quarta-feira, 15 de julho de 2009

Crise política e golpe de Estado em Honduras e o retrocesso democrático na América Latina



Crise política e golpe de Estado em Honduras e o retrocesso democrático na América Latina
Taís Sandrim Julião
A história democrática da América Latina pode ser considerada recente se comparada às tradições norte-americanas e européias. Se avaliarmos o histórico da América Central, veremos que a questãopossui dimensões adicionais ao problema da historicidade, já que a reflexão nos leva a explorar aspectos relacionados a elementos centrais do sistema democrático contemporâneo, a saber, a efetividade e a estabilidade.

Ambas as características têm como pressuposto o papel fundamental do sufrágio universal, que por sua vez é garantido por uma Constituição que deve conter e representar os valores políticos esperados pela e para a sociedade. A transparência e a previsibilidade do processo eleitoral legalmente fundamentado sustentam, em grande medida, a legitimidade que os cidadãos atribuem tanto aos resultados, quanto ao processo em si.

Os eventos transcorridos neste último domingo (28 de junho) em Honduras, entretanto, colocaram em xeque estes fundamentos que, do ponto de vista da onda democrática que abarcou a América Latina de modo geral e a América Central em particular a partir da década de 1990, pareciam incorporados à lógica política destas regiões.

A história política de Honduras é marcada pelas dinâmicas estruturais que a presença do colonialismo ibérico e a influência direta dos Estados Unidos impuseram aos Estados da América Central. Após a sua independência do império espanhol no século XIX, Honduras figurou como mais um país que sofria intervenções norte-americanas e, diante disso, tinhasua soberania relativizada pelo peso do contexto regional em suas questões internas.

Esta tendência ficou particularmente acentuada a partir do final da década de 1970, quando então a América Central, sobretudo Nicarágua e El Salvador, passaram por agitações políticas relacionadas às atividades guerrilheiras na região e a preocupação norte-americana em deter possíveis focos esquerdistas.Honduras passou a figurar como base de apoio do exército dos Estados Unidos, e, diante desta importância estratégica para os interesses destes últimos, mantinha com este país um relacionamento bilateral marcado pela dependência econômica e pela pressão exercida nos processos políticos domésticos, notadamente em suas eleições.

Encerrado os anos da Guerra Fria, esperava-se que a região recuperasse paulatinamente a autonomia em suas decisões internas e que fosse possível diversificar os contatos internacionais, em especial àqueles de caráter econômico.Todavia, a presença norte-americana se impôs, e escassas foram e ainda são as alternativas de articulação que os países da região central do continente americano possuem.


No caso específico de Honduras, uma esperança surgiu a partir de 2006 quando foi eleito por vias democráticas o candidato a presidência Manuel Zelaya, do Partido Liberal. O presidente eleito apresentava propostas mais próximas à perspectiva da esquerda, trazendo para o debate questões cruciais para a realidade daquele país, a saber, sua dependência econômica e a pobreza generalizada que o caracteriza. O resultado deste posicionamento político de Zelaya foi um afastamento do país em relação aos Estados Unidos e uma maior aproximação aos Estados latino-americanos.

Nesse sentido, a eleição de Zelaya estava de acordo, por um lado, às expectativas dos cidadãos hondurenhos, que esperavam por uma política mais nacionalista, entendidas neste caso como mais próxima aos problemas básicos da economia do país e as necessidades da população. Por outro, enquadra-se na tendência à gauche que marca a democracia na América Latina, que desde 1990 vêm elegendo por vias legais e legítimas governos comprometidos com uma visão mais crítica da situação de seus países, inclusive em sua dimensão estrutural – que historicamente os colocam em posição desfavorável no relacionamento com outros países de modo geral, e com os Estados Unidos em particular.

O imbróglio que levou a deposição do presidente democraticamente eleito de Honduras está relacionado à consulta que seria realizada neste último domingo sobre a possibilidade de uma reforma constitucional.O projeto de Zelaya era de que, conjuntamente às eleições presidenciais, do Congresso e as municipais – que estão marcadas para novembro deste ano-, uma quarta consulta fosse realizada para averiguar se era o desejo da população que fosse convocada uma Assembléia Constituinte para reformar o texto constitucional. Assim, o presidente de Honduras buscava legitimar uma consulta adicional ao processo eleitoral regular previsto pela Constituição.

Esta atitude levou membros do próprio partido do presidente a decretar à inconstitucionalidade do procedimento, apoiados por setores do poder Judiciário e do Exército. Segundo os oposicionistas à consulta, o objetivo de Zelaya era político, acreditando que na nova Constituinte fosse inserida a possibilidade de reeleição do atual presidente. Desta forma, a justificativa para o golpe seria o risco de deturpação da democracia naquele país que a iniciativa do presidente eleito apresentava.

Roberto Micheletti, presidente do Congresso, foi quem liderou o processo de deposição do presidente Zelaya, apontando que haviam irregularidades jurídicas na consulta prevista para este domingo. Com o apoio do Exército, Zelaya, que legalmente permaneceria na presidência de Honduras até janeiro de 2010, foi preso e exilado na Costa Rica, assumindo Micheletti o chefe do executivo.

O golpe militar em Honduras gerou reações por parte da comunidade internacional. Na América Latina, o grupo de países que compõem a ALBA, liderado por Hugo Chávez, estão reunidos em Manágua para discutir o ocorrido, e colocam-se claramente em apoio ao presidente Zelaya. Os demais países sul-americanos reafirmam tal posição, concordando que tal episódio retrocede os avanços democráticos conquistados por todo o continente. Até o momento nenhum país se manifestou favorável ao reconhecimento da presidência de Micheletti em Honduras. Uma reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA) deverá ser chamada nos próximos dias para tratar do tema.

Os Estados Unidos e a União Européia defendem que Honduras deve respeitar o processo democrático e garantir que o presidente eleito volte ao cargo.Todavia, a situação coloca um desafio adicional à Barack Obama, que vêm mantendo o baixo perfil de relacionamento com a América Latina, apesar de ter declarado que um de seus objetivos é retomar a atenção dada à região. Este, pois, é um momento importante para Obama, que deverá se colocar ativamente no processo sob pena de ser acusado de negligência, como já foram outros presidentes dos Estados Unidos.

O caso de Honduras nos traz a oportunidade de empreender uma reflexão importante sobre a estabilidade democrática da América Latina. A região, que possui em seu histórico golpes militares, intervenções externas e instabilidades políticas de tipos variados, vê-se no século XXI mais uma vez desafiada. Século este em que, após assistir eleições tranqüilas e governos bem sucedidos da esquerda, mais do que nunca fazia-nos crer na consolidação da democracia. Eventos como as reformas constitucionais venezuelana e boliviana, que versavam sobre o processo de reeleição, representam sem dúvidas elementos de desconfiança acerca do fundamento político de iniciativas de consulta tais como as tomadas por Zelaya.

Estariam as democracias latino-americanas transformando-se democraticamente em ditaduras de uma esquerda reformada? Ou seriam estas instabilidades características à região, e, nesse sentido, cíclicas, uma espécie de elemento estrutural tal como a dependência econômica? Ou os valores democráticos da América Latina que sustentam seus Estados possuem particularidades que tornam estes últimos mais complexos e, como vêem mostrando os fatos, politicamente mais instáveis?


Este momento de crise, marcado por perguntas difíceis de serem respondidas ao calor dos fatos, não deve nos eximir, todavia, da necessidade e da responsabilidade de realizar uma reflexão crítica e em perspectiva histórica sobre os desafios que a América Latina deverá enfrentar para sustentar nas próximas décadas suas conquistas democráticas.

Taís Sandrim Julião é Mestranda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB (taisjuliao@unb.br).

Boletim Meridiano 47

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