linhagens fortes e alta produção de sementes. Muitas plantas cultivadas existentes, como milho e girassol, facilitaram sua domesticação dessa forma. Em poucos passos, por exemplo, os americanos transformaram os girassóis silvestres com cabeças e sementes pequenas no familiar girassol com cabeça e sementes grandes (ver quadro na pág. 60).

Programas ativos de domesticação de grãos perenes estão atualmente concentrados no trigo-grama Thinopyrum intermedium, no girassol silvestre Helianthus maximiliani, em uma flor das pradarias (Desmanthus illinoensis) e no linho (uma espécie perene de Linum genus). Desses, a domesticação do Thinopyrum intermedium, um parente perene do trigo, é talvez o que esteja no estágio mais avançado.

Para usar uma planta anual existente na criação de uma perene, uma ampla hibridização pode reunir as melhores qualidades da planta anual domesticada e de sua parente perene silvestre. As domesticadas já possuem atributos desejáveis, como alto rendimento, enquanto suas parentes silvestres podem contribuir com variações genéticas adaptadas ao próprio hábitat perene, assim como resistência a doenças e pragas.


THE LAND INSTITUTE


A CRIAÇÃO DE PLANTAS HÍBRIDAS
pode exigir o resgate do embrião do ovário

Das 13 principais culturas de grãos e oleaginosas, dez são capazes de hibridização com parentes perenes, segundo o melhorista de plantas T. Stan Cox, do Land Institute, uma organização sem fins lucrativos do Kansas, fundada por Jackson para a agricultura sustentável. Programas de melhoramento por todos os EUA estão atualmente buscando híbridos interespecíficos (entre espécies) e intergenéricos (entre gêneros) para desenvolver trigo, sorgo, milho, linho e girassol perenes. Há mais de uma década, pesquisadores da University of Manitoba, assim como cientistas de várias instituições canadenses, estudam o uso de recursos em sistemas perenes. A University of Western Australia criou um programa de pesquisa para desenvolver trigo perene no Cooperative Research Center for Future Farm Industries (Centro Cooperativo de Pesquisas para Futuras Culturas Agrícolas), proposto pelo governo. Além disso, cientistas do Food Crops Research Institute em Kunming, na China, dão continuidade ao trabalho iniciado pelo International Rice Research Institute (Instituto Internacional de Pesquisa do Arroz) nos anos 90 para o desenvolvimento de híbridos perenes de arroz para regiões elevadas.

No Land Institute, os melhoristas estão trabalhando tanto com o trigo-grama perene domesticado quanto no cruzamento de espécies de trigo perenes (principalmente Th. intermedium, Th. ponticum e Th. elongatum) com espécies anuais. No momento, 1.500 desses híbridos e milhares de suas progênies estão sendo selecionados em busca de características perenes. O processo exige trabalho intensivo e consome tempo. Assim que os melhoristas identificam candidatos à hibridização, administram a troca de genes entre espécies díspares, manipulando o pólen para fazer um grande número de cruzamentos entre as plantas, selecionar a progênie com características desejáveis e repetir esse ciclo de cruzamento e seleção várias vezes.

No entanto, a hibridização é o meio potencialmente mais rápido, apesar de mais tecnologia ser necessária para superar as incompatibilidades genéticas entre as plantas parentes. Uma semente produzida pelo cruzamento entre duas espécies distantes, por exemplo, freqüentemente abortará antes de se desenvolver plenamente. Esse espécime pode ser “resgatado” cultivando-se o embrião em um meio artificial até este produzir algumas poucas raízes e folhas, e então transferindo-o para o solo, onde poderá crescer como uma planta normal. Ao chegar ao estágio reprodutor, entretanto, as anomalias genéticas da planta híbrida, como a incapacidade de produzir sementes, freqüentemente se manifestam.

Uma híbrida parcial ou plenamente estéril geralmente é o resultado de cromossomos incompatíveis dos pais dentro de suas células. Para produzir óvulos ou pólen, os cromossomos da híbrida devem se alinhar durante a meiose e trocar informação genética uma com a outra. Se os cromossomos não puderem encontrar seus pares porque a versão de cada um dos pais é diferente demais, ou se diferirem no número de cromossomos, a dança da meiose é interrompida. Há algumas formas de superar esse problema. Como as híbridas estéreis são geralmente incapazes de produzir gametas masculinos, mas são parcialmente férteis com gametas femininos, polinizá-las com um dos pais originais, um processo conhecido como retrocruzamento, pode devolver a fertilidade. Dobrar o número de cromossomos, espontaneamente ou adicionando substâncias químicas como colquicina, é outra estratégia. Apesar de cada método permitir a paridade de cromossomos, eliminações subseqüentes de cromossomos em cada geração sucessiva ocorrem com freqüência em trigo híbrido perene, principalmente com cromossomos herdados do pai perene.


JIM RICHARDSON


Um pesquisador embala o sorgo anual para coletar pólen, com o sorgo perene alto ao fundo

Devido ao conjunto desafiador de genes criado pela ampla hibridização, técnicas de biotecnologia que podem revelar que pai contribuiu com que parte do genoma da progênie são úteis. Uma delas, a hibridização genômica in situ, por exemplo, distingue os cromossomos do pai perene daqueles do pai anual por fluorescência colorida e também detecta anomalias nos cromossomos, como rearranjos estruturais entre cromossomos não relacionados (ver ilustração embaixo à esq.). Essas ferramentas de análise podem ajudar a acelerar o programa de melhoramento assim que os melhoristas descobrirem as combinações de cromossomos desejadas e indesejadas.

Outro método para acelerar e melhorar a criação tradicional de plantas é a seleção assistida por marcadores. Seqüências de DNA associadas a características específicas servem como marcadores que permitem aos melhoristas selecionar cruzamentos com brotos de acordo com atributos desejados, sem ter de esperar até que as plantas atinjam a maturidade (ver “De volta para o futuro dos cereais”, por Stephen A. Goff e John M. Salmeron, SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL no 28, setembro de 2004). No momento, nenhum marcador específico para melhoria de planta perene foi estabelecido, mas cientistas da Washington State University, por exemplo, já determinaram que o cromossomo 4E no trigo-grama Th. elongatum é necessário para a importante característica perene do recrescimento após um ciclo de reprodução sexual. Restringir a região de 4E ao gene ou genes que produzem a característica revelaria marcadores relevantes de DNA, que economizariam aos criadores um ano de tempo de crescimento para avaliação dos híbridos.

No entanto, a perenização é um caminho intricado da vida, que vai muito além de uma única característica, muito além de um único gene. Devido a essa complexidade é improvável que a modificação transgênica (inserção de DNA estranho) seja útil no desenvolvimento de grãos perenes, pelo menos inicialmente. Mais à frente, a tecnologia transgênica poderá ter um papel na melhoria das características simples herdadas. Por exemplo, se um trigo-grama perene domesticado for desenvolvido com sucesso mas ainda carecer da combinação certa de genes de glúten (proteína) necessária para fazer um pão de boa qualidade, genes de glúten de trigo anual poderiam ser inseridos na planta perene.

Trocas e Resultados

Apesar de plantas perenes cultivadas como a alfafa e a cana-de-açúcar já existirem, nenhuma apresenta rendimento comparável à cultura de grãos anuais. À primeira vista, a idéia de que plantas podem direcionar simultaneamente recursos para a construção e a manutenção de sistemas de raízes perenes e também ter amplo rendimento de grãos comestíveis pode parecer contra-intuitiva. O carbono, capturado por meio da fotossíntese, é o principal bloco de construção da planta e deve ser alocado entre suas várias partes.


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Críticos da idéia de que as plantas perenes podem apresentar alta produção de sementes muitas vezes enfocam essas trocas fisiológicas, presumindo que a quantidade de carbono disponível para uma planta é fixa e, conseqüentemente, o carbono alocado para as sementes sempre virá às custas das estruturas perenes, como raízes e rizomas. Eles também costumam fazer vista grossa ao fato de o tempo de vida das plantas perenes estender-se ao longo de um espectro. Algumas delas, nas pradarias, podem viver de 50 a 100 anos, enquanto outras duram apenas alguns anos. Felizmente para os melhoristas, as plantas são organismos relativamente flexíveis: em resposta às pressões de seleção, elas são capazes de mudar o tamanho de seu “bolo” de quantidade total de carbono, dependendo das condições ambientais, e alterar o destino de fatias de carbono deste bolo.

Uma espécie perene silvestre hipotética poderia viver 20 anos em seu ambiente natural altamente competitivo e produzir apenas pequenas quantidades de sementes em qualquer ano. Seu bolo de carbono é pequeno, e grande parte dele é destinada à defesa contra pragas e doenças, à disputa pelos poucos recursos e à sobrevivência sob condições variáveis. Quando os melhoristas retiram o espécime silvestre de seu ambiente natural, normalmente pobre de recursos, e o colocam em um ambiente administrado, seu bolo total de carbono cresce repentinamente, resultando em uma planta maior.

Com o tempo, os melhoristas também podem mudar o tamanho das fatias de carbono dentro desse bolo maior. O melhoramento de grãos da Revolução Verde moderna, quando combinado com um maior uso de fertilizantes, mais que dobrou o rendimento de muitas culturas anuais de grãos, e esses aumentos foram obtidos em plantas que não tinham estruturas perenes para sacrificar. Os melhoristas chegaram a esses resultados em parte por causa da seleção de plantas que produziam menos massa de caule e folhas – portanto, realocando o carbono para a produção de sementes.

O rendimento pode ser igualmente aumentado sem a eliminação dos órgãos e de estruturas exigidos para culturas perenes de grãos resistirem ao inverno. Na verdade, muitas plantas perenes, que em geral são maiores do que as anuais, oferecem mais potencial para os melhoristas realocarem crescimento vegetal para a produção de sementes. Além disso, uma cultura perene de grãos que viva cinco ou dez anos atenderia às necessidades humanas.


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Em outras palavras, a planta perene silvestre é desnecessariamente “robusta” para o ambiente agrícola administrado. Grande parte do carbono alocado nos mecanismos de sobrevivência da planta, como aquele que lhe permite sobreviver a grandes secas, poderia ser realocada para a produção de sementes.

Fazendas Mais Verdes

Podemos imaginar que daqui a 50 anos agricultores de todo o mundo caminharão por campos de culturas perenes de grãos. Essas terras funcionariam como as pradarias do Kansas, por onde Wes Jackson caminhou, mas também produziriam alimentos. No subsolo, tipos diferentes de raízes perenes coexistiriam, fazendo uso de diferentes camadas do solo. Culturas com ciclos de crescimento sazonal alternativo poderiam ser plantadas juntas para prolongar o perío-do geral de crescimento. Menos insumos e maior biodiversidade, por sua vez, beneficiariam o meio ambiente e o bolso do agricultor.

As condições globais – agrícolas, ecológicas, econômicas e políticas – estão mudando rapidamente, de forma que poderiam ser promovidos esforços para a criação de culturas perenes. Por exemplo, à medida que cresce a pressão sobre os EUA e a Europa para reduzir ou eliminar subsídios agrícolas, que basicamente apóiam os sistemas de cultura anual, mais recursos poderiam ser disponibilizados para a pesquisa de culturas perenes. À medida que a energia fica mais cara e o custo da degradação ambiental, mais alto, recursos públicos para projetos de longo prazo que limitem o consumo e o esgotamento das terras se tornarão politicamente mais populares.

Como o longo cronograma para lançamento das culturas perenes de grãos desencoraja o investimento do setor privado, a esta altura financiamento público ou filantrópico em grande escala é necessário para a formação de cientistas e de programas de pesquisa.

A produção anual de grãos sem dúvida ainda será importante daqui a 50 anos. Algumas culturas, como soja, provavelmente serão difíceis de perenizar, e as plantas perenes não eliminarão completamente problemas como pragas, ervas daninhas e perda de fertilidade do solo. Mas raízes profundas significam maior resistência. Estabelecer agora as raízes de uma agricultura baseada em culturas perenes daria aos agricultores do futuro mais opções sobre o que cultivar e onde, assim como proporcionaria produção sustentável de alimento para uma população mundial cada vez maior.

CONCEITOS-CHAVE
JIM RICHARDSON


O uso intensivo de terra pela agricultura moderna acaba com a biodiversidade natural e os ecossistemas. Enquanto isso, nas próximas décadas a população aumentará para entre 8 bilhões e 10 bilhões, exigindo que mais hectares sejam cultivados.

A substituição de culturas de uma única estação pelas perenes criaria grandes sistemas de raízes capazes de preservar o solo e permitir o cultivo em áreas atualmente consideradas marginais.

O desafio é monumental, mas se os cientistas tiverem sucesso, o feito rivalizaria com a domesticação original das plantas cultivadas para produção de alimentos, ao longo dos últimos dez milênios – e seria igualmente revolucionária. – Os editores

AS DEZ PRINCIPAIS CULTURAS
Em 2004, culturas anuais de cereais, legumes e oleaginosas ocupavam 80% das terras agrícolas globais. Mais da metade dessa área é coberta pela cultura dos três principais grãos.

CULTURA /% DE TERRA DE CULTIVO OCUPADA
1. Trigo/ 17,8

2. Arroz/ 12,5

3. Milho/ 12,2

4. Soja/ 7,6

5. Cevada/ 4,7

6. Sorgo/ 3,5

7. Algodão/ 2,9

8. Feijões secos/ 2,9

9. Painço/ 2,8

10.Mostarda/Colza/ 2,2

O FATOR CARBONO
O aquecimento global potencial – gases de efeito estufa liberados na atmosfera pelos insumos da produção agrícola, menos o carbono seqüestrado no solo – é negativo no caso das culturas perenes. As plantas perenes mais resistentes também se sairão melhor do que as anuais em um clima mais quente.

CARBONO SEQÜESTRADO NO SOLO
(kg/ha por ano)
Culturas anuais 0 a 450
Culturas perenes 320 a 1.100

AQUECIMENTO GLOBAL POTENCIAL (KG/C02 EQUIVALENTES POR HECTARE POR ANO)
Culturas anuais 140 a 1.140
Culturas perenes –1.050 a –200

IMPACTO ESTIMADO NA PRODUÇÃO COM AUMENTO DE 3ºC A 8ºC NA TEMPERATURA
(megagramas/ha)
Culturas anuais –1.5 a –0.5
Culturas perenes +5

CRIANDO UMA NOVA PLANTA PARA CULTIVO

THE LAND INSTITUTE



Para desenvolver plantas perenes altamente produtivas, cientistas e melhoristas podem domesticar uma planta perene silvestre para otimizar suas características ou hibridizar uma planta anual para cultivo com uma parente perene silvestre, misturando suas melhores qualidades. Cada método exige tempo e cruzamentos de plantas, o que requer trabalho e análise intensivos. Os índios americanos passaram milhares de anos domesticando e transformando o girassol silvestre anual de semente pequena (a) na planta moderna de cultivo anual (b), selecionando e cultivando exemplares com características desejáveis, como sementes grandes e rendimento alto. Já existem iniciativas para domesticar diretamente espécies perenes de girassóis (c) e também produzir híbridos da moderna anual e da perene silvestre (d).

PARA SABER MAIS
Perennial grain crops: an agricultural revolution. Editado por Jerry D. Glover e William Wilhelm. Edição especial da Renewable Agriculture and Food Systems, vol. 20, no 1, março de 2005.

Wes Jackson (35 who made a difference). Craig Canine, na edição especial de aniversário da Smithsonian, vol. 36, no 8, págs. 81-82, novembro de 2005.

Prospects for developing perennial grain crops. Thomas S. Cox, Jerry D. Glover, David L. van Tassel, Cindy M. Cox e Lee D. DeHaan, em BioScience, vol. 56, no 8, págs. 649-659, agosto de 2006.

Sustainable development of the agricultural bio-economy. Nicholas Jordan e colegas, em Science, vol. 316, págs. 1570-1571, 15 de junho de 2007.

The Land Institute:
www.landinstitute.org

Jerry D. Glover , Cindy M. Cox e John P. Reganold Ele é agroecologista e diretor de pesquisa de doutorado do Land Institute em Salina, Kansas, uma organização sem fins lucrativos dedicada ao ensino e à pesquisa de agricultura sustentável.
Ela é patologista de plantas e geneticista do programa de melhoramento de plantas do instituto. John P. Reganold, professor de ciência do solo da Washington State University, em Pullman, é especializado em agricultura sustentável.

SCIENTIFIC AMERICAN Brasil

A China encara a crise

O combate seus efeitos ao estilo de Pequim: um pacote de 586 bilhões de dólares, estímulo ao consumo e obras monumentais. O resto do mundo torce para que funcione

Zhang Wei/AFP Em Pequim, 30 000 pessoas buscam trabalho numa feira de recolocação: o desafio de gerar empregos

Luciene Antunes, Fabiane Stefano e Tiago Maranhão
"Negócio da China" é uma expressão gasta que caracterizava bem o curtume Vitapelli. A empresa foi criada em 2000 e, num período de sete anos, seu faturamento saiu de zero para 180 milhões de dólares. As taxas de crescimento nunca ficavam abaixo dos dois dígitos anuais. A produção e o número de funcionários multiplicavam ano após anos conforme a demanda crescia. A Vitapelli era uma dessas empresas surgidas no seio da globalização e que se davam bem só graças a ela. Quase metade de seus couros, produzidos em Presidente Prudente, no interior paulista, viajava 19 000 quilômetros até chegar à cosmopolita Xangai, o centro financeiro da nova China. Lá, eles viravam a principal matéria-prima da Natuzzi China Limited, subsidiária da fabricante italiana de móveis Natuzzi.

A Vitapelli foi um sucesso enquanto o ciclo de crescimento que alimentou a globalização funcionou. Nos últimos meses, os telefonemas da Natuzzi China aos vendedores de Presidente Prudente rarearam. A produção de móveis foi reduzida à medida que os consumidores americanos - o grande mercado da empresa - deixaram de comprar novos sofás para a sala de estar e passaram a se preocupar com o emprego e as contas a pagar. A Natuzzi teve de reduzir o número de funcionários em Xangai. Como numa onda, a Vitapelli demitiu 60% de seus quadros nos últimos meses. A história se repete em Portão, cidade de 30 000 habitantes no Rio Grande do Sul. A produtora de couros AP Müller diminuiu 80% de sua produção nos últimos meses. Seu principal cliente é a Sunex, fabricante de cintos e bolsas instalada na região do Cantão. "Só voltaremos a comprar mais do Brasil quando a situação melhorar", diz James Wu, presidente da Sunex. "Nosso destino sempre esteve muito ligado aos chineses e, agora, nossa recuperação depende deles", diz Cezar Müller, dono da AP Müller.



Eis um quadro que vai muito além de um mero problema setorial. Nos últimos anos, a existência e o crescimento de várias empresas, no Brasil e no mundo, foram vinculados à China. Com sua abundância de commodities, o Brasil foi um dos grandes beneficiados pelo crescimento chinês. Em 2008, o país foi nosso segundo maior parceiro comercial, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. No final da década de 80, a China importava do Brasil por ano o mesmo volume de mercadorias que o Paquistão nos dias de hoje. No ano passado, comprou 16,4 bilhões de dólares em produtos nacionais, sobretudo minério de ferro e soja. O minério - sobretudo o da Vale - sustentou as formidáveis obras de infraestrutura; a soja, a inclusão de milhões de chineses miseráveis no mercado consumidor. Em troca, a China despejou no Brasil uma relação de produtos que iam de máquinas pesadas a quinquilharias eletrônicas. Em duas décadas, as importações de mercadorias chinesas cresceram 12 000%. "A China é hoje quase uma economia complementar à brasileira", afirma Cláudio Haddad, presidente da escola de negócios Ibmec São Paulo.

Os economistas de Pequim gostam de comparar a China a um elefante numa bicicleta. Ele só se equilibra se conseguir pedalar rapidamente. Caso contrário, pode cair. "E aí a Terra treme", conclui o jornalista britânico James Kynge em seu livro A China Sacode o Mundo. O mundo teve dois grandes motores de crescimento nos últimos anos. O principal deles, os Estados Unidos, parou. Resta a China. E é por isso que, hoje, os olhares do mundo se dividem entre o que Barack Obama faz na Casa Branca e o que os sucessores de Deng Xiaoping decidem no Palácio do Povo. Nem mesmo os mandarins do Partido Comunista Chinês, hábeis fabricantes de estatísticas, desmentem que o elefante diminuiu o ritmo das pedaladas. Neste ano, segundo estimativas do governo, a China crescerá 8%. O Fundo Monetário Internacional projeta 6,7%. Trata-se de uma enormidade diante dos índices deprimentes de países europeus, do Japão ou dos Estados Unidos. Mas não deixa de ser um número preocupante para um país que precisa incluir 24 milhões de pessoas por ano no mercado de trabalho. Uma queda de três ou quatro pontos percentuais no PIB chinês significa cenas como a da feira de recolocação de desempregados, recentemente ocorrida em Pequim e que recebeu 30 000 pessoas em apenas dois dias. Significa produção menor e redução de compras de matérias-primas, afetando diretamente economias como a brasileira.

No final do primeiro semestre de 2008, a indústria brasileira de celulose comemorou um aumento de 90% nas vendas em relação ao mesmo período de 2007. Os fabricantes de embalagens chineses foram fundamentais para esse resultado. Em agosto, a festa transformou-se em apreensão. Clientes ocidentais reduziram as compras na China. A demanda por embalagens caiu imediatamente - assim como a de celulose brasileira. O ano fechou com um crescimento de 60% nas vendas do produto. Mas com o número veio a dúvida: se os chineses, responsáveis por 17% das exportações brasileiras de celulose, não se recuperarem, como será 2009?

Uma diminuição brusca no crescimento do PIB chinês significa também que eles se tornarão mais agressivos diante do mercado global - um argumento a mais para os defensores do protecionismo. Em janeiro, as exportações totais chinesas caíram 17,5%, o pior resultado na última década. A reação dos fabricantes foi tentar desovar seus estoques de produtos longe dos mercados mais afetados pela crise. O Brasil é um dos alvos preferenciais. No setor de calçados, o volume de importações cresceu 35% apenas em janeiro. "A maior parte dessa enxurrada anormal de produtos do exterior veio da China", afirma Milton Cardoso, presidente da Vulcabras/Azaleia, um dos maiores fabricantes nacionais do setor. Com 80% das vendas concentradas no mercado brasileiro, a Vulcabras/Azaleia sentiu o golpe. No fim do ano, devido aos estoques em alta provocados pela falta de compradores, a empresa concedeu férias coletivas de 20 dias a seus 31 000 funcionários. Nas primeiras semanas de fevereiro, foi obrigada a repetir a dose com um grupo de 2 300 empregados. "Se o cenário não mudar, teremos de adotar medidas mais radicais", diz Cardoso. Outros fabricantes já recorreram a esse remédio amargo. No último trimestre de 2008, o setor calçadista demitiu 40 000 pessoas.

A turbulência que vem ocorrendo na China mostra como a crise atual tem sido devastadora sobre os prognósticos apressados e demasiadamente otimistas. Quando o vendaval financeiro começou a corroer as estruturas das economias dos Estados Unidos e de boa parte da Europa, alguns analistas chegaram a sustentar que a China não só poderia escapar dos problemas como seria capaz de substituir as tradicionais forças capitalistas ocidentais na função de locomotiva encarregada de puxar o crescimento mundial. A tese do "descolamento" continha o erro básico de subestimar o grau de dependência da China em relação aos mercados internacionais. Desde o início de seu processo de abertura, há 30 anos, a economia moderna da China foi concebida dentro do modelo da globalização. A conquista de mercados internacionais por seus produtos é um dos pilares de sustentação do modelo de crescimento do país. O fato de as exportações responderem atualmente por mais de um terço do PIB chinês representa a prova eloquente da missão cumprida à risca.

Agora, quando os seus principais parceiros comerciais já baixaram na UTI financeira, não há como o governo de Pequim construir uma grande muralha para evitar o contágio. A dúvida é quão profundo ele será e em que medida o Estado chinês será eficiente para combater seus efeitos. "Existe uma onda de pessimismo ao redor do desempenho da China, mas ainda é muito cedo para avaliar a extensão da crise no país", afirmou a EXAME o economista Tarun Khanna, professor da Universidade Harvard e autor do livro Bilhões de Empreendedores, que retrata a ascensão de China e Índia no cenário internacional.

A onda de pessimismo a que Khanna se refere está baseada em números bem menos impressionantes do que os apresentados no passado recente. O ritmo de crescimento da produção industrial era três vezes maior em março de 2008 em comparação a dezembro do mesmo ano. A inflação alta, fruto dos tempos em que o crescimento vigoroso da economia pressionava os preços, deixou de ser um problema. A ameaça agora é a deflação. A taxa de desemprego deve chegar, segundo o governo de Pequim, a 4,6% até o final deste ano, o nível mais alto da década (veja quadro na pág. 23). Baixa em comparação à maioria dos países desenvolvidos, essa taxa já vem provocando pequenas ondas de protesto, vistas com preocupação num governo que tenta esquecer o episódio da Praça da Paz Celestial, em 1989. Províncias como Guangdong e Zhejiang, que ocupavam legiões de trabalhadores na produção de todo tipo de mercadoria destinada à exportação, sofrem mais. Calcula-se em mais de 100 000 o número de fábricas, de diversos setores, que fecharam as portas no ano passado. Por causa disso, cerca de 20 milhões de trabalhadores migrantes perderam o emprego e tiveram de retornar à sua cidade de origem, na zona rural do país. "Nos centros mais modernos e desenvolvidos, porém, esse tipo de problema ainda não ocorreu", afirma Marcos Caramuru, cônsul-geral do Brasil em Xangai.

A principal fonte da turbulência que aflige a China é externa. Os Estados Unidos e a Europa estão em ponto morto, assim como seus principais vizinhos da Ásia, um mercado estratégico para os chineses. No último trimestre de 2008, Japão, Singapura, Coreia do Sul e Taiwan começaram a acumular claros sinais de recessão. Os recém-divulgados dados sobre o desempenho japonês no último trimestre de 2008 revelaram uma retração de 3,3% do PIB, a pior desde a crise do petróleo, ocorrida há mais de 30 anos. "A queda na demanda mundial já era esperada, mas ninguém previa baixas dessa magnitude", diz a economista Linda Yuen-Ching Lim, professora especialista em mercados asiáticos da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.

Em razão da importância da economia chinesa para as engrenagens do mundo globalizado - o país é responsável hoje por 8% do comércio internacional -, os passos dos mandarins de Pequim são objeto hoje de quase tanta atenção quanto as primeiras decisões de Barack Obama no comando dos Estados Unidos. E a reação chinesa chegou com a mesma velocidade com que novas ferrovias e prédios são erguidos no país. No final do ano passado, o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, anunciou um pacote de estímulo econômico de 586 bilhões de dólares. Os recursos, que deverão ser empregados ao longo dos próximos dois anos, vão principalmente para projetos de infraestrutura e incentivos ao consumo (veja quadro na pág. 25). Recursos estão sendo alocados em áreas sensíveis, como meio ambiente, pesquisa e desenvolvimento tecnológico e saneamento básico. Com isso, o governo tenta, ao mesmo tempo, combater a inércia econômica e calar os críticos de plantão. A prioridade é o emprego, fundamental para que o mercado interno possa substituir parte das vendas para o exterior. Emprego e renda estão na base de sustentação do que o Partido Comunista Chinês chama de projeto de uma sociedade harmoniosa, uma combinação da prosperidade do capitalismo com a disciplina e o controle socialistas. Dias após o anúncio do plano, apareceram as primeiras fotos de operários chineses em ação na construção de uma ferrovia de 17,6 bilhões de dólares que cruzará o deserto no noroeste do país. Nos próximos dois anos, se tudo der certo, serão construídas mais de 70 grandes obras. Entre as mais impressionantes - pelo porte e pela velocidade de execução dos projetos - estão uma malha ferroviária de carga na província de Shanxim e uma linha de trem para passageiros ligando Pequim a Guangzhou. Custo dos dois projetos: 46 bilhões de dólares. Foi mais ou menos o que os Estados Unidos aportaram no Citi. "O governo está repetindo a estratégia de recuperação que colocou em prática durante a crise asiática dos anos 90", disse a EXAME Jianmao Wang, professor de economia na escola de negócios China Europe International Business School (Ceibs). "A vantagem é que hoje a China é mais rica, com cerca de 2 trilhões de dólares em reservas estrangeiras."

O número mágico a ser perseguido na economia da China em 2009 é 8%. Ele vem sendo repetido feito um mantra pelas autoridades do governo de Pequim desde os primeiros sinais da chegada da crise ao país. "Faremos o que for necessário para garantir um crescimento de 8% neste ano", afirmou Wen Jiabao, numa entrevista recente ao jornal inglês Financial Times. Esse índice de evolução do PIB - contestado por muitos analistas - é considerado o número mínimo para garantir paz social. "A população, que se acostumou com um longo período de quase 30 anos de crescimento robusto, pode se ressentir se ocorrer uma retração", diz Marvin Zonis, professor da escola de negócios da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos.

Embora exista alguma polêmica por parte dos analistas internacionais em torno da dosagem de algumas medidas recentes e nos detalhes das estratégias adotadas, há quase um consenso a respeito do acerto dos chineses nas políticas macroeconômicas ao atacar desde já os problemas sem poupar esforços. E, pelo menos por enquanto, os chineses não se depararam com bancos falidos, ativos tóxicos e numerosos setores agonizantes. "A criação de empresas e os investimentos em áreas como saúde, agricultura, biotecnologia e microfinanças, que são setores mais imunes à demanda externa, não pararam na China. Pelo contrário, continuam crescendo", afirma Tarun Khanna, da Universidade Harvard.

Parece inquestionável que a China caminhe para ser um país com uma classe média. A recessão mundial deve retardar esse processo, mas não para sempre. O que Pequim tenta fazer hoje - com repercussões em todo o mundo - é garantir que esse adiamento seja o mais curto possível. Hoje, a classe média chinesa é composta de cerca de 150 milhões de pessoas. Segundo um estudo do McKinsey Global Institute, esse número deve quadruplicar até 2025. Quase sempre que são estimulados a ir às compras, os chineses respondem de forma impressionante. Exemplo disso ocorreu em janeiro, quando o governo reduziu pela metade os impostos sobre a compra de carros com motores abaixo de 1.6 litro. Ao fim de um mês, as vendas já haviam subido 4,4%, chegando a 610 600 carros. Com isso, pela primeira vez na história, a China superou as vendas nos Estados Unidos, que foram de 522 000 unidades em janeiro. A pior crise do setor automotivo americano, cuja atividade chegou ao menor nível dos últimos 26 anos, contribuiu para o resultado. Mas não deixa de ser emblemático o fato de os chineses desbancarem os consumidores do país que criou os drive-in, os muscle cars, as freeways e todos os outros elementos da cultura de adoração aos motores.

A reação dos chineses à redução de impostos para carros explica o otimismo em torno dos efeitos possíveis do pacote de 586 bilhões de dólares, dentro e fora da China. O país assombrou o mundo em 2008 ao organizar os Jogos Olímpicos mais caros da história - um investimento de 40 bilhões de dólares. O pacote de estímulo ora em vigor é mais de 14 vezes maior. Ao lado das obras de infraestrutura, um dos pilares do programa de emergência é justamente o incentivo ao consumo interno. Entre outras ações adotadas, o governo vai gastar 4,4 bilhões de dólares numa política de subsídios de 13% na compra de produtos como celulares, eletrodomésticos e computadores.

Para conduzir todas essas ações, a China tem abundância de mão-de-obra - mas falta matéria-prima. E aí surgem oportunidades para países como o Brasil. Para construir suas ferrovias, rodovias e pontes, será necessário muito minério de ferro. E, hoje, dificilmente os chineses podem deixar de comprar da Vale. "Sem essas obras, a demanda mundial por minério de ferro fatalmente cairia em 2009, prejudicando os grandes exportadores", afirma o economista mexicano Carlos De Alba, vice-presidente do Morgan Stanley Research. Diante do novo cenário, as previsões indicam agora que os chineses devem comprar ao longo deste ano 100 milhões de toneladas brasileiras de minério de ferro, quase o mesmo volume de 2008. É uma boa notícia para um setor que havia desistido de repetir a fase de exuberância ocorrida entre 2000 e 2008, mesmo sabendo que as negociações endureceram e que os preços devem cair de 9% a 30%.

A Vale, é a empresa brasileira mais diretamente afetada pela decisão do governo chinês. Mas os efeitos do pacote podem se irradiar por quase toda a economia. Dos milhares de empregos nas minas que poderão ser mantidos, garantindo consumo no mercado interno, ao poder de atração da bolsa de valores brasileira. A cadeia se repete nos setores de alimentos e produtos agrícolas. Com 1,3 bilhão de pessoas para alimentar e um número insuficiente de terras disponíveis, a China tem de recorrer constantemente ao mercado internacional. Mais uma vez, o Brasil é um vendedor óbvio. Um quarto dos grãos consumidos no mercado chinês sai daqui. E, provavelmente, vai continuar saindo. Em janeiro, o preço da soja voltou a subir após a constatação de que a China começara a repor seus estoques. São sinais de que, felizmente para o resto do mundo, o elefante continua a pedalar.

Revista Exame - 02.2009

Como enfrentar o protecionismo

A onda de fechamento de mercados que toma conta do mundo é perigosa e merece ser confrontada pelo Brasil - e há um jeito certo de fazer esse combate

Christopher Furlong/Getty Images Ingleses protestam contra o emprego de estrangeiros: volta do nacionalismo


Angela Pimenta e Roberta Paduan
De tempos em tempos, quando a economia global adoece, como agora, uma infecção oportunista - o protecionismo - começa a se manifestar pelo mundo todo. Nesse quadro, é comum ver empresários reivindicando barreiras contra produtos importados e trabalhadores gritando contra o emprego de imigrantes estrangeiros. Governos, que dependem de votos tanto de trabalhadores quanto de empresários, tendem a ceder às reivindicações. O passo seguinte normalmente é a adoção de medidas que interrompem o fluxo normal do comércio, transformando-se em distorções econômicas com efeitos potencialmente destrutivos. "Na década de 30, o protecionismo levou ao nacionalismo e à Segunda Guerra", disse o vice-chanceler britânico, Mark Malloch Brown, a EXAME. De fato, enquanto eram castigados pela profunda recessão que sucedeu à queda da bolsa em 1929, os Estados Unidos aumentaram os impostos de importação de 20 000 produtos. O resultado foi uma reação em cadeia dos europeus,
barrando a entrada de produtos americanos. Três anos depois, as exportações e importações americanas tinham caído mais de 60% e a crise virou a Grande Depressão. Passadas quase oito décadas, o mundo começa a flertar com os mesmos erros. Desde que a crise americana começou a afetar outras economias, o vírus protecionista voltou a atacar em escala planetária e tornou-se uma ameaça à globalização. Ele também é mais uma ameaça ao comércio mundial, já enfraquecido pela crise - a previsão é que, após 27 anos consecutivos de crescimento, as trocas entre os países declinem em 2009.


Infiltradas em pacotes de estímulo econômico ou infringindo descaradamente regras básicas do comércio internacional, investidas protecionistas se multiplicaram nos últimos meses. Nos Estados Unidos, maior parceiro comercial do Brasil, o governo Obama lançou um pacote de quase 800 bilhões de dólares, incluindo as controversas cláusulas buy american (algo como "compre produto americano"), com o intuito de gerar pelo menos 3 milhões de empregos. Na prática, foram inicialmente estabelecidos benefícios fiscais a empresas americanas que preferirem ferro, aço e outros itens produzidos no país. A iniciativa gerou protestos no mundo todo, e Obama decidiu retirar do pacote as restrições às empresas europeias e canadenses, que ameaçaram abrir processo contra os Estados Unidos na Organização Mundial do Comércio. No mesmo rumo, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, aprovou ajuda de 6,5 bilhões de euros para montadoras, recomendando que as beneficiadas investissem dentro da França para criar ou manter empregos no país. A crise ainda gerou uma nova variedade de vírus protecionista, o que a revista The Economist chama de "nacionalismo econômico". Trata-se da recusa, seja por incapacidade financeira, sejam por restrições deliberadas, de os bancos de países ricos emprestarem aos do mundo em desenvolvimento. Foi justamente esse corte repentino no crédito o principal canal de contágio da crise global no Brasil. O presidente do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Kahn, se diz preocupado com o fato de, ao capitalizar bancos em dificuldades, os governos do Primeiro Mundo instruírem os banqueiros a manter o dinheiro em casa.

Para o Brasil, os efeitos comerciais mais diretos estão sendo provocados pelas medidas impostas pela Argentina, segunda maior importadora de produtos brasileiros. Lá, o protecionismo ressurgiu inicialmente sob o disfarce da burocracia: o governo da presidente Cristina Kirchner promoveu aumento de alíquotas de importação e ampliou o número de produtos que precisam de licença para entrar no país. O documento está dentro das regras da OMC, mas vem sendo emitido com prazo superior ao máximo de 60 dias fixado pelo órgão. O setor calçadista brasileiro tem sido um dos mais afetados. "Muitos clientes cancelaram pedidos por causa dos atrasos, pois os sapatos seguem as estações do ano e têm tempo certo para ser vendidos", diz Paulo Tigre, presidente da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul. Para tentar resolver o impasse, argentinos e brasileiros travam intensas negociações. Depois de um primeiro encontro em Brasília, em fevereiro, mais duas reuniões de alto nível estão marcadas para São Paulo e Buenos Aires. De sua parte, os argentinos dizem não poder suportar a competitividade brasileira. Irritado com a resistência argentina em manter as barreiras aos produtos brasileiros, o secretário de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Welber Barral, ameaça acionar a OMC. "Em 2008, as barreiras argentinas causaram prejuízo de 1,5 bilhão de dólares aos exportadores brasileiros", diz Barral.


Num ambiente em que governos de vários países, incluindo os mais desenvolvidos, agem de maneira protecionista, o que é melhor fazer? Aderir à onda ou lutar contra ela? Há, no leque de reações possíveis, formas mais ou menos inteligentes de lidar com o problema? Com a experiência de quem foi embaixador brasileiro em Londres e em Washington, o ex-diplomata Rubens Barbosa avalia que há, sim, alternativas boas e más entre as opções. "O protecionismo é ruim para todo mundo no longo prazo e o Brasil precisa afirmar sua posição contrária a ele", diz. "Mas também é necessário saber se defender." Nesta fase, em que o problema se dissemina com força no mundo, é recomendável que o governo monitore com frequência redobrada e com lente de aumento poderosa todo o movimento de importações e exportações. O Brasil conta com mais de uma centena de especialistas distribuídos pelos ministérios das Relações Exteriores e do Desenvolvimento, além da Apex, agência de promoção comercial brasileira. No âmbito do Itamaraty, além de um time de 40 profissionais do departamento comercial, o governo mantém diplomatas espalhados pelo mundo, atentos ao surgimento de barreiras a produtos brasileiros. O país tem ainda uma série de entidades de classe na iniciativa privada que podem ajudar com informações. "Esse trabalho técnico é fundamental, pois é preciso saber o que ocorre com milhares de produtos vendidos em inúmeros países", diz Barral. "Além disso, muitas vezes o protecionismo é disfarçado, o que torna o trabalho de acompanhamento ainda mais difícil - e importante."

Caso sejam identificadas práticas de concorrência desleal, a saída é reagir, mas sempre obedecendo às normas internacionais. O melhor caminho é usar a favor as regras e os foros de solução de conflitos de organismos como a própria OMC, como o Brasil já fez no passado, obtendo vitória contra os europeus no mercado de açúcar. Também não vale deflagrar uma guerra comercial por um problema localizado num único setor, já que isso só faz crescer o problema. "Não adianta partir para o simples olho por olho, dente por dente, pois a criação de barreiras às importações pode prejudicar ainda mais as empresas locais", diz Mário Marconini, presidente do Conselho de Relações Internacionais da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Essa visão, de que as relações internacionais são complexas e devem ser tratadas com cautela, foi o que moveu muitos empresários brasileiros em janeiro a reclamar quando o governo impôs licenças prévias de importação para produtos de 17 setores que representam mais de 60% das compras externas do país. Diante da medida rudimentar, os protestos foram imediatos, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva logo a revogou, praticamente se desculpando pela barbeiragem de sua equipe. Os empresários "insurgentes", que fizeram a pressão nesse episódio, são os que aprenderam que a globalização é uma via de duas mãos. No curto prazo, a restrição às importações pode trazer algum benefício, mas no médio e longo prazo as próprias empresas locais sofrem prejuízos, pois não conseguem obter por preço razoável insumos sem os quais perdem competitividade. Além disso, o comportamento atabalhoado deve ser evitado porque suja a imagem do país.


Uma regra de ouro, portanto, é nunca fechar o mercado levantando barreiras acintosas com alíquotas ou cotas restritivas - a menos que sejam identificadas práticas claras de concorrência desleal, como o dumping, por parte de empresas de outros países. "Em vez de fechar as fronteiras, é melhor o governo tentar ajudar os setores produtivos a ser mais competitivos e estimular o consumo doméstico", afirma Ricardo Mendes, da Prospectiva, consultoria especializada em relações internacionais. É o que vem sendo feito, com pacotes de centenas de bilhões de dólares, na China e em países europeus, além dos Estados Unidos. No Brasil, parte disso está se concretizando via aportes do BNDES e cortes de impostos que tornam os produtos caros para os consumidores brasileiros ou reduzem sua competitividade no mercado externo. Bons projetos de infraestrutura são preciosos para facilitar o escoamento dos produtos - que poderão chegar a preços melhores nos mercados lá fora. Há mais a fazer nessa linha. "O Brasil pode usar a desoneração tributária e a melhoria de crédito aos exportadores para dar competitividade aos setores prejudicados", diz André Nassar, presidente do Icone, um centro de estudos do comércio internacional mantido por associações do agronegócio.

Não é de hoje que medidas de proteção seduzem cidadãos e políticos. Mas já há consenso, na literatura econômica, de que o estímulo provocado por medidas dessa natureza se limita ao curto prazo. No longo prazo, países mais fechados tendem a crescer menos e a ver sua indústria ficar para trás. Alguns economistas consideram positiva a proteção à chamada "indústria nascente" - quando os países elegem algum novo setor para apoiar, e mesmo assim por tempo limitado. "Na história recente, os exemplos de proteção adotados por Japão, Coreia do Sul e Suécia demonstram que esse é o caminho para desenvolver negócios inovadores em seu estágio inicial", diz o economista sul-coreano Ha-Joon Chang, da Universidade de Cambridge. Mas, embora um alto nível de competição possa ser fatal para negócios jovens, a ausência de competição - por meio do protecionismo continuado - também é letal para a inovação e a produtividade.

Parte do agronegócio europeu é exemplo disso. O custo da carne produzida no Velho Continente é significativamente maior que o do Brasil. No entanto, a Europa impõe limites de volume às importações, impedindo a expansão das compras de países como o Brasil. Pior: a União Europeia só autoriza a compra de carne brasileira industrializada, alegando riscos sanitários para impedir a entrada do produto in natura. Muitos consideram que isso é, na verdade, um artifício para favorecer produtores locais. "Sob o disfarce de precauções sanitárias ou de querer proteger o meio ambiente e os direitos trabalhistas, muitas dessas barreiras visam neutralizar a competição que eles exercem sobre os mercados desenvolvidos", diz o economista Jagdish Bhagwati, da Universidade Columbia, uma autoridade mundial em comércio. Segundo ele, as barreiras não tarifárias são a forma mais perversa de protecionismo praticado por países ricos. A saída, diz, é centrar esforços em novas rodadas de liberalização comercial - que hoje parecem cada vez mais distantes.

Diante das dificuldades para concluir a Rodada de Doha, da OMC, a principal negociação global em curso, uma nova tendência são os acordos setoriais. "O futuro do comércio internacional passa necessariamente por esse tipo de acordo", diz o ex-ministro do Desenvolvimento e ex-embaixador Sérgio Amaral. "Por serem menos ambiciosos, eles são muito mais viáveis." Tais acordos consistem na reunião de setores produtivos afins de um ou mais países para negociar a liberalização do comércio, com redução gradual de tarifas. No Brasil, setores competitivos, como o de minérios, vidros planos e pedras como granitos, já demonstraram estar abertos a esse tipo de negociação com outros países. Para Otto Nogami, professor de mercado econômico global do Ibmec São Paulo, esta seria também a hora de o Brasil retomar uma agenda que ficou para trás: a dos acordos bilaterais de país para país. "Eles funcionam como uma via de mão dupla, com concessões em troca de concessões, o que pode ser útil contra o protecionismo e facilitar o comércio", diz.

É incontestável que a globalização amplifica a concorrência e as crises econômicas, como a atual. O trabalhador de uma fábrica brasileira pode perder o emprego se consumidores na Europa ou nos Estados Unidos deixarem de comprar o produto que ele fabrica. Ocorre que os benefícios proporcionados pela globalização são igualmente inegáveis. O aprofundamento da integração comercial e financeira na década de 90 promoveu uma aceleração no crescimento de países em desenvolvimento acima da média global. Como resultado disso, diminuiu a extrema pobreza e a classe média no mundo aumentou quase 70% em 15 anos, o maior avanço registrado desde a revolução industrial. O país que melhor aproveitou a intensificação do comércio internacional, a China, conseguiu reduzir de 28% para 9% o número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. É esse tipo de progresso que pode ser perdido caso os atuais governantes insistam em práticas protecionistas e decidam retroceder na globalização. No fundo, o protecionismo está para as relações internacionais como o egoísmo para as relações humanas. O egoísta quer ganhar sempre e só respeita as regras quando está ganhando. O problema é que nem sempre é possível que todos ganhem. E também não é possível haver jogo se os jogadores quiserem mudar as regras quando perdem.

Revista Exame - 03.2009

Gelo Inquieto

Água líquida abundante descoberta sob os maiores mantos de gelo do mundo pode intensificar o efeito desestabilizador do aquecimento global. Mesmo sem se dissolver, enormes volumes de gelo podem mergulhar no mar e elevar seu nível de forma catastrófica
por Robin E. Bell
SEBASTIAN COPELAND, www.antarcticabook.com

ENORMES PLATAFORMAS FLUTUANTES ao largo da península Antártica marcam o fim de um grande deslizamento de gelo. O movimento começa com nevascas no interior do continente. A neve se compacta formando gelo e lentamente se desloca para as bordas do continente, de onde mergulha no oceano. À medida que as mudanças climáticas aceleram o colapso de plataformas, também estimulam esse movimento rumo ao mar

Enquanto nosso laboratório aéreo de pesquisa, o P-3, sobrevoava a superfície gelada do mar de Weddell, eu estava grudada ao chão. Deitada de bruços observava atentamente através da vigia inferior focas, pingüins e icebergs se aproximando e se afastando do campo de visão. De uma altura de 150 metros tudo parecia reduzido, exceto as enormes plataformas de gelo – aparentemente intermináveis, flutuando no oceano Austral que envolve todo o continente antártico.

Em meados dos anos 80 todos os nossos vôos eram de reconhecimento: dispúnhamos de 12 horas no ar, desde a saída da base, no sul do Chile. Esse tempo era mais que suficiente para discutir com os pilotos eventuais pousos forçados nas plataformas de gelo. Não era conversa fiada. Mais de uma vez perdemos um de nossos quatro motores, e em 1987 uma rachadura imensa foi vista durante muito tempo ao longo da borda da plataforma de gelo Larsen B, fora da península Antártica – deixando claro que, no caso de um pouso de emergência, o contato com o solo não seria suave.

A rachadura também nos fez pensar: estaria o oceano abaixo dessas plataformas de gelo suficientemente aquecido para permitir que elas se rompessem, mesmo que tivessem permanecido estáveis por mais de 10 mil anos?


BRIAN MARANAN PINEDA


BASTA ACRESCENTAR ÁGUA: Não precisa derreter. O nível de água no copo da esquerda sobe quando se adiciona gelo (centro). Quando o gelo derrete, o nível da água permanece o mesmo (direita). O nível global dos oceanos sobe da mesma forma quando o gelo desliza do solo e flutua no mar

Quase uma década depois, Ted Scambos, meu colega do National Snow and Ice Data Center, em Boulder, Colorado, começou a notar uma mudança nas imagens do satélite meteorológico nos mesmos mantos de gelo que eu havia observado do P-3. Manchas escuras, como pintas na pele, surgiam na monótona brancura de gelo. Imagens coloridas posteriores mostraram que as pintas escuras eram áreas de um azulescuro brilhante. As mudanças climáticas globais estavam aquecendo a península Antártica mais rapidamente que em qualquer outro lugar na Terra, e em partes da superfície de gelo da Larsen B estavam se formando lagos azuis devido ao derretimento do gelo. Os glaciólogos Gordon de Q. Robin, recentemente falecido, e Hans Weertman, da Northwestern University, haviam sugerido, várias décadas antes, que a água da superfície provocaria o colapso de plataformas de gelo. Scambos percebeu que a água represada poderia realmente fazer isso. Esculpindo seu caminho pela plataforma de gelo até o oceano abaixo, provocaria o colapso de toda a plataforma. Mas, até aquele momento, nada havia ocorrido.

Nada, até o começo do verão antártico de 2001-2002. Em novembro de 2001 Scambos recebeu uma mensagem de Pedro Skvarca, glaciólogo do Instituto Antártico Argentino, em Buenos Aires, que estava tentando realizar um trabalho de campo na Larsen B. Havia água por todos os lados. Formavam-se rachaduras profundas. Skvarca reclamava que era impossível se deslocar pela superfície. No fi m de fevereiro de 2002, os lagos começaram a desaparecer. A água estava de fato escavando seu caminho através do manto de gelo, e os lagos haviam secado. Mas pela metade de março imagens surpreendentes de satélite mostraram que mais de 3.300 km2 da Larsen B, um bloco equivalente a quase três vezes a área do Rio de Janeiro, haviam se fragmentado. Nada mais restou dele, senão uma multidão de blocos de gelo. Nosso local de pouso de emergência, estável durante milhares de anos, havia desaparecido. Em 20 de março, imagens impressionantes do colapso da plataforma de gelo, feitas por Scambos, apareceram na capa do
New York Times.

JAMES BALOG Aurora Photos


NO MANTO DE GELO DA GROENLÂNDIA
a grande quantidade de água na superfície, decorrente do derretimento de gelo pelo ar aquecido, é retratada de forma dramática nas duas fotos. No verão a superfície de gelo fica salpicada por lagos, como o que aparece acima, com centenas de metros de extensão, e fraturado com inúmeras fendas. Uma torrente de água escoa para dentro de um moulin, orifício profundo no gelo (abaixo), e escava seu caminho até o fundo do manto, onde ajuda a acelerar o fluxo do gelo. As plataformas de gelo flutuante da Antártida também estão acumulando água na superfície.

Repentinamente, a possibilidade de que o aquecimento global pudesse provocar mudanças rápidas no gelo polar tornou-se realidade. Em agosto seguinte, como um reforço a essa possibilidade, a extensão de gelo oceânico antártico atingiu uma baixa histórica, e no verão o derretimento do manto de gelo da Groenlândia superou tudo que já se tinha observado. Na Groenlândia, as águas liberadas pelo gelo derretido também fluíam pelas rachaduras e abriam buracos no gelo, conhecidos como moulins (moinhos, em francês) – e depois provavelmente, se precipitavam até a base do manto de gelo, levando com elas o calor do verão. Lá, em vez de se misturar com a água do mar, como aconteceu no colapso da plataforma glacial Larsen B, a água provavelmente se misturou com lama, formando uma massa pastosa que foi suavizando o caminho pelo leito de pedras, “engraxando” ou lubrificando a fronteira entre gelo e rocha. Por alguma razão, o manto de gelo gigante da Groenlândia estava sendo acelerado através da sua ancoragem rochosa em direção ao mar.

Mais recentemente, como parte das investigações programadas para o Ano Polar Internacional (IPY), também rastreamos os meandros de um sistema de “encanamento” de água na base dos grandes mantos glaciais da Antártida. Embora provavelmente boa parte da água líquida que provoca o deslizamento do manto de gelo na Antártida não provenha da superfície, ela produz o mesmo efeito lubrificante. E lá também parte das camadas de gelo sofre um deslizamento acelerado e colapsos constantes.

Por que esses processos são tão perturbadores e por que é importante compreendê-los? Um terço da população mundial vive abaixo ou até 90 metros acima do nível do mar e a maioria das grandes cidades do planeta situa-se próximo ao mar. Para cada 615 km3 de gelo que se rompem das geleiras e caem no mar, o nível global das águas sobe cerca de 1,6 mm. Isso pode não parecer muito, mas considere o volume de gelo concentrado hoje nos três maiores mantos de gelo do planeta. Se o gelo do oeste antártico desaparecesse, o nível do mar subiria quase 5,7 metros; o gelo do manto da Groenlândia acrescentaria a esse valor 7,2 metros e o manto leste da Antártida poderia acrescentar outros 51 metros ao nível dos oceanos do planeta: mais de 64 metros, ao todo. (A título de comparação, a Estátua da Liberdade, dos pés à ponta da tocha, mede cerca de 45 metros de altura.) A água líquida desempenha um papel crucial nos movimentos internos e nos fluxos dos mantos de gelo em direção ao mar. Saber como a água líquida se forma, por onde escoa e como as mudanças climáticas globais podem intensificar seus efeitos no gelo polar do planeta são questões de enorme importância para prever – e preparar-se para – as conseqüências do aquecimento global sobre o nível dos oceanos.

Estrondos no Gelo
Há muito tempo os glaciólogos têm conhecimento de que os mantos de gelo estão se movendo, mas supunham que essas mudanças eram graduais. No cenário ideal um manto de gelo acumula neve – formada basicamente pela evaporação da água do mar – no seu centro e devolve ao mar à sua volta uma massa aproximadamente igual, pelo derretimento e formação de icebergs. Na Antártida, por exemplo, cerca de 90% do gelo que atinge o mar é transportado por verdadeiras correntes de gelo, gigantescas esteiras rolantes com a espessura do manto das vizinhanças (entre 1 km e 2 km) e perto de 100 km de largura, e se estendem “correnteza acima” por mais de 800 km do mar. As correntes de gelo se deslocam em solavancos, em um movimento de deslocamento/estacionamento, produzindo fendas nas laterais à medida que avançam. Próximo das margens do manto de gelo as correntes se deslocam tipicamente a uma velocidade entre 195 e mil metros por ano enquanto o gelo das redondezas mal se mexe.

Mas os mantos reais não estão permanentemente estáticos no planeta. Estudos de núcleos de gelo, por exemplo, sugerem que o manto de gelo da Groenlândia em um passado remoto foi menor que hoje, particularmente durante o período interglacial mais recente, há 120 mil anos, quando as temperaturas globais eram amenas. Em 2007, Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague, liderou um grupo internacional em busca de evidências de ecossistemas ancestrais, preservados no DNA, na base do manto glacial. As descobertas revelaram que a Groenlândia foi coberta por coníferas há pouco mais de 400 mil anos, onde viviam invertebrados como besouros e borboletas. Em resumo, o aumento das temperaturas globais provocará uma retração da Groenlândia.

Nos últimos cinco anos os pesquisadores desenvolveram duas idéias sobre os processos que poderiam provocar a aceleração de fluxos de gelo. A primeira é que uma corrente de gelo pode ser rapidamente acelerada se sua base encontrar lama, água líquida ou até lagos profundos que lubrifiquem continuamente o seu percurso. A segunda é que se plataformas de gelo a caminho do mar (flutuando no oceano Austral em torno da Antártida) ou línguas de gelo (plataformas de gelo longas e estreitas presas a uma geleira de descarga, comuns na Groenlândia) se romperem, sua massa não conseguirá mais deter o fluxo das correntes de gelo. As geleiras que alimentam a plataforma glacial Larsen B, por exemplo, se aceleraram dramaticamente depois que o manto de gelo colapsou em 2002. Assim, “desimpedidas”, as correntes de gelo e as geleiras provavelmente aceleraram sua migração em direção ao mar, para aumentar seu volume global.

Há muito tempo os glaciólogos reconheceram um terceiro tipo de mecanismo que acelera o fluxo das camadas de gelo. Assim como as geleiras se aceleraram quando a Larsen B colapsou, uma plataforma de gelo se acelera se as correntes aquecidas do oceano tornarem mais fina a plataforma sobre a qual o manto de gelo desliza. Na região do marde Amundsen, no oeste antártico, a superfície do manto de gelo está afundando cerca de 1,5 metro por ano e a aceleração do manto aumentou cerca de 10%. Esses dois efeitos provavelmente se devem ao afinamento da plataforma de gelo.

“Engraxando as Derrapagens”
O colapso da plataforma glacial Larsen B e a associação igualmente alarmante entre a repentina drenagem de água da superfície na Groenlândia e os fluxos acelerados nos mantos de gelo me inspiraram e a vários colegas a concentrar esforços no estudo do papel que a água líquida exerce sobre os mantos de gelo. Estamos propensos a acreditar que a água líquida que tem mantido o ritmo do movimento do gelo rumo ao mar e as nevascas no interior ajudaram a manter o equilíbrio dinâmico dos mantos de gelo em alguns casos durante milhões de anos. Nas correntes de gelo do oeste antártico, por exemplo, a água lubrificante se torna líquida na base do manto de gelo devido ao calor proveniente do atrito entre o gelo em movimento e o leito rochoso abaixo dele. No leste antártico a água se liquefaz na base do manto de gelo basicamente devido ao calor da crosta continental inferior. Nessa região, o gelo é tão espesso que passa a funcionar como uma manta isolante, capturando o calor geotérmico. Toda essa água subglacial representa um enorme potencial para a instabilidade dos movimentos de gelo. Os glaciólogos não imaginavam que eventos como o colapso da Larsen B pudessem ser responsáveis mais prováveis pela aceleração das taxas de fluxo das correntes de gelo.

A idéia de que a base do manto de gelo poderia derreter surgiu em 1955, quando Gordon Robin sugeriu que o calor geotérmico é capaz de produzir quantidades significativas de água subglacial, desde que o manto de gelo acima seja suficientemente espesso para isolar a base de sua superfície fria. Mas essa idéia não foi confirmada até os anos 70, e posteriormente o foi de forma alarmante. Nessa época o radar de penetração no gelo já estava desenvolvido o suficiente para permitir “ver” através do manto até a superfície subjacente abaixo. Robin formou um grupo de pesquisadores para coletar dados utilizando o radar a bordo de uma aeronave que voava em um vai-e-vem sobre o continente antártico. A maior parte do tempo o sinal de retorno do radar captado por um osciloscópio a bordo era irregular, como seria de esperar para sinais ecoando em montanhas e vales cobertos por grossas camadas de gelo. Em alguns pontos, no entanto, era como se alguém tivesse desenhado uma linha reta na tela do osciloscópio. O sinal do radar estava sendo refletido por uma superfície semelhante a um espelho. Robin concluiu que essa superfície deveria ser água sob o manto de gelo. Os dados de radar mostraram que parte dos “espelhos” subglaciais persistiam por mais de 30 km, mas ele não tinha idéia de sua verdadeira escala ou profundidade.

Uma vez mais, Robin teve de esperar quase duas décadas por uma nova tecnologia. Nos anos 90, a Agência Espacial Européia completou o primeiro mapeamento de grande escala da superfície de gelo. Olhando para a imagem, somos imediatamente surpreendidos por uma região plana no centro do manto de gelo. Cerca de 3 km acima da água, Vostok, a estação russa na Antártida, observa uma superfície de gelo que delineia os contornos planos de um lago. As dimensões do lago Vostok aparecem claramente agora: são 19.500 km2.

Encanamento Subglacial
A descoberta de lagos subglaciais mudou radicalmente a forma como os pesquisadores vêem a água sob o gelo. Mais de 150 lagos subglaciais foram localizados na Antártida até agora. O volume combinado desses lagos é de aproximadamente 30% da água de todos os lagos da superfície do planeta. Meus estudos sobre o lago Vostok, no leste da Antártida, em 2001, revelaram um sistema bastante estável. Nos últimos 50 mil anos houve um lento intercâmbio da água do lago com o manto de gelo abaixo, através de fusões e congelamentos sucessivos. Naturalmente, num passado mais remoto, as coisas podem não ter sido tão tranqüilas: evidências geológicas mostram que lagos subglaciais podem se esgotar repentinamente, em um único estertor, liberando quantidades enormes de água sob a superfície de gelo ou diretamente para o oceano. Vales imensos, com mais de 240 metros de profundidade circundam completamente o continente antártico como cicatrizes de inundações gigantescas.

Mas acreditava-se que Vostok e outros lagos subglaciais eram museus naturais, isolados do resto do mundo há milhões de anos. Em 1997 o primeiro indício de que essas inundações subglaciais ainda ocorrem surgiu no oeste da Antártida. A superfície do manto de gelo cedeu mais de 50 cm em três semanas. A única explicação plausível era que a água de um lago subglacial estava sendo drenada, o que fazia a superfície de gelo. Nesse mesmo ano um grupo liderado por Duncan J. Wingham, da University College London, também mediu, durante todo o ano, as elevações sobre a maior parte do gelo leste da Antártida. Em determinada área, o gelo tinha cedido cerca de 3 metros em 16 meses, enquanto a cerca de 300 km montanha abaixo duas áreas tinham se elevado aproximadamente 1 metro. Uma vez mais a explicação era óbvia: um rio subglacial tinha retirado a água de um lago e sua correnteza havia preenchido dois lagos mais abaixo.

Há pouco mais de um ano Helen A. Fricker, do Scripps Institution of Oceanography, em La Jolla, Califórnia, estava analisando medidas precisas de elevações da superfície feitas pelo satélite ICESat. Pouco antes de Fricker se ausentar durante um fim de semana, um dos perfi s do manto de gelo divergiu radicalmente. Uma região ao longo da borda de uma das maiores correntes de gelo do oeste da Antártida havia colapsado uma queda de quase 10 metros em 24 meses. Ao voltar do fim de semana Fricker examinou a superfície de gelo em torno do novo lago, o lago Engelhardt – e percebeu imediatamente que esse era mais um de uma série de lagos subglaciais em cascata. Grandes quantidades de água escoando através do sistema de encanamentos, sob as maiores correntes de gelo, podem se tornar mais um agente de mudanças rápidas no fluxo de uma corrente de gelo.

Efeito Lago
Mais ou menos na mesma época, com a suspeita de que lagos subglaciais poderiam afetar a estabilidade do manto de gelo, percebi que novas imagens de satélites facilitaram a localização desses lagos. Além disso, os modelos de mantos de gelo previam mais um conjunto de grandes lagos que ainda estava por ser descoberto e eu alimentava a expectativa de encontrá-los. Assim, com a ajuda de novas imagens e de dados de laser do ICESat, meus colegas e eu descobrimos quatro novos lagos subglaciais, três deles maiores que todos os outros juntos, exceto o Vostok.

Comparando com rios subglaciais e lagos colapsantes, “meus” quatro novos lagos eram pouco atraentes. Todos os novos resultados empolgantes no meu campo se concentravam nos movimentos rápidos do gelo polar e no potencial aumento que os mantos de gelo poderiam causar no nível do mar. Mesmo assim os lagos continuaram me desafiando. Eles estavam longe do centro do manto de gelo, onde ocorre a maioria dos lagos. Fendas e rachaduras se formavam ao longo das bordas de um lago; eu podia ver os campos de fendas nas imagens de satélite.

Fendas, como já mencionei, se formam quando uma corrente de gelo avança rapidamente sobre o manto de gelo. Olhando para as imagens eu podia ver linhas de fluxo na superfície de gelo que ligavam a região das fendas a uma corrente de gelo rápida conhecida como Recovery. A interferometria por satélite mostrou que essa corrente se acelerava a partir dos lagos. Antes de o manto de gelo atravessar os lagos, sua velocidade não chegava a 3 metros por ano. Do outro lado dos lagos, a camada de gelo se deslocava à velocidade de cerca de 20 a 30 metros por ano. Por isso os lagos pareciam estar provocando uma corrente de gelo na superfície do manto. Essas descobertas permitiram, pela primeira vez, que lagos subglaciais fossem diretamente relacionados à aceleração dos fluxos de gelo na superfície.

Ainda não estamos certos do porquê dessa relação. Talvez houvesse um escoamento lento dos lagos em suas bacias, fornecendo assim a água necessária para lubrificar a base do manto de gelo. Ou a água do lago poderia aquecer a base do manto à medida que atravessa o lago, facilitando a aceleração do gelo do lado mais afastado do lago.

Ano Polar Internacional
A idéia que tínhamos do papel da água nos mantos de gelo e dos lagos subglaciais mudou radicalmente nos últimos dois anos. Mas essa nova compreensão ainda está longe de ser completa. Uma das maiores metas do Ano Polar Internacional (IPY, em inglês) é avaliar o status dos mantos de gelo polares e determinar como poderão ser alterados em um futuro próximo. O relatório recente apresentado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês) enfatizou que o grande ponto de interrogação na previsão dos efeitos do aquecimento global está na incerteza sobre o futuro do gelo dos mantos polares. Nenhum dos modelos climáticos utilizados até hoje leva em conta aspectos tão importantes como as correntes de gelo e nenhum deles incorporou um representação exata do fundo de um manto de gelo.

Somente por essas razões se pode dizer que a predição de mudanças futuras no nível do mar, a partir dos modelos climáticos atuais, subestima significativamente a futura contribuição dos mantos de gelo para a elevação do nível dos oceanos. No entanto, a atualização dos modelos através da quantificação dos movimentos do gelo ainda vai exigir grandes esforços de pesquisas futuras.

A coisa é simples. Se os glaciólogos não souberem o que está se passando no fundo dos mantos de gelo, não poderão prever como esses mantos se comportarão com o passar do tempo. E as questões-chave para essas previsões são: onde exatamente se encontra a água subglacial? Como ela se movimenta? Como afeta o deslocamento dos mantos de gelo?

O IPY oferece uma excelente oportunidade de respostas. Com mobilização de grupos científicos internacionais e a logística adequada, os pesquisadores poderão programar uma nova geração de radares aéreos para mapear a água subglacial. Novos instrumentos de gravidade serão adaptados para avaliar o volume de água dos lagos subglaciais. Medidas precisas da elevação da superfície do gelo permitirão monitorar o movimento da água. Sismógrafos instalados recentemente estarão atentos aos terremotos glaciais.

Na Groenlândia os glaciólogos vão instalar instrumentos para medir o movimento do manto de gelo através das maiores geleiras de descarga. O Center for the Remote Sensing of Ice Sheets, em Lawrence, no Kansas, vai fornecer um veículo aéreo não-tripulado para mapear sistematicamente a água na base do manto de gelo. No leste da Antártida, meu grupo vai colocar no ar o Twin Otter (Lontras Gêmeas) – um avião bimotor a hélice – que voará sobre os lagos Recovery e as montanhas Gamburtsev para descobrir por que os lagos se formam e como deslocam as correntes de gelo. Simultaneamente, um grupo formado por americanos e noruegueses, incluindo Ted Scambos, deverá cruzar os lagos Recovery, medir a velocidade do manto de gelo e o gradiente de temperatura ao longo do topo. Um grupo russo vai procurar obter amostras do lago Vostok; um grupo italiano se encarregará de estudar o lago Concórdia, no leste da Antártida; e um grupo britânico fará o levantamento de um lago nas montanhas Ellsworth no oeste da Antártida.

Todos esses esforços – em condições que continuam adversas para o trabalho humano – refletem o consenso e a urgência da comunidade científica internacional. Entender as mudanças que ocorrem nos mantos de gelo e como a água comanda essa dinâmica é crucial para o futuro de nossa sociedade.

CONCEITOS-CHAVE
- Os mantos de gelo ancorados no solo da Groenlândia e da Antártida contêm água suficiente para levar mais de 60 metros o nível global do mar.

- Sob os mantos de gelo, existe um complexo “sistema de encanamentos” formado por rios, lagos e água líquida. Essa água “lubrifica” o fluxo de vastas correntes de gelo que seguem rumo ao oceano.

- Durante milênios a descarga de gelo no mar tem sido contrabalançada por nevascas. Mas, com ar aquecido, ou a água lubrificando ainda mais, o fluxo remove as barreiras naturais, enormes quantidade de gelo abandonadas na direção do mar.

- Modelos que calculam potenciais elevações do nível dos oceanos devido às mudanças climáticas têm ignorado os efeitos de água subglacial e das enormes correntes de gelo na massa de gelo que é atirada ao mar.
– Os editores

[O DESAFIO] As Maiores Plataformas de Gelo do Mundo
MAPPING SPECIALISTS



Três plataformas de gelo, uma que cobre a maior parte da Groenlândia e duas que se estendem sobre a Antártida (separadas pelas montanhas Transantárticas), detêm 99% do gelo que elevaria o nível dos oceanos se o aquecimento global as derretesse ou se ficassem flutuando (o restante 1% está retido em geleiras montanhosas). O manto de gelo da Groenlândia situa-se quase que totalmente sobre um leito de rochas; aproximadamente metade flui para o oceano na forma de gelo derretido e metade como gelo glacial. Na Antártida, a maior parte do gelo atirado no oceano provém de regiões onde gelo sólido se desloca rapidamente, chamadas correntes de gelo.

- Pesquisadores descobriram, sob o gelo antártico, uma extensa rede de lagos e rios; o mapa ao lado mostra as posições “subglaciais” de várias dessas formações. Os lagos Recovery (inserção abaixo à direita), quatro lagos subglaciais descobertos pela autora e denominados A, B, C e D, são os primeiros lagos de que se tem notícia que contribuíram para o desencadeamento de uma corrente de gelo de deslocamento rápido. A corrente de gelo Recovery desliza por cerca de 800 km até a plataforma de gelo Filchner.

[AS CONSEQÜÊNCIAS] Inundações pelos Mantos de Gelo
MAPPING SPECIALISTS



Se os atuais mantos de gelo desaparecessem o aumento do nível do mar resultante afetaria o litoral do mundo todo; o efeito na costa da Flórida é mostrado na ilustração. Na verdade, se as mudanças climáticas derreterem o manto de gelo, partes dos outros mantos também desaparecerão e os efeitos sobre o nível do mar serão ainda maiores que o descrito aqui.

Imagem 01 - O manto de gelo oeste da Antártida contém gelo suficiente para elevar o nível global do mar cerca de 5,7 metros. O litoral e o sul da Flórida seriam completamente inundados.

Imagem 02 - O manto de gelo da Groenlândia produziria aumento do nível global do mar equivalente a 7,2 metros. A inundação da Flórida seria semelhante ao caso do oeste antártico.

Imagem 03 - O manto de gelo leste da Antártida poderia elevar o nível global do mar cerca de 51 metros. Praticamente todo o estado da Flórida ficaria debaixo d’água.

O COLAPSO DA LARSEN B
NASA/GODDARD SPACE FLIGHT CENTER SCIENTIFIC VISUALIZATION STUDIO


Imagens de satélite registram o súbito colapso de uma plataforma de gelo com área equivalente a três vezes a área do Rio de Janeiro para fora da península Antártica, conhecida como Larsen B. As pequenas regiões escuras na superfície do gelo, na imagem de cima (abaixo), são lagos de gelo derretido que se formaram devido ao ar excepcionalmente mais quente; a região azul-clara, na imagem de baixo, é formada por fragmentos do segmento original da plataforma de gelo.

[MOVIMENTO DO GELO 101] Tranqüilidade em uma Terra Gelada
KEVIN HAND


O diagrama esquemático mostra como o manto de gelo se desloca em direção ao mar, por um declive sobre o leito de pedra que o sustenta, enquanto nevascas produzidas pela água do mar que evapora preenchem parte da massa de gelo na sua superfície. A maior parte do gelo proveniente do interior do continente é transportada para o mar por meio de correntes de gelo (esteiras rolantes de gelo) que se desprendem do manto das redondezas, deslocando-se relativamente rápido; o manto de gelo também se desloca na direção do mar, mas mais lentamente. Quando o gelo em movimento sai da “linha de desgaste”, o gelo flutuante, chamado de plataforma de gelo, desloca uma massa de água igual ao seu próprio peso, elevando assim o nível do mar. Ao longo de vários milênios passados esses processos não elevaram o nível do mar ou reduziram os mantos de gelo porque a evaporação da água do mar e as nevascas no interior do continente contrabalançavam essas perdas.

[EQUILÍBRIO PERTURBADO] Nem Tão Tranqüilo, Nem Muito Gelado
KEVIN HAND


Redes de água líquida recentemente descobertas abaixo de mantos de gelo podem tornar o gelo muito mais instável que supunham os pesquisadores – e muito mais sensível aos efeitos do aquecimento global.

A água localizada sob o gelo, independentemente do processo que a levou até lá, pode lubrificar as superfícies de contato entre o leito rochoso e a parte de inferior de um manto glacial. Na Groenlândia ●a o clima mais ameno do Ártico faz o gelo derreter e a água produzida na superfície escoar pelas fendas, ou moulins, e ser levada, juntamente com o calor solar, para a base do manto. A drenagem tem sido intimamente relacionada à aceleração de massas de gelo em direção ao mar. Na Antártida, a drenagem da água da superfície não produz praticamente nenhum efeito nos movimentos do manto de gelo. A água produzida pelo derretimento do gelo das camadas inferiores, decorrente do calor geotérmico ●b, ou atrito ●c, fica aprisionada devido ao isolamento térmico produzido pela espessura do próprio gelo. A água também flui através de um vasto sistema de rios e lagos subglaciais comunicantes ●d. Na Antártida, a água da base dos mantos de gelo fica praticamente isolada dos efeitos diretos de curta duração do aquecimento global, mas sua função lubrificante torna os mantos sensíveis a qualquer perturbação que possa remover obstáculos ao seu fluxo, como um reforço das plataformas de gelo.

Socorro! Estou Perdendo as Escoras!
Gelos deslizantes, particularmente no oeste da Antártida, provavelmente se deslocariam rapidamente para o mar sob o efeito da gravidade se não fosse o efeito de escora das plataformas de gelo flutuantes que circundam o continente ●1 . O ar e a água do oceano relativamente mais quentes dos últimos anos tornaram as plataformas de gelo mais finas e, no caso da Larsen B, acabaram por rompê-la ●2 . Sem as escoras, uma corrente de gelo em movimento não será mais ser impedida de se lançar ao mar para provocar elevação de seu nível ●3

ANO POLAR INTERNACIONAL
Divulgação


Quando a plataforma de gelo Larsen B colapsou, em março de 2002, cientistas polares perceberam que seus programas de ação sobre o aquecimento global teriam de ser medidos em meses e anos, e não em décadas. O trabalho começou imediatamente com a organização do quarto ano polar Internacional (IPY, em inglês), que se estenderá até março de 2009. Mais de 50 mil cientistas de mais de 60 nações uniram seus esforços para melhor entender os ambientes polares. Aqui estão alguns dos antecedentes mais importantes do IPY:

1872-1874 Expedição austrohúngara ao pólo norte, tendo Karl Weyprecht como um de seus comandantes

1882-1883 O sonho de Weyprecht de coordenar uma cooperação internacional para o estudo dos pólos se realiza com o primeiro Ano Polar Internacional

1911 A expedição de Roald Amundsen é a primeira a chegar ao pólo sul

1912 A expedição de Robert Falcon Scott atinge o Pólo Sul algumas semanas depois de Amundsen; o grupo de Scott perece na viagem de retorno

1914-1916 A Expedição Transantártica, de Ernest Shackleton, fica presa no gelo e acaba resgatada de forma comovente

1932-1933 Segundo IPY

1957-1958 Ano Geofísico Internacional e terceiro IPY

2002 Colapso da plataforma de gelo Larsen B

2007-2009 Quarto IPY


Glaciology: lubricating lakes. Jack Kohler, em Nature, vol. 445, págs. 830 831, 22 de fevereiro de 2007.

Large subglacial lakes in east Antarctica at the onset of fastflowing ice streams. Robin E. Bell, Michael Studinger, Christopher A. Shuman, Mark A. Fahnestock e Ian Joughin, em Nature, vol. 445, págs. 904-907, 22 de fevereiro de 2007.

An active subglacial water system in west Antarctica mapped from space.
Helen Amanda Fricker, Ted Scambos, Robert Bindschadler e Laurie Padman, em Science, vol. 315, págs. 1544-1548, 16 de março de 2007.

Ice sheets. Charles R. Bentley, Robert H. Thomas e Isabella Velicogna . Sessão 6A, em Global Outlook for Ice and Snow, págs. 99-114; Programa Ambiental das Nações Unidas, 2007. Disponível em www.unep.org/geo/geo_ice

Robin E. Bell é diretora do programa Advance do Instituto da Terra, da Columbia University. É também pesquisadora sênior do Observatório da Terra Lamont-Doherty da mesma universidade, onde dirige um amplo programa de investigação na Antártida. Bell estuda o mecanismo do colapso de plataformas de gelo, assim como os ambientes frígidos situados abaixo do manto de gelo antártico. Liderou sete expedições à Antártida. É presidente do comitê de pesquisa polar da National Academies e foi vice-presidente do grupo internacional de planejamento do Ano Polar Internacional.

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