sexta-feira, 31 de julho de 2009

O berço da humanidade - lago Turcana

Uma viagem ao árido lago Turcana, no noroeste do Quênia, é uma volta ao passado, quando nossos ancestrais saíram das árvores e se aventuraram pelo mundo

Texto: Airton Ortiz

Uma das paisagens mais espetaculares da África, o lago Turcana apresenta águas esverdeadas que contrastam com as ilhas vulcânicas no seu interior


Para onde caminha a humanidade, é uma incógnita. Mas de onde viemos, já sabemos: África. Para lá nos dirigimos, mais precisamente ao Quênia, uma viagem ao Jardim do Éden, o mítico lago Turcana, no noroeste do país, uma vasta região sem lei, infestada por refugiados sudaneses e etíopes em pé de guerra, salteadores armados com fuzis AK-47 e tribos em constante conflito.

Uma pequena parte das suas margens serviu de cenário para o filme O Jardineiro Fiel, de Fernando Meireles, que deu a Rachel Weisz o Oscar de melhor atriz coadjuvante em 2006. Algumas cenas aéreas do filme mostram a aridez e a violência do lugar. Tanto que a Organização das Nações Unidas, ONU, desaconselha os estrangeiros a cruzar pela região e os Estados Unidos proíbem seus cidadãos de entrarem no território turcana, especialmente na área próxima ao Sudão.

Uma vez por semana, os caminhões que saem de Nairóbi, no Quênia, e se dirigem a Adis-Adeba, capital da Etiópia, formam um longo comboio e seguem até a fronteira protegidos pelo Exército queniano. Mesmo assim, ataques acontecem. Quando eu estava preparando a expedição, ainda em Nairóbi, chegou a notícia de que rebeldes de duas tribos haviam atacado um comboio, retirado quatro pessoas de um caminhão e matado uma delas a pedradas. Segundo o código de honra local, quando os conflitos irrompem, o importante é lutar, qualquer que seja o saldo de mortes.

Diante disso, pela primeira vez em minhas expedições africanas, fui obrigado a contratar, além de um motorista e um cozinheiro, dois mercenários para me dar cobertura durante a viagem. Ex-guerrilheiros, eles mudaram de lado e agora ganham a vida vendendo proteção a quem puder pagar. É um negócio mais rentável do que a luta pela criação de um país independente entre o norte do Quênia e o sul da Etiópia. Armados com fuzis russos, um deles sempre viajava do lado de fora do carro, um aviso prévio de que, se fôssemos atacados, reagiríamos. Morreríamos todos, naturalmente, mas não sem lutar, como manda a tradição turcana.

A terra da mamba-negra

Aluguei material de acampamento e um possante jipe com tração nas quatro rodas, comprei mantimentos e lá fomos nós nessa bela e desafiadora jornada pela África selvagem, completamente fora dos tradicionais circuitos turísticos. O objetivo era conhecer a terra de nossos ancestrais. Se voltaríamos vivos para escrever o final dessa reportagem era mais uma das tantas incógnitas que acompanham uma aventura desse porte.

No caminho, passamos à direita do vulcão Longonot, costeamos lagos imensos de nomes estranhos e, pouco depois do meio-dia, ultrapassamos a linha do Equador. A paisagem, antes verde, estava sendo substituída por uma aridez de dar dó. Dormimos junto ao lago Baringo e, na manhã seguinte, continuamos o périplo. Praticamente despovoada de almas humanas, a vasta área em que estávamos entrando parecia nos ter arrancado do século 21 e jogado nas páginas dos extraordinários relatos dos primeiros exploradores africanos.

Pernoitamos ao lado de um pequeno rio, na cabeceira de um cânion ao pé do monte Ngiro. Embora estivéssemos em um dos lugares mais ermos da África, rodeado por montanhas cobertas de animais selvagens e tribos hostis, minha maior preocupação eram as cobras. No Quênia vive a mamba-negra, uma das peçonhentas mais venenosas do mundo, e nossas barracas tinham furos por todos os lados.

O Vale do Rift corta o Quênia de norte a sul. Esse desfiladeiro guarda os segredos da origem e dos ancestrais humanos

A duras penas nosso jipe foi vencendo uma área desértica, outrora submersa sob as águas do lago Turcana. A aridez do solo, os pequenos cones de vulcões extintos há milhões de anos e a ausência completa de qualquer tipo de vegetação foi minando nossas resistências psicológicas e emocionais. Quando veríamos algo menos árido?

Fiquei imaginando a reação de espanto e medo dos nossos ancestrais sempre que as florestas verdejantes, os lagos e os rios caudalosos da região fossem invadidos pela lava incandescente proveniente dos vulcões, esparramando-se por todos os lados, destruindo seu hábitat e rasgando uma nova geografia no mundo em que viviam.

De repente, vejo uma das paisagens mais espetaculares da África, as águas esverdeadas do lago Turcana realçadas pela terra acobreada das ilhas montanhosas em seu interior e pela negrura rude das pedras vulcânicas em suas margens. Não admira que, no passado, o lago Turcana fosse conhecido como Mar de Jade.

Com 250 quilômetros de extensão por 50 de largura, o maior lago do Quênia e o maior lago em deserto do mundo, tem seu extremo norte na Etiópia, alimentado pelo rio Omo. Sem escoadouro, seu nível depende da evaporação, o que faz dele também um dos mais alcalinos do mundo. Em suas margens vive uma superpopulação de crocodilos-do-nilo, uma ameaça a mais para as tribos ribeirinhas e os visitantes mais curiosos, além de centenas de espécies de aves, zebras, gazelas e seus caçadores, como leões e leopardos.

Ironicamente, um dos berços da humanidade é hoje um dos lugares mais áridos, despovoados e de difícil acesso do planeta. Mas na época em que viviam nossos ancestrais, o lago e seus arredores estavam repletos de vida animal e vegetal. Poderia ser considerada uma grande e movimentada encruzilhada de todos os habitantes da África. A abundância de animais e a provável origem do homem nas margens do lago resultou na suposição de que ali ficava o Jardim do Éden citado na Bíblia. As descrições do Velho Testamento coincidem com certas áreas do Quênia e, atualmente, vários textos arqueológicos e teológicos corroboram essa teoria.

Os sedimentos depositados ao longo dos milênios, provenientes da erosão das encostas vulcânicas, formaram um ambiente propício à conservação de despojos orgânicos. Por essa razão, ali foram realizadas as mais importantes descobertas de fósseis de diversos hominídeos – desde nossos primeiros antepassados até o homem moderno.

As tribos à margem do lago

Continuamos pela margem do Turcana, onde avistamos aqui e ali famílias nômades pastoreando suas cabras e conduzindo seus pertences no lombo de burros esqueléticos. Hostis, quando diminuímos a velocidade do jipe, eles nos jogaram pedras. Se vissem a câmera apontada, mostrariam machetes, arcos e flechas. Nosso motorista pediu para que não fossem fotografados, corríamos o risco de sermos emboscados mais adiante.

No meio da tarde chegamos a Loyangalani, o povoado onde vivem moradores de diversas tribos – turcana, el-molo, rendille e samburu. O calor armazenado pela topografia rochosa emanava em ondas quentes semelhantes às que irradiam de fornalhas siderúrgicas. Meu consolo é que, no passado distante, a vida na região não era tão difícil, coberta por florestas, cachoeiras e rios caudalosos.

Como os costumes entre os habitantes daquela região são diferentes, às vezes há motivo para confusão. Ngiri, o simpático rapaz que acompanhou nossas caminhadas pela aldeia e pelas margens do lago, servindo de intérprete, era rendille. Para casar com uma mulher da mesma tribo, precisaria dar ao pai da noiva oito vacas. Mas ele estava namorando uma moça turcana e precisaria dar ao futuro sogro um dote de 100 cabras, o que ele evidentemente não tinha. Lembrei que mais felizes eram os nossos ancestrais que não precisavam pagar nada para casar, bastava dar uma paulada na cabeça da fêmea e arrastá-la para o mato.

As últimas expedições promovidas pelo Museu Nacional do Quênia à bacia do Turcana mostraram que ali havia vestígios de hominídeos com cerca de 4 milhões de anos. Escavações na margem ocidental, mais ao norte de onde estávamos, trouxeram à tona fragmentos fósseis que estavam enterrados vários metros abaixo do solo, indicando serem de espécies mais antigas do que a camada de cinza vulcânica endurecida que cobria a colina há mais de 3,9 milhões de anos.

Em volta do lago, cabanas redondas e baixas, feitas com folha trançada de palmeira sobre um chão de seixos vulcânicos formavam a aldeia el-molo

No outro lado do lago, a sudoeste de Loyangalani, encontra-se Kanapoi, um dos principais sítios arqueológicos da região. Seus fósseis foram preservados por depósitos de um rio que, no passado, desaguava em um antigo lago bem maior do que o atual. O lago alcançou seu maior tamanho há cerca de 4,1 milhões de anos e minguou à medida que se enchia de sedimentos.

Todos os vestígios sugerem que os fósseis pertenciam a uma espécie bípede, que poderia ser classificada como hominídeo, pois o bipedalismo é a principal característica da linhagem humana. Esses ancestrais foram chamados de Australopithecus anamensis.

O anamensis vivia no campo, embora não se afastasse muito da mata ciliar, mantendo sua tradição de subir nas árvores. Essa postura ereta desencadeou mudanças profundas, pois ele era capaz de olhar ao longe e analisar o que estava vendo, controlando assim a presença de inimigos em seu território. Além disso, podia usar as mãos tanto para manipular objetos quanto para atirar pedras e assim afugentar os predadores. O tamanho do cérebro, em torno de 385 centímetros cúbicos, era semelhante ao dos macacos, embora o rosto fosse bem mais largo. Seus fósseis ainda incluíam vários ossos e estruturas das articulações típicas de animais que sobem em árvores.

Os australopitecos se ramificaram em diversas espécies anatomicamente distintas, uma delas dando origem ao Homo habilis, cujo fóssil mais antigo encontrado no lago Turcana foi estimado em 2,3 milhões de anos.

Os homens magros

Continuando para o norte, fomos visitar a aldeia Lyeni, onde vivem os pescadores el-molo, uma tribo que deve sua existência ao Turcana. Pescam e caçam crocodilos, tartarugas e mesmo hipopótamos. Nosso primeiro contato com esse povo resultou de uma carona dada a uma jovem mãe que encontramos caminhando em direção à aldeia. Ela era magérrima e sua altura a deixava ainda mais esguia, imagem ampliada pelas dezenas de colares amarelos e vermelhos que envolviam seu pescoço e as inúmeras fitinhas que adornavam seus braços.
Coberta apenas com uma canga verde estampada com enormes flores róseas, envolta na cintura à guisa de saia, e uma faixa rosada atravessada no dorso, a mulher deixava à mostra pequenos seios nos quais amamentava um garotinho de pouco mais de 1 ano.

Na aldeia, vimos homens e mulheres ainda mais magros, tão secos quanto a aridez do solo onde vivem, natureza humana e mineral camuflada em um mesmo ambiente. Suas peles negras reluzem ao sol equatorial, parecendo brotar da terra junto com o cascalho vulcânico acumulado nas margens do lago.

É um povo valente. Em pequenas canoas construídas com folhas de palmeiras, os guerreiros locais costumam perseguir hipopótamos usando apenas arpões. Quando conseguem matar um grande animal adquirem status na tribo, podendo se sentar ao lado dos anciãos durante os rituais. A região é extremamente desolada e seus moradores vivem em cabanas redondas e baixas, feitas com folha trançada de palmeira sobre um chão de seixos vulcânicos. Apesar da pobreza, são constantemente atacados por outras tribos, sobretudo turcana e samburu.

O Garoto de Turcana

O Homo ergaster – os primeiros hominídeos totalmente erectos da África, por isso também chamados de Homo erectus africano – surgiu há 1,75 milhão de anos, Supostamente pertence a uma ramificação genética bem-sucedida do Homo habilis, pois, além de manter as características desse ancestral, tornou-se uma espécie bípede bem mais ágil, principalmente por causa de sua postura.

Atraídos pelos peixes do lago, milhares de espécies de aves, como os flamingos, formam um espetáculo a mais da paisagem


Embora seu esqueleto fosse parecido com o do homem moderno em tamanho físico, seu cérebro media pouco mais da metade do nosso. Tinha crânio redondo, com ângulos pronunciados na parte de trás e salientes arcadas supraciliares na frente. Mesmo se alimentando de carne, seus dentes eram relativamente pequenos.

O exemplar mais conhecido dessa espécie é o Garoto de Turcana, a ossada de um menino que viveu há 1,6 milhão de anos nas margens do lago. Seu esqueleto é o melhor exemplo de que esses humanos primitivos eram dotados de estrutura óssea capaz de uma locomoção corporal moderna.

Muito magra e alta, a jovem mãe el-molo chamava a atenção por usar dezenas de colares e fitas sobre o seu corpo magro, demonstrando a pobreza e a aridez da região

O garoto morreu ainda na pré-adolescência, tinha entre 10 e 12 anos, com 1,68 metro. Supõe-se que, se tivesse vivido até a maturidade, teria alcançado 1,83 metro de altura, com seu cérebro chegando a 909 centímetros cúbicos. Tinha um nariz proeminente e membros longos e magros, semelhante aos dos povos que ainda hoje vivem nos climas quentes e áridos da África, como os rapazes que encontrei em Layeni.

Os jovens el-molo da aldeia, com seus braços longos, moviam-se com tal graça e beleza que pareciam flanar sobre o cascalho vulcânico, demonstrando a familiaridade milenar que tinham com o lugar. Capazes de sobreviver e se desenvolver com um mínimo de calorias, os atuais moradores das margens do Turcana não diferiam muito do seu famoso ancestral.

Com o Garoto de Turcana, a humanidade adquiriu condições de se sentir à vontade na savana aberta. Registros arqueológicos sugerem que a machadinha de mão, ferramenta simétrica cuidadosamente moldada em ambos os lados para ter a forma de uma gota, talhada a partir de grandes cernes de pedra, foi o primeiro instrumento a se adaptar a um molde mental existente na cabeça do seu fabricante há 1,5 milhão de anos.

A partir dessa época, ocorreram mudanças ambientais significativas na África. Esse período coincide com o desenvolvimento dos esqueletos mais parecidos com os dos homens atuais. O cérebro adquiriu maiores dimensões. Nossos ancestrais desenvolveram a indústria lítica, passaram a controlar o fogo, consumir carne com regularidade e organizar caçadas coletivas, primeiras manifestações genuinamente humanas.

A evolução acabou levando a nós aqui de volta nesse pedaço da África. Se para alguns somos o ápice da evolução humana, para outros podemos ser apenas a ponta de algum dos galhos da árvore da espécie. Nesse caso, seremos extintos tão logo outra espécie, mais bem adaptada a viver na Terra, ou nas estrelas, surja entre nós e nos suplante. Se eu precisasse escolher um lugar para sediar o surgimento desse novo animal, apostaria uma vez mais no lago Turcana, onde vivem tribos capazes de sobreviver ao colapso climático criado pelo homem moderno.

O explorador e fotógrafo Airton Ortiz é escritor profissional, com oito livros publicados, entre eles Na Trilha da Humanidade, da Editora Record

O chifre do rinoceronte

Situado no leste africano, o Quênia é banhado pelo Oceano Índico e cercado por uma vizinhança tensa, principalmente ao norte, onde fica o lago Turcana. Ali estão a Etiópia,
que no fim de 2006 mobilizou tropas para defender o governo transitório de outro país vizinho, a Somália, atacado por milícias islâmicas. Esta, por sua vez, tem o apoio da Eritréia e, segundo os Estados Unidos, da Al Qaeda. No norte, fica também o Sudão, há anos em guerra civil que opõe o governo muçulmano a guerrilheiros cristãos e animistas no sul do país, além de enfrentar uma seca prolongada responsável por 2 milhões de mortos nos últimos anos.
Refugiados de todas essas tragédias se misturam na região conhecida como “chifre de rinoceronte”, pela sua aparência no mapa. Ali também etnias rivais vivem em confronto. Todas essas facções estão envolvidas na luta pelo poder e não faltam armas. Elas acompanham os desertores que cruzam as fronteiras e se organizam em bandos violentos que aumentam a violência na região. Hoje, as desavenças não são mais protagonizadas com arcos, flechas e facões, mas com fuzis AK-47.

A origem do homem

Há 40 anos, se acreditava que a evolução humana seguia uma progressão linear, com um ancestral seguindo outro, até chegar ao homem moderno. Assim, nossos antepassados e dos macacos teriam dado origem aos australopitecos, que resultariam no Homo erectus, que por sua vez evoluiu para o Homo habilis e daí para o Homo sapiens. Hoje se sabe que a evolução foi bem mais complicada do que isso. Durante milhões de anos, diversas espécies de hominídeos – os ancestrais do homem – conviviam na África e disputavam espaço entre si. Fósseis de locais diferentes indicam que várias dessas espécies haviam se tornado bípedes e assim ganharam vantagem evolutiva à medida que o clima das savanas se tornava mais seco e as florestas diminuíam – o que ocorreu entre 6 e 4 milhões de anos atrás.
Boa parte desses fósseis foi encontrada no Grande Vale do Rift, um estreito e profundo rebaixamento da crosta terrestre iniciado há 35 milhões de anos com a separação das placas tectônicas africana e arábica, que corre no sentido Norte-Sul da África por mais de 6 mil quilômetros. Os sedimentos depositados ao longo do tempo, proveniente das margens desse vale, formaram um ambiente propício à conservação de fósseis. Por essa razão, ali foram feitas as mais importantes descobertas dos ancestrais humanos. Alguns dos mais significativos foram encontrados em torno do lago Turcana.



Revista Horizonte Geográfico

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Um Brasil longe de tudo

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Na estação científica e no farol de São Pedro e São Paulo, os enviados especiais do "Estado" mostram a rotina dos pesquisadores no pequeno arquipélago, só acessível de barco.





Jornal O Estadão

Tecnologias da Apollo aplicadas ao cotidiano

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Conheça alguns dos principais avanços científicos do projeto Apollo que foram reaproveitados no cotidiano e na indústria.



Jornal o Estadão

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Honduras - Manifestações

Manifestações

A deposição do presidente hondurenho Manuel Zelaya é o primeiro golpe militar na América Central em 16 anos. Zelaya ordenou em 2006 a realização de uma operação para conter a devastação da segunda maior floresta das Américas. Veja reportagem.

Texto: Sérgio Adeodato

Mais da metade do território de Honduras é formado por florestas tropicais. Acima, a Laguna de Ibans, na Reserva do Rio Plátano


No dia seguinte de sua posse, em janeiro de 2006, o presidente de Honduras, Manuel Zelaya Rosales, convocou as Forças Armadas e ordenou o início de uma operação na selva, da qual fez questão de participar. O objetivo era chamar a atenção da população desse pequeno país da América Central para a sua decisão de transformar as florestas hondurenhas, que cobrem a metade do território nacional, em zona militar. Foi a saída encontrada por Rosales para conter de imediato a devastação da segunda maior floresta tropical úmida das Américas, atrás apenas da Amazônia. Atualmente, 2.300 soldados montam guarda nas matas. Quase mil estão concentrados em uma área que merece proteção especial: a Reserva do Homem e da Biosfera Rio Plátano, um paraíso ecológico de 8,3 mil quilômetros quadrados que corresponde a 7% do território nacional.

Localizada no leste de Honduras, a reserva do Rio Plátano foi declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 1982. O título, igual ao de locais famosos como o Serenguetti, na África, ou as Pirâmides do Egito, demonstra a importância da preservação da área para o planeta. No entanto, desde 1997, a reserva também faz parte de uma lista preocupante. Está inscrita entre os Monumentos de Patrimônio Mundial em Perigo.

Motivos para isso não faltam, como percebemos ao longo da viagem até o município de Brus Laguna, na parte litorânea da reserva. Após uma hora de vôo, partindo da capital hondurenha, Tegucigalpa, chegamos à cidade de La Seiba, um balneário do Atlântico conhecido pelos extensos plantios de palmeiras e pelo carnaval – com desfile de carros alegóricos – que ocorre em maio. De lá, a viagem continuou por mais uma hora e meia de avião, contornando o Oceano Atlântico. Vista do alto, a paisagem parece intocada. São quilômetros de praias desertas, rios margeados por matas e manguezais, lagoas gigantes. Não há sinal de presença humana. Mas, ao aterrissar, foi possível perceber a fumaça tão familiar aos brasileiros, das queimadas para instalar pastos e cultivos agrícolas.

Em Brus Laguna celebrava-se o Dia Internacional da Biodiversidade, em 22 de maio. O lugar é o centro das atenções do programa desenvolvido em Honduras pela GTZ, a agência alemã de cooperação técnica, destinado a harmonizar atividades econômicas e preservação dos recursos naturais. “A proposta é fortalecer os municípios para as ações ambientais e incentivar o uso racional dos recursos naturais para reduzir a pobreza”, explica Andreas Gettkant, coordenador do programa da GTZ.


Moradores de Brus Laguna celebraram o Dia Internacional da Biodiversidade mostrando as suas tradições, como as canoas feitas de árvore Caoba


Moradores de Brus Laguna celebraram o Dia Internacional da Biodiversidade mostrando as suas tradições, como as canoas feitas de árvore Caoba


A pequena vila, formada de palafitas à beira de uma lagoa, estava em festa. As comemorações, promovidas pela GTZ em parceria com a revista alemã Geo e instituições hondurenhas, fizeram com que a comunidade da reserva do Rio Plátano mostrasse suas tradições e a exuberante biodiversidade local. Crianças e adultos participaram, ao lado de cientistas, de pequenas caminhadas para mostrar a riqueza das matas – e as ameaças resultantes das ações humanas.

Rio Plátano abriga 375 espécies conhecidas de aves e cerca de 40 de mamíferos, como o jaguar, o veado-de-coleira-branca e o peixe-boi. Em uma área do tamanho de um campo de futebol, as caminhadas da GTZ, com a participação dos moradores da reserva, conseguiram identificar 70 das 115 espécies de árvores ali existentes. Em outro passeio, de lancha, vistoriamos a Lagoa de Brus, de 120 quilômetros quadrados, um terço do tamanho da Baía da Guanabara. No passado, o local era um paraíso para a pesca esportiva, mas hoje já não tem tanta variedade de peixes. “Houve muita pesca predatória”, acusa o biólogo Alan Gonzáles, refugiado cubano que há cinco anos abandonou a ilha de Fidel Castro a bordo de um pequeno bote. Gonzáles aportou na Ilha de Cannon, na Lagoa de Brus, apaixonou-se por uma nativa e acabou ficando. Hoje, é responsável pela manutenção do lugar, utilizado como apoio para turistas. Ali, 14 canhões apontando para a lagoa são a prova do passado violento da ilha – antigo esconderijo de piratas, como o inglês William Jackson, que, no século 17, se valia dessa posição estratégica para bombardear os barcos espanhóis.

Tráfico e abandono

Da Ilha de Cannon, navegamos mais meia hora em direção à barra que liga a lagoa ao mar. Em uma cabana de palha de pescadores, encontramos o hondurenho Shelbi Wood. Ele se queixa da quantidade de lixo vindo de várias partes, trazido pelas correntes marinhas. A região também é rota do tráfico de droga, transportada em lanchas pelo rio Coco, na fronteira de Honduras com a Nicarágua. A droga de origem colombiana é levada para os Estados Unidos.

“Como o peixe é pouco e não há trabalho, muita gente é usada pelo narcotráfico”, conta Wood. Os que continuam pescando também correm perigo. Elgardo Eude, por exemplo, mergulha até 150 metros de profundidade na lagoa para coletar búzios, vendidos aos comerciantes das cidades. Ele, como outros, utiliza equipamentos velhos. A descompressão é responsável por inúmeros problemas físicos e 33 mortes entre os pescadores nos últimos quinze anos. Atualmente, a associação que reúne os catadores de búzios busca uma alternativa de renda para que a prática seja abandonada.

Muitos catadores vivem na região do rio Twas, na porção norte da reserva, local onde afloram vestígios arqueológicos de civilizações pré-colombianas. Ali existem as ruínas de uma cidade que as lendas locais chamam de Cidade Branca, ainda não estudada pelos arqueólogos, que pode ter sido erguida pelos maias. Grandes peças de pedra branca esculpidas com figuras animais podem ser encontradas nas casas dos moradores. Benito Cooper, um dos líderes dos catadores de búzios, espera que, no futuro, esse material sirva para o sustento das famílias. “Queremos apoio para que as ruínas sejam estudadas e reunidas num parque para visitação”, afirma. Na reserva, há mais de 200 sítios arqueológicos, mas nenhum é protegido.


A população mora em palafitas precárias nas margens e na Ilha de Cannon, que já foi esconderijo de piratas, como mostram os canhões

Cooper, Wood, Granwell. Os sobrenomes dos moradores do Rio Plátano indicam sua história. A região foi por muito tempo ocupada por piratas ingleses que ajudaram os índios a lutar contra os colonizadores espanhóis, após a descoberta da América, em 1492. A reserva, de 47 mil habitantes, agrupa quatro etnias indígenas: pech, tawahka, miskito e garífuna. Além deles, existem os ladinos, que são a maioria, mestiços vindos de outras partes da América Central em busca de oportunidade para plantar e criar gado. “A floresta sobrevive porque é considerada divina pelas crenças das etnias locais”, afirma o jornalista Edilberto Chirinos, nascido em Mosquitia, onde se localiza a Rio Plátano.

A preocupação que levou o presidente a transformar as florestas em zona militar procede. A expansão da pecuária, as queimadas e o corte ilegal de madeira são hoje as maiores ameaças à reserva. Refletem, em menor escala, a situação de todo o país. Em Honduras, são destruídos entre 80 mil e 100 mil hectares de floresta por ano. “Só na província de Olancho, que fica dentro da área protegida, confiscamos, em maio de 2006, mais de 120 mil toras de madeira cortadas ilegalmente”, diz o engenheiro Ramón Lazzaroni, presidente da Administração Florestal do Estado.

Apesar de metade das florestas se concentrar em áreas protegidas, “a maioria só existe no papel”, admite Lazzaroni. Para ele, a hora é de mudar. “Pela primeira vez no país existe vontade política de preservar as florestas”, diz. Espera-se que a presença da força militar reduza as ações ilegais, mas a tarefa é difícil se Honduras não vencer problemas mais amplos, como a corrupção e a violência.

O caminho é longo. Além de aumentar a fiscalização, o governo tem planos de incentivar a exploração das florestas por meio de atividades capazes de criar alternativas econômicas compatíveis e assim reduzir a clandestinidade. Na Rio Plátano, por exemplo, há zonas onde é permitido o aproveitamento dos recursos florestais. Ali, a Cooperativa Agroflorestal Caiful corta 12 diferentes tipos de madeira com permissão do governo, mediante um plano de manejo que respeita o meio ambiente. “Antes do projeto, praticávamos agricultura de subsistência, fazendo queimadas, e cortávamos árvores sem licença”, conta Ricardo Wood, presidente da cooperativa. Hoje, a atividade gera 50 empregos, melhorou a vida dos moradores e se tornou o modelo do que se pretende para o Rio Plátano.

O apoio da Alemanha

O projeto da GTZ, fruto da cooperação entre os governos de Honduras e Alemanha, visa aliar a preservação da Reserva do Homem e da Biosfera do Rio Plátano ao desenvolvimento econômico local. Uma das primeiras medidas foi regularizar a posse de terra no núcleo da reserva, que precisa permanecer intocável e sem atividades econômicas. No total, 140 famílias foram indenizadas para mudar de endereço. Nas zonas em que é possível usar os recursos naturais, estão sendo promovidas atividades que não agridem a natureza, como o cultivo de café sombreado e de cacau em sistema agroflorestal. Segundo a GTZ, essas atividades já estão sendo mais lucrativas do que criar gado mediante a derrubada de árvores. Recursos estão sendo investidos no saneamento e água potável para a população. Em nove anos de projeto, foram gastos 20 milhões de euros do Banco Alemão de Desenvolvimento (KFW).

Só não é maior que a Amazônia

Honduras é o segundo maior país da América Central e também um dos mais pobres. Além de seus problemas econômicos, foi devastada pelo furacão Mitch em 1998, que deixou milhares de mortos e arrasou a infra-estrutura produtiva. Em compensação, é um dos países do continente mais ricos em florestas. Uma parte significativa está dentro da Reserva do Homem e da Biosfera do Rio Plátano, que compõe com outras áreas de proteção o chamado Corredor Biológico Mesoamericano. Trata-se da maior área protegida da América Central e Caribe. A reserva, somada à do vizinho Parque Nacional do Patuca, forma a segunda maior floresta tropical úmida das Américas, atrás apenas da Amazônia. Rio Plátano abriga um mosaico de paisagens importante para a biodiversidade. São rios, praias, canais, pântanos, manguezais e florestas com alta densidade de madeira de lei, parte situada sobre montanhas, como o Pico Morrañanga, de 1.500 metros, e o Punta de Piedra, de 1.326 metros.



Revista Horizonte Geográfico

domingo, 26 de julho de 2009

Galeria de Fotos: Canyons

Google tradutor
O vermelho de cactus blooms aparece em um Grand Canyon vale. Cortadas pelo rio Colorado durante milhões de anos, o Grand Canyon é considerado um dos melhores exemplos de terras áridas-erosão em todo o mundo. O imenso canyon é 277 milhas (446 km) de comprimento e médias 4.000 pés (1.200 metros) de profundidade, mas é apenas 15 milhas (24 quilómetros) de diâmetro, na sua mais ampla.
Fotografia por Barry Tessman


Carved rock trechos, tanto quanto os olhos podem ver no Canyon de Chelly National Monument no Arizona. Canyon de Chelly E.U. é único entre os parques nacionais, é composto inteiramente de Navajo Tribal Land Trust, que continua a ser a casa de um Navajo comunidade. Segundo a Navajo crenças, uma divindade chamada Spider Woman vivia em cima de Aranha Rock, o arenito monolito em primeiro plano desta fotografia. Ela devorou crianças que comportado mal, branqueada e seus ossos transformaram o início do Rock Spider branco.
Fotografia por Bill Hatcher


Formações rochosas sacada do piso do Grand Canyon de Yellowstone National Park. Inundações derretimento de geleiras ajudaram a esculpir esta canyon, aprofundá-la e remover a maior parte da sua areia e cascalho.
Por Norbert Rosing Fotografia

Sunlight sneaks nas fendas do Arizona's Antelope Canyon, pintando a ondulações crafted por anos de inundações e de outros processos erosivos. O slot canyon é um dos mais visitados no sudoeste canyons.
Fotografia por Paul Nicklen

Uma cachoeira estabelece a verdadeira face do Grand Canyon no Arizona. Além do poderoso rio Colorado que atravessa o Canyon, de água, um recurso vital no árido sudoeste, existe sob a forma de nascentes, córregos, e se infiltra.
Fotografia por Michael Nichols

Um slot canyon pontuação deserto do Arizona, a apenas um de muitos dotting do estado fronteira com Utah. Slot canyons são relativamente curtas e estreitas que podem ser invulgarmente canyons várias centenas de metros de profundidade. A região necessita de uma combinação especial de chuvas e características geográficas para tornar possível slot canyons. Pluviais e snowmelt cortar e esfregando o vermelho rock desta região para eons para formar essas faixas horárias.
Fotografia por Bill Hatcher



No México, à esquerda, e os Estados Unidos sobre a direita, o Rio Grande forja uma clara barreira entre os dois países. Sobre os E.U. lado do rio através dos ventos Santa Elena Canyon no Texas "Big Bend National Park. Altaneiro 1.500 pés (460 metros de) falésias de calcário sólido marcar o canyon.
Fotografia por Bruce Dale

A água corre em torno de rochas como o rio Colorado continua a reduzir o seu caminho através do Grand Canyon. Leva dois dias a pé ou mula para ir ao fundo do Grand Canyon e volta, e pelo menos duas semanas para completar a viagem através do canyon por balsa. Em 1963, o Glen Canyon Dam foi concluída a montante do Grand Canyon, a mudar radicalmente o fluxo do Colorado.
Fotografia por Wilbur E. Garrett

Sheer basalto torres enraizada na inundação - Simen Montanhas na Etiópia - chamado de Africano Alpes - Fotografia por Michael Nichols


National Geographic

Vivendo com AIDS

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Gideon Mendel

Encontrar Esperança
Fotografia por Gideon Mendel

"Com a ajuda dessa medicação, estou indo para viver uma vida longa", diz Bavuyise Mbebe, que prepara a sua primeira dose de medicamentos ARV. Bavuyise, 31, voluntários em uma das clínicas de Lusikisiki, incentivando as pessoas a obter testadas para o HIV. "É importante para ensinar a nossa comunidade que aprender o seu estado HIV não significa que você vai morrer agora. Pode realmente ajudá-lo a viver mais tempo", diz ele. Cerca de um milhar de residentes agora testado cada mês.

Fotografia por Gideon Mendel

Quinze anos de idade Nomfumaneko Yako partes uma sala com alguns dos animais da sua família. Frágeis de sua luta com o HIV, Nomfumaneko iniciou terapia ARV, mas morreu poucas semanas após ter iniciado o seu tratamento. "Tínhamos esperança de que ela iria viver muito, desde que ela foi dada a nova pílulas", diz sua tia. "Ela era uma bela criança."
Fotografia por Gideon Mendel

"Meu sonho é voltar para a escola e aprender a ser um professor ou aderir à polícia", diz Nomphilo Mazuza, um emaciado 25 anos, mãe de dois, cujo corpo foi fustigada por doenças relacionadas com a SIDA. Conforme sua capacidade para defender fora doenças enfraquecida, Nomphilo começaram o tratamento ARV. "Minha esperança é que o remédio vai me ajudar a ser a Nomphilo eu era antes", diz ela.

Fotografia por Gideon Mendel

Com a sua avó por seu lado, sete anos de idade Zamokuhle Mdingwe cabeça de um Dia Mundial da SIDA cerimônia vestindo uma T-shirt concebida para reduzir o estigma associado com o HIV. Zamokuhle perdido sua mãe para a AIDS, mas sua saúde melhorou desde que ele começou a tomar medicamentos ARV no ano passado. "Eu falo para meus amigos sobre a tomar estas pílulas, e eles estão felizes em ver-me mais forte", diz ele. "Eles sabem que eu tenho AIDS, e toda a gente é amável comigo. Eu sou apenas o mesmo que qualquer outra pessoa."


Nutrir a Próxima Geração
Fotografia por Gideon Mendel

A fé no futuro de seus filhos, nenhum dos quais contribui para sustentar o HIV-Nozamile, tal como os medicamentos ARV ela tem para combater o HIV. Cerca de 800 pessoas em Lusikisiki foram tratados com ARV nos últimos dois anos, desafiando a idéia de que a terapia é muito caro e complicado para trabalhar em áreas remotas e pobres da África.

Fotografia por Gideon Mendel

Transportar o caçula de seus quatro filhos, 22-year-old Nozamile Ndarah recolhe madeira para fazer o fogo na manhã remota região Sul Africano de Lusikisiki. Nozamile tem HIV e cuida de seus filhos sozinhos, enquanto seu marido, que também é HIV positivo, trabalha em uma mina de ouro longe de casa. Mais de 26 milhões de pessoas vivem com o HIV na África sub-saariana, mais do que qualquer outra região do mundo. Na África do Sul, sozinha, milhares de pessoas morrem diariamente de HIV / SIDA. Para ajudar as vítimas da pandemia, Médecins Sans Frontières e da Fundação Nelson Mandela lançou um anti-retroviral (ARV) tratamento Lusikisiki no programa em 2003.
National Geographic

A ciência do próximo - O sertanista

A ciência do próximoMovido pelos ideais do movimento positivista, Rondon fez de sua vida uma luta pela aceitação dos índios como legítimos brasileiros.Por Mércio P. Gomes
Foto de Luiz Thomaz Reis/Acervo Museu do Índio

Os parecis estão entre os primeiros povos pacificados no interior do Mato Grosso, antes mesmo da chegada de Rondon (acima, o sertanista distribui brindes aos índios, em 1913). Eles tornaram-se aliados do marechal, colaborando no contato com outras tribos e assumindo o controle de postos telegráficos

Era um dia quente de verão no Rio de Janeiro, em janeiro de 1958, quando Rondon estava às portas da morte, e a família mandou chamar Darcy Ribeiro. O antropólogo fora seu jovem e brilhante escudeiro durante nove anos, de 1947 a 1956, no Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Juntos haviam concebido e construído o Museu do Índio e elaborado o projeto do Parque Indígena do Xingu, o qual transformou o indigenismo brasileiro - a partir daí, o Estado passou a reconhecer terras que eram alocadas aos índios como "territórios tribais". Com Darcy segurando suas mãos, Rondon rezou o credo do positivismo ortodoxo que aprendera, e ao qual fora fiel desde 1898: "[...] Creio[...] que, ao lado das forças egoístas, existem no coração do homem tesouros de amor que a vida em sociedade sublimará cada vez mais. Creio[...] que a missão dos intelectuais é, sobretudo, o preparo das massas humanas desfavorecidas, para que se elevem, para que se possam incorporar à Sociedade. Creio[...] que, sendo incompatíveis às vezes os interesses da Ordem com os do Progresso, cumpre tudo ser resolvido à luz do Amor [...]".

Cândido Mariano da Silva Rondon, nascido em Mimoso, ao sul de Cuiabá, descendente dos índios terena e bororo, não convivera com eles em sua infância nem na juventude. Provavelmente o fato de ter tido avós ou bisavós indígenas não teria sido razão de orgulho naqueles tempos e lugares. Na verdade, não havia motivos, digamos, emocionais para Rondon ser o defensor tão excepcional dos índios brasileiros. Aos 6 anos, já morava em Cuiabá e, aos 15, estava no Rio de Janeiro como aluno da Escola Militar. Foi aí que encontrou sentido em sua vida ao abraçar o positivismo como base filosófica e como princípio de fé. Pois a doutrina do positivismo religioso, criado por Auguste Comte no século 19 e instituída no Brasil pouco antes da proclamação da República, exortava como sua máxima virtude "Viver para outrem!", como um mandamento supremo da religião da humanidade.

No Brasil, a República aconteceu sem revolução, sem ao menos participação vívida da população. Entretanto, para aqueles que lutaram por ela ao longo de duas décadas, que nela projetaram a redenção do povo brasileiro, a República veio carregada de esperanças, de promessas de virtude, de compromissos transcendentais. Para os positivistas, ela chegou por razão histórica, pelo princípio da ordem das coisas.

Na Assembleia Constituinte de 1890-91, os positivistas apresentaram uma proposta inovadora para o federalismo brasileiro, pelo qual as terras indígenas seriam reconhecidas como "Estados autóctones americanos", diferentes dos "estados ocidentais", as províncias tradicionais do ex-Império do Brasil. A proposta dizia que as áreas autóctones teriam fronteiras reconhecidas, e por elas só se poderia passar com licença dos próprios índios. Seriam nações autônomas.

Assim, quando organizou o Serviço de Proteção aos Índios, em 1910, Rondon não somente tinha base filosófica do que deveria fazer como já havia experimentado e aplicado esses ensinamentos em sua lida com povos indígenas sem relacionamento com a sociedade. Desde 1890, Rondon passara a viver praticamente nos sertões do Mato Grosso (que, naquele tempo, com-preendia os atuais estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia) espichando fios de telégrafo e abrindo estradas de rodagem, cumprindo a tarefa estratégica de integrar o Brasil. Acompanhado de estudiosos, o sertanista abriu à ciência um campo desconhecido de pesquisas e descobertas, mapeou rios e relevos, refez os traços das fronteiras geopolíticas.

Quando atacado por um grupo de nhambiquaras, Rondon proibiu que seus soldados revidassem ao ataque e os fez recuar, cumprindo a sina de "morrer se preciso for, matar nunca". Essa máxima virou o dístico do SPI e o cálice simbólico do indigenismo brasileiro ao longo dos anos. Muitos morreram nas mãos dos índios como se fossem mártires da humanidade.

Rondon conviveu com diversos povos indígenas, entre eles os bororos, terenas, cadiuéus, parecis, nhambiquaras, umutinas, no velho Mato Grosso, mas também com povos do Amapá, do Pará, do Amazonas e de Roraima. Viveu quatro anos em Letícia, na Colômbia, pacificando grave disputa territorial entre esse país e o Peru. Depois, a partir de 1938, renovou o SPI para consolidar sua obra indigenista. Chegou a ser indicado duas vezes para o Prêmio Nobel da Paz, uma delas por carta de Albert Einstein quando o cientista estivera no Brasil. Nenhum outro brasileiro teve vida tão intensa na labuta, tão dedicada a causas e tão fecunda nas realizações. Seus feitos são extraordinários, e se hoje não parecem visíveis é porque estão incorporados à ordem das coisas.

Publicado em 05/2009

Revista National Geographic Brasil

A linha de Rondon

A linha de Rondon"Estava terminada a mais notável das explorações geográficas realizadas nas terras das Américas nestes últimos 50 anos, e varado o mais ocidental dos três setores de território brasileiro ainda incógnitos..."
Rondônia, Edgard Roquette Pinto, 1917
Por Thiago e Felipe Varanda
Foto de Felipe Varanda

Os campos cultiváveis e o céu cinza das queimadas dominam hoje o Brasil ermo revelado pelo marechal Rondon, há um século, no oeste da Amazônia.

A geografia que passa pela janela do meu carro é feita de traços monótonos e desoladores. Seguimos longa e melancólica estrada de asfalto, colorida de barro e poeira nos buracos de betume. Há poucas curvas, e apenas uma serra no trajeto. Cruzamos caminhões e picapes o tempo todo. Os postos de abastecimento são feios e sujos, e as cidades que surgem nas margens, pouco convidativas a uma visita. A vegetação é parca, constituída em sua maioria de pasto e lavouras de soja, salpicadas com esqueletos secos de grandes castanheiras que jazem nos campos. A variada fauna amazônica parece ter-se reduzido a espécimes de um gado zebuíno branco e sofrido.

A paisagem morta é o preço de um século de ocupação predatória dessa porção ocidental da Amazônia. Não nos choca, contudo. Desde que decidimos refazer o caminho aberto pelo marechal Cândido Mariano da Silva Rondon nos atuais estados de Mato Grosso e Rondônia, já admitia essa decepção com a realidade que encontro agora. Entre 1907 e 1915, Rondon chefiou a Comissão Construtora de Linhas Telegráficas de Mato Grosso e Amazonas, responsável por instalar, em diversas expedições, o telégrafo para aproximar uma Amazônia selvagem da capital do Brasil. Um século depois da epopéia de Rondon, uma previsível onda de colonização passou por cima de sua linha. Perdeu-se no tempo e na poeira dos campos desmatados a geografia "viva e característica" descrita pelo repórter da comissão, o médico e antropólogo Edgard Roquette Pinto, no célebre livro Rondônia, de 1917.

Seguir as picadas abertas na mata pelo marechal, hoje, é percorrer rodovias asfaltadas. Mais de 1,5 mil quilômetros separam Guajará-Mirim, em Rondônia, fronteira com a Bolívia, de Diamantino, Mato Grosso. Decidimos percorrer a distância no sentido oposto ao de Rondon, sempre em busca de algum antigo posto telegráfico - no total, foram instalados 25 pela comissão. Conseguimos encontrar 16 deles. Em alguns casos, não são nada mais que ruínas, às vezes sobrepostas por outras construções, em um patrimônio desintegrado da paisagem - apenas um posto, em Ji-Paraná, está conservado e serve de referência à história da cidade. Muitos operavam em conjunto com as estações da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a "Ferrovia do Diabo", cuja obra na mesma época ceifou a vida de milhares de operários, boa parte de estrangeiros. Assim como o telégrafo, a ferrovia virou sucata.

Chegar a Rondônia na estiagem já é, por si, uma experiência pavorosa. A fumaça das queimadas é o cartão de visita e o sol impiedoso não conta mais com o anteparo das árvores. O vento quente confunde os sentidos. A sensação é de tontura. Onde antes imperava a floresta, eu agora vejo pasto. É difícil, assim, vislumbrar a bela descrição de Roquette Pinto, tão inspiradora sobre a expedição: "Margeando os grandes rios, ou adornando os mananciais, a mata, por toda parte, cresce e domina; conforta com sua sombra e seus frutos; espanta com suas formas".

No início do século 20, o telégrafo representava a chegada simbólica da civilização e do Estado aos confins da Amazônia. Guajará-Mirim foi o último posto da linha, destino final de sucessivas expedições que levaram anos e atravessaram, pela primeira vez, uma vasta região dominada por índios hostis, como os nhambiquaras e os cinta-largas, rios volumosos, áreas inóspitas de Cerrado e uma floresta que escondia muitos perigos em suas sombras.

Às margens do rio Mamoré, o porto que servia para escoar a seringa boliviana é agora ponto de partida para compras em Guayaramerim, do outro lado da fronteira, em que um uísque 12 anos custa 21 reais. O posto alfandegário tem modesta estrutura, mas representa sua função de regular o trânsito intenso entre os dois países. Perto dali, a antiga estação de trem chama atenção. O prédio abrigava o posto do telégrafo e hoje funciona como museu, mas a principal atração local é uma sucuri empalhada, com tamanho de fazer inveja em Hollywood. Do lado de fora jaz uma locomotiva, entregue à ferrugem.

Assim como marcava o fim da linha do telégrafo, Guajará era a última estação da Madeira-Mamoré, que começava em Porto Velho. A linha de trem, ou o que sobrou dela, me leva a uma cidade fantasma. Vila Murtinho tem as ruínas da estação, a igrejinha escondida pelo mato alto e a laje que restou da estrutura do telégrafo. Entre os raros moradores, encontro dona Regina. Chegou ainda criança, em 1954, e se lembra da cidade em plena atividade. Até que, em 1972, com a conclusão da BR-425, a 15 quilômetros dali, ela assistiu à mudança de seus vizinhos para a beira da estrada, onde nasceu outra cidade, já com a chegada de novos migrantes sulinos: Nova Mamoré. "Fico triste de ver a vila deserta, mas criei raiz e não saio mais daqui", diz ela.

Na verdade, o telégrafo traçou a rota da colonização da região, até que outra rodovia, a BR-364, consolidasse o processo na maior parte do caminho aberto por Rondon. Construída nos anos 1960 por Juscelino Kubitschek e asfaltada em 1983, sua função era unir povoações que surgiram décadas antes nos arredores dos postos telegráficos. Acabou servindo como porta de entrada aos migrantes, que transformaram de forma profunda o ambiente desbravado por Rondon. Hoje, com a floresta derrubada, o agronegócio dá as cartas na economia local. O ciclo da madeira acabou, e as fazendas lidam com a pecuária e, mais recentemente, com a soja. Basta respirar ou abrir os olhos para perceber o impacto ambiental da atividade. As intensas queimadas contaminam o ar e pintam o céu de um cinza-tédio. Vistas do alto, as estradas vicinais que partem perpendiculares à coluna central da BR-364 tomam a forma de espinha de peixe. E, aonde as estradinhas chegam, há devastação.

Se para o marechal Rondon a região era ocupada por povos indígenas com os quais o Brasil tinha de aprender a se relacionar, para os militares que governaram o país por mais de 20 anos, a partir de 1964, o objetivo era povoar uma enorme "área vazia", em campanhas movidas por lemas como "Terra sem homens para homens sem terra". Milhares de famílias de pequenos agricultores vieram do Sul incentivadas pelo Estado. Em Vilhena, Rondônia, o que mais vejo nas ruas são pessoas loiras de olhos azuis bebendo chimarrão embaixo de alguma sombra.

Em Ariquemes, a 185 quilômetros de Porto Velho, vive um veterano da região. Anésio Nunes, de 85 anos, veio da Bahia para trabalhar nos seringais durante a Segunda Guerra Mundial. Nunes costumava passar meses na mata sem ver vivalma, mas, ainda assim, pouco se servia do telégrafo. "Quem usava era o dono do seringal. O peão não falava com ninguém", diz. O ex-soldado da borracha é um diplomata ao relembrar a relação com os índios durante a labuta seringueira. "O nativo deixava sinais na floresta que eram uma provocação. Se você não mexesse neles, significava que era amigo. Se você tocasse, é porque queria briga." Os trabalhadores que vieram depois dele, sobretudo madeireiros e agricultores, não tiveram a mesma sofisticação, e os índios foram praticamente dizimados. Assim como Nunes, outros 57 mil brasileiros, a maioria nordestina, foram trabalhar nos seringais nessa época.

Ji-Paraná, no centro de Rondônia, é a única cidade que se preocupa em preservar sua história. O humilde Museu do Telégrafo funciona na casa que abrigou um posto telegráfico e tem um acervo de fotos e aparelhos daqueles tempos. Em Pimenta Bueno, por outro lado, o passado está vivo apenas na memória de Alzira Vieira de Souza, de 94 anos, viúva do ex-guarda-fios da cidade, Hermínio Vieira. O trabalho de seu marido era fazer a manutenção de 20 quilômetros da linha, mantendo a área livre de vegetação e trocando postes. Na década de 1930, lembra-se ela, "nem comércio havia na cidade. Sabão, sal, fósforos e farinha vinham de Ji-Paraná em canoa, numa jornada de oito dias." Ela não chegou a conhecer Rondon, mas na época pode ter visto por ali um sujeito de fala arrastada e óculos redondos, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. Sobre a região, ele escreveu em Tristes Trópicos: "O fio de telégrafo bambeava em postes apodrecidos. Por mais espantoso que pareça, a linha aumenta, mais que desmente, a solidão local".

Para entrar no Mato Grosso, atravessamos a serra do Norte, um obstáculo natural que custou quatro meses para ser vencido pela Comissão Rondon. De carro e na estrada de asfalto, cumprimos, em apenas uma hora, o mesmo percurso do sertanista. O sol que arde no para-brisa do carro cozinhava, na época, o sangue dos exaustos bois da comitiva. "O trabalho de escalar, fadigosamente, por essas escarpas abruptas para nos despenharmos, do lado oposto, em vales profundos, seria superior às forças dos nossos sertanejos, não fosse o entusiasmo que os animava", descreveu Rondon em seu diário.

O deslocamento era árduo. Rondon levava consigo frágeis equipamentos da equipe científica, entre eles um gravador de sons à base de discos de cera e um gramofone usado para tocar o Hino Nacional nos acampamentos. Toneladas precisavam ser transportadas sobre carros de bois e mulas: fios, postes, ferramentas e víveres. As dificuldades aumentavam à medida que os animais morriam ou eram abatidos para servirem de alimento. Em 1908, Rondon anotou: "Haviam-se esgotado todas as provisões, inclusive o sal. Nos últimos quatro meses, vivíamos de caça, mel e frutas. Deparamos, felizmente, com abundância de cocos, sem o que teríamos perecido. Passamos de uma feita 36 horas sem comer - conseguimos depois abater um veado, que devoramos, ficando a pele para os cães".

Em Vilhena, já na divisa com o Mato Grosso, tomamos uma sopa no trailer do Gaúcho e refletimos sobre o trajeto, tão duro antes, tão simples hoje. Imagino os homens de Rondon, desesperados de fome, jantando uma caça no fim de um dia - cada refeição devia ter o gosto da sobrevivência. O nome da cidade é uma cortesia de Rondon a Álvaro Vilhena, então diretor-geral dos Telégrafos. Essa é a fronteira da Floresta Amazônica, e daqui em diante o Cerrado domina, apesar de também ter virado pasto e soja.

Num certo trecho a BR-364 é interrompida, e o mais perto do trajeto da linha de Rondon que encontramos é a MT-235. Quando esteve aqui, o sertanista foi acolhido por índios parecis, que já haviam feito contato com colonos brasileiros. "Num dia de caminhada, atravessavam-se dez a 12 aldeias", escreveu Roquette Pinto. Mais para frente, no entanto, ele sofreria ataques dos nhambiquaras. "Em 22 de outubro, a expedição levou o acampamento até o rio. Nesse dia Rondon foi atacado. Por ventura, escapou de morrer, na ponta de uma flecha que agora figura no Museu Nacional", narrou o repórter da expedição. Viriam novos ataques a integrantes da tropa, alguns fatais. Todos, porém, sem revide. "A verdade é que os nhambiquaras vivem em paz conosco", escreveu depois Roquette.

Esses índios habitam hoje a terra indígena Tirecatinga, fronteira com a reserva Utiairiti, onde vivem os parecis. Nessas duas áreas havia três postos telegráficos. Nós conseguimos visitar apenas o segundo, que foi também uma missão jesuíta e agora não passa de ruínas. Daniel Matenho Cabixi, líder pareci, lembra-se do telégrafo em operação na época da missão, no fim dos anos 50. "Quem trabalhava no sistema eram as próprias famílias dos parecis", diz ele.

O contato de Rondon com as tribos pautou nova relação do Brasil com os índios daquele momento em diante, baseada no lema "Morrer se preciso for, matar nunca". Essa relação de respeito mútuo, aponta Nísia Trindade Lima, da Fundação Oswaldo Cruz, tem origem na doutrina positivista seguida pelo marechal. "Na essência, não haveria diferenças quanto à condição humana de qualquer das etnias. Preconizava-se o respeito às outras raças, sem impor nenhum projeto civilizatório", diz a pesquisadora. Violência, no entanto, era a praxe da época. E Rondon denunciava, em retornos eventuais ao Rio de Janeiro nessas mais de quatro décadas em que viveu nos sertões, as práticas de expedições punitivas de seringueiros e colonos contra os índios.

As reservas Tirecatinga e Utiariti são parte da rota dos caminhões que escoam grãos produzidos na região de Sapezal. Há um pedágio controlado pelos índios, o trânsito levanta uma poeira fina e qualquer ultrapassagem é arriscada. Atravessamos a reserva e observamos as cidades do caminho, mas quase sem notar presença indígena. Os nativos com quem Rondon estabeleceu uma relação pacífica em muitos casos foram diluídos pela chegada posterior de migrantes.

Diamantino, no Mato Grosso, a 160 quilômetros de Cuiabá, foi o ponto de partida da expedição de Rondon. Chegamos à cidade com os pulmões impregnados de poeira. Nada vemos nas ruas que faça referência ao marechal, e demoramos a encontrar alguém que possa falar algo sobre o posto de telégrafo. Taxistas sentados em seus carros na praça principal, bons conhecedores da geografia urbana, apontam o local do prédio, hoje uma casa particular. Vamos até lá, já preparados para nova decepção. Seus traços arquitetônicos rudimentares, as esquadrias de alumínio e o telhado de zinco repetem o padrão de uma casa qualquer da cidade. Batemos palma ao portão. Ninguém nos recebe. O cachorro late.

Na casa vizinha funciona uma lan house, que está repleta de adolescentes - todos concentrados em vencer adversários num joguinho eletrônico violento. A empreitada heroica de Rondon, que começou ali do lado, é como a própria linha do telégrafo: um fio perdido na história.

Publicado em 05/2009

National Geographic Brasil

sábado, 25 de julho de 2009

Internacionalização da Amazônia


Cristovam Buarque foi questionado sobre o que pensava da internacionalização da Amazônia. O jovem introduziu sua pergunta dizendo que esperava a resposta de um humanista e não de um brasileiro. Segundo Cristovam, foi a primeira vez que um debatedor determinou a ótica humanista como o ponto de partida para a sua resposta:

"De fato, como brasileiro eu simplesmente falaria contra a internacionalização da Amazônia. Por mais que nossos governos não tenham o devido cuidado com esse patrimônio, ele é nosso. Como humanista, sentindo e risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, posso imaginar a sua internacionalização, como também de tudo o mais que tem importância para a Humanidade. Se a Amazônia, sob uma ótica humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro. O petróleo é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a Amazônia para o nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou diminuir a extração de petróleo e subir ou não o seu preço. Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado

Se a Amazônia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono, ou
de um país. Queimar a Amazônia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas decisões arbitrárias dos especuladores globais. Não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação. Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França. Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode deixar esse patrimônio cultural, como o patrimônio natural amazônico, seja manipulado e destruído pelo gosto de um proprietário ou de um país.

Não faz muito, um milionário japonês, decidiu enterrar com ele um quadro de um grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido internacionalizado. Durante este encontro, as Nações Unidas estão realizando o Fórum do Milênio, mas alguns presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu acho que Nova York, como sede das Nações Unidas, deve ser internacionalizada. Pelo menos Manhattan deveria pertencer a toda a Humanidade. Assim como Paris, Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com sua beleza específica, sua história do mundo, deveriam pertencer ao mundo inteiro. Se os EUA querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas armas, provocando uma destruição milhares de vezes maior do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil. Nos seus debates, os atuais candidatos à presidência dos EUA têm defendido a idéia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida.

Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do mundo tenha possibilidade de ir à escola. Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece a Amazônia. Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como um patrimônio da Humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar; que morram quando deveriam viver. Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa."

Debate ocorrido no mês de Novembro/2000, em uma Universidade, nos Estados Unidos.

Desglobalização


por Márcia Pinheiro
A recessão mundial ressuscita práticas protecionistas, como o Buy American, e fortalece comportamentos xenófobos

A crise mundial catalisou discursos e iniciativas que, há poucos anos, teriam sido tachados de retrógrados. O protecionismo comercial e financeiro, para a preservação de empregos em Estados Nacionais, voltou à pauta, com o inevitável fortalecimento de comportamentos xenófobos. Vozes a favor do protecionismo econômico são um forte subproduto dos tempos bicudos. Por pouco a heterodoxia não venceu o neoliberalismo nos Estados Unidos. No pacote que pode atingir 1 trilhão de dólares, aprovado pela Câmara dos Representantes na quarta-feira 28 de janeiro, há um artigo denominado Buy American (Compre produtos americanos), que causou rebuliço nos parceiros comerciais.

Na versão original, a medida previa que o aço e o minério de ferro usados nos projetos de infraestrutura fossem comprados apenas de empresas americanas. Mas houve uma reviravolta. Na quarta-feira 4, o Senado atenuou o artigo, ao aprovar uma emenda que deixa fora do protecionismo a União Européia e o Canadá, os que mais criticaram a iniciativa.

De acordo com The Wall Street Journal, os europeus tiveram a seu favor o lobby de grandes empresas, como Caterpillar e General Electric, que temiam retaliações quando fechassem contratos no Velho Continente. Antes de o Senado dar o seu veredicto, a Casa Branca havia anunciado que revisaria a cláusula de proteção. O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, pedira a Obama coragem para usar a prerrogativa do veto. Em Davos, o ministro do Comércio da Índia, Kamal Nath, afirmara que o protecionismo “seria uma resposta de puro pânico”, um malefício tanto para os países desenvolvidos como para os em desenvolvimento.

Obama ficou temporariamente em maus lençóis. A iniciativa da Câmara teve claro apelo popular e a ideia não é nova. Desde 1999, o site buyamerican.com exorta os consumidores a adquirir apenas produtos americanos. E lista uma série de empresas “que mantêm a América trabalhando”. Além disso, foi uma bandeira da campanha presidencial do democrata e naturalmente contou com o apoio do Instituto Americano do Ferro e do Aço. Pesquisa realizada pela organização junto a mil cidadãos detectou que 86% apoiavam a iniciativa da Câmara, ou quase nove entre dez americanos.

Todo mundo entrou na discussão. Paul Krugman, economista ganhador do Nobel de 2008 e blogueiro de The New York Times, tem feito malabarismos para justificar a legitimidade de uma intervenção tão forte do Estado em assuntos da esfera privada, na contramão de um período em que o livre comércio foi a palavra de ordem.

“O argumento contra o protecionismo é que ele distorce o mercado: cada país produz bens com desvantagem comparativa e consome poucos produtos importados. Em condições normais, este é o resultado da história. Mas não estamos em condições normais. Estamos em meio a um colapso e todos os governos têm dificuldades de dar uma resposta eficaz”, diz um recente post em seu blog.

Como ninguém sabe o fundo do poço da recessão e do protecionismo, o Fundo Monetário Internacional (FMI) segue rebaixando as estimativas sobre o comércio mundial. De acordo com o World Economic Outlook, divulgado na quinta-feira 29 de janeiro, as trocas comerciais cairão 2,8% neste ano, uma revisão para baixo de 4,8 pontos porcentuais das estimativas de dezembro de 2008. As importações recuarão 3,1% nas economias desenvolvidas e 2,2% nos países emergentes.

Diversas organizações americanas encontraram eco para proteger o trabalhador local. No Congresso, o republicano Chuck Grassley sugeriu que o plano de demissão da Microsoft se concentrasse em trabalhadores estrangeiros. A Coalizão para o Futuro do Trabalhador Americano, uma espécie de nicho de grupos anti-imigração, está em plena campanha na tevê com um link direto entre o desemprego e a mão-de-obra estrangeira.

Corta para a Europa. Trabalhadores de vinte regiões na Grã-Bretanha promoveram uma série de manifestações com o slogan “Os trabalhadores britânicos primeiro”. Foi uma reação à contratação de algumas centenas de italianos e portugueses pela empresa Irem, para a construção de refinarias. A luta por empregos é apenas um dos itens da fatura da recessão, assim como o protecionismo comercial.

Xenofobia? Seumas Milne, articulista e editor do Guardian, discorda. Em texto publicado na sexta-feira 30 de janeiro, ele opina que “a disputa por empregos em uma recessão e a posição contrária dos trabalhadores à desregulamentação do mercado de trabalho são fruto do modelo neoliberal defendido por Gordon Brown há mais de uma década”.

Os protestos encurralaram o primeiro-ministro. Ele havia discursado em alto e bom som, em 2007: “Empregos britânicos para os britânicos”. Os tempos eram outros e o premier nem imaginava que suas palavras seriam usadas contra ele. No Fórum Econômico Mundial, Brown fez um alerta vigoroso sobre o que chamou de protecionismo financeiro, o terceiro elemento do tripé do desespero, ao lado do comercial e do mercado de trabalho. Ele até cunhou um neologismo para explicar a situação mundial: estaríamos assistindo a um processo de “desglobalização”.

O primeiro-ministro referiu-se principalmente aos países em desenvolvimento, que estariam se defrontando com bancos reticentes em manter as linhas de crédito. Mas a Grã-Bretanha também se vê sufocada e a grande questão, segundo o WSJ, é se o estatizado Royal Bank of Scotland e grandes instituições privadas, como o HSBC, terão fôlego para suprir a demanda por empréstimos. Em coro com seus colegas europeus, a chanceler alemã, Angela Merkel, manifestou-se contra a cláusula Buy American. “Devemos evitar o protecionismo. É a resposta errada” à crise econômica mundial, disse em entrevista coletiva na terça-feira 27 de janeiro.

O Institute of International Finance (IIF), associação dos maiores bancos mundiais, prevê o declínio do investimento estrangeiro em países emergentes, de 466 bilhões de dólares em 2008 para 165 bilhões neste ano. Em relação ao boom de 2007, quando as inversões somaram 929 bilhões de dólares, a retração será de 82%. Situação dramática vão vivenciar os emergentes europeus. Rússia e Ucrânia, grandes dependentes de capital externo, serão os países mais afetados, de acordo com o instituto.

Toda essa discussão deve embaralhar ainda mais a Rodada de Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC). O diretor-geral, Pascal Lamy, alertou, na segunda-feira 2, contra medidas protecionistas. Citou Mahatma Gandhi, que disse “olho por olho torna o mundo cego”. Lamy exortou os empresários a apoiar Doha, “que pode ser parte da solução para a crise econômica”.

Em remissão histórica, Lamy lembrou o Smoot and Hawley Act, de 1930, que elevou drasticamente as tarifas de importação dos Estados Unidos sobre mais de 20 mil produtos. “Seguiu-se então a Grande Depressão”. Ele teme que formas mais sofisticadas de taxar as importações levem o mundo ao mesmo caminho.

Não foram apenas os europeus e asiáticos que levantaram as vozes contra o Buy American. O jornal Times também carregou nas tintas e comparou a cláusula ao protecionismo dos anos 30, alcunhado de beggar-thy-neighbour (políticas nacionais que beneficiam o país em detrimento dos vizinhos). O argumento da colunista Rosemary Righter é bastante discutível.

Segundo ela, a globalização foi a principal responsável pela prosperidade do mundo atual. “Em um nível simplificado, as camisetas baratinhas de Bangladesh fazem sobrar mais dinheiro para comprarmos outros bens.” Difícil digerir uma visão tão parcial. Nem tanto à política arrasa-quarteirão dos parceiros comerciais, nem tanto à completa liberdade dos mercados.

Revista Carta Escola

Planeta sessentão


por Gianni Carta
O envelhecimento da população, com seus efeitos sobre a economia, torna-se questão central nos países ricos. A Europa discute a extensão da idade para a aposentadoria

Há dois anos, Jean-Pierre Dalembert era descrito por seus colegas de trabalho como um eficaz funcionário da biblioteca pública de um bairro parisiense. Em 2008, ao completar 65 anos teve, de acordo com a legislação então vigente na França, de se aposentar. “Por que um homem física e mentalmente em forma deve parar de trabalhar se está apto a exercer as funções exigidas pelo seu emprego?”, pergunta Dalembert. Esbelto, habituado a longas caminhadas diárias, o aposentado dá mais um gole de café antes de acrescentar: “Além do mais, por causa da atual crise econômica a questão não é nem se eu quero continuar no emprego. Preciso trabalhar para sobreviver”.

Em consequência da crise financeira mundial, a França promulgou neste ano uma lei que permite aos cidadãos de até 70 anos trabalhar nos setores público e privado. Dalembert não foi beneficiado por ter sido obrigado a se aposentar poucos meses antes de a nova legislação entrar em vigor.

Em março deste ano, dois juízes britânicos entraram com uma ação na Corte de Justiça Europeia, em Luxemburgo, para estender a aposentadoria obrigatória para além dos 65 anos no Reino Unido. Os magistrados Stuart Southgate e Jeremy Varcoe, ambos de 70 anos, alegam que há discriminação contra idosos no mercado de trabalho. Não há, no Reino Unido, nenhum artigo da lei trabalhista que permita aos mais velhos recorrerem contra eventuais discriminações. Isso apesar de, em 2007, o país ter aprovado regras que, em tese, deveriam garantir igualdade de oportunidade a idosos.

A Corte de Justiça Europeia não acatou a ação dos juízes para não interferir na política econômica do premier Gordon Brown. O tribunal ressaltou, porém, que as cortes britânicas precisam justificar sua posição em defesa da obrigatoriedade da aposentadoria aos 65 anos. Por consequência, o debate acabou relançado no dividido Parlamento em Londres, que deverá se pronunciar ainda em abril sobre a idade de aposentadoria obrigatória.

Se por um lado a recessão e seu impacto nos cidadãos aposentados é uma realidade que precisa ser confrontada pelos governos, por outro esse período de vacas magras acelerou um antigo debate na Europa: como lidar com o espectro da chamada “bomba demográfica”? Veja o caso do Reino Unido. Em agosto de 2008, pela primeira vez na história, o número de aposentados excedeu o de jovens com menos de 16 anos. Quatro décadas atrás, os adolescentes correspondiam a 25% da população. À época, apenas 15% dos cidadãos tinham mais de 65 anos.

Progressos nos setores econômico, médico e de serviços universais de proteção social criaram uma saudável geração de baby boomers, os nascidos após a Segunda Guerra Mundial e agora em idade para obter a aposentadoria. Se pudessem e quisessem, senhoras e senhores dessa privilegiada geração poderiam trabalhar longos anos a mais do que os permitidos pela atual legislação numa União Europeia onde a vasta maioria pode requisitar a aposentadoria aos 60 anos – e todos têm de se aposentar aos 65. A UE pretende, por meio do Tratado de Lisboa, postegar a idade da aposentadoria, em mais um passo para aumentar a flexibilidade do mercado de trabalho no continente, considerado rígido em demasia.

Segundo dados fornecidos pela Eurostat, o IBGE da União Europeia, a expectativa média de vida na Europa aumentou oito anos desde 1960, e deverá crescer mais cinco anos até 2050. O porcentual de europeus com mais de 65 anos de idade deverá saltar de 16%, em 2000, para 27,5%, em 2050. A expectativa média de vida será então de 79,7 anos para os homens, e de 85,1 anos para as mulheres. Se em 2000 a fatia da população europeia com mais de 80 anos correspondia a 3,6% da população, 10% dos cidadãos europeus terão acima dessa idade em 2050. O segmento da população centenária é aquele que cresce mais rapidamente na Europa.

Ao mesmo tempo, o atual número médio de filhos por mulher (1,5) contribui para o envelhecimento do Velho Continente. Fluxos migratórios que trazem mulheres mais propensas a procriar – e jovens dispostos a conseguir empregos – poderiam compensar a baixa fecundidade. Mas isso só acontecerá se os governos europeus não erguerem maiores barreiras para manter a mão de obra não europeia longe. No momento, o que se vê são reações em sentido contrário, com o aumento de restrições a imigrantes, principalmente os menos qualificados para o mercado de trabalho.

Um indicador relativo ao envelhecimento do continente sobressai: o número de habitantes em idade produtiva (de 15 a 64 anos) nos 27 países da União Europeia deverá diminuir em 48 milhões de indivíduos até 2050, segundo a Eurostat. Por tabela, a taxa de dependência de aposentados na força ativa duplicará. Se atualmente quatro pessoas ativas sustentam um aposentado no Reino Unido, em 2050 apenas duas pessoas sustentarão aqueles com mais de 65 anos.

Numerosos economistas argumentam que, se a idade de aposentadoria obrigatória não for alterada, haverá um aumento explosivo de despesas em uma Europa com um déficit público já bastante elevado. O caso da Itália é um dos mais inquietantes. Com uma dívida pública correspondente a 109% do Produto Interno Bruto (a terceira maior dívida do mundo), e prevista retração econômica neste ano, a Confindustria (confederação industrial italiana) e o Fundo Monetário Internacional alegam ser urgente uma reforma no sistema previdenciário. Só assim o governo poderia manter os investimentos no setor público e lidar com o nível crescente de desemprego.

Reformas na previdência não renderiam, porém, frutos no curto período de doze meses. Além disso, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi reluta em colocá-las em prática. E não é difícil compreendê-lo: sua tentativa de reformar o sistema levou-o à renúncia durante a primeira passagem pelo cargo, em 1994.

Uma rápida avaliação da quantidade de cidadãos entre 60 e 64 anos que fazem parte da força ativa de trabalho demonstra como a Itália está abaixo das expectativas europeias. Segundo o Banco Central Europeu, 19% dos italianos trabalham nesta faixa etária, ante 33% na Alemanha e Espanha, 45% no Reino Unido, e 60% na Suécia.

“A sociedade vai precisar cada vez mais das contribuições econômicas e financeiras de cidadãos mais idosos”, afirma George Magnus, economista sênior do banco de investimentos UBS, em entrevista à CartaCapital. “Os custos sociais e econômicos de um crescente número de inativos acima de 60 ou 65 anos será muito superior ao do que se eles estiverem empregados”, acrescenta o economista, autor do livro The Age of Aging (A Era dos Idosos). Isso, claro, deve-se a dois fatores: quem permanece na força ativa de trabalho paga impostos e “consome, criando, assim, receita para terceiros”.

Na França, o Partido Socialista e sindicatos como a Confédération Nationale du Travail se opõem à nova lei de aposentadoria aos 70 anos. De acordo com a CNT, a mudança “representa um inaceitável ataque frontal contra aqueles que trabalham sob as mais difíceis condições”. O website oficial da CNT cita um dos principais slogans da campanha presidencial de Nicolas Sarkozy: “Trabalhar mais para ganhar mais”. E acrescenta: “Não, a versão moderna é ‘trabalhar mais para morrer de fome na rua’”.

Em seu ateliê em Montparnasse, no centro de Paris, Marie Lefrançois, de 67 anos, pinta um gato, onipresente animal em várias de suas obras. “Vou trabalhar até a morte. Ademais, minha aposentadoria jamais seria suficiente para eu sobreviver. Mas o meu trabalho me traz enorme prazer, enquanto aquele do operário de uma fábrica pode ser um inferno”, observa.

No bar do trem Eurostar para Londres, o afável barman britânico de 50 e poucos anos critica Arsène Wenger, técnico francês do Arsenal, um dos mais populares times de futebol de Londres. Eis o diálogo: “Você sabe qual é o problema de Wenger?” Não. “Ele é avaro como a grande maioria dos franceses.” Como assim? Com visível prazer pela minha aparente ignorância futebolística, completa: “Ele poderia ter comprado o Cristiano Ronaldo antes de o jogador assinar o contrato com o Manchester United. Isso em 2003. Mas Wenger não ofereceu o suficiente. E o dinheiro nem era seu, fazia parte do orçamento do Arsenal”. O indignado barman continua: “Wenger deixou de comprar um grande jogador que teria tornado seu time muito melhor”.

Do futebol, o barman passou à aposentadoria. Segundo ele, os franceses “começam a falar de sua aposentadoria já com 20 e poucos anos”. Ele abre a garrafa de água Perrier e a coloca no balcão, apresentando, em seguida, um copo de plástico. “É verdade, eles querem trabalhar o mínimo possível.” Talvez, sugiro, trabalhe mais quem gosta de seu emprego e menos quem tem empregos desgastantes. “É isso mesmo”, diz um senhor de espessos cabelos brancos e sotaque americano, o único outro passageiro, para a sorte do barman demasiado apegado a estereótipos, presente no vagão. Sentado ao lado de uma janela, o americano acrescenta: “Tenho 69 anos e continuo ativo. Mas, se eu trabalhasse em uma mina de carvão, estaria, é claro, aposentado”.

Em Londres a discriminação contra os idosos que fazem parte da força de trabalho parece ser tão transparente quanto em Paris. Mas, a despeito de a idade de aposentadoria ser ainda 65 anos no reinado, o debate deste lado do Canal da Mancha parece mais acirrado do que em Paris. Talvez a discrepância resida no fato de que, na porção francesa, a legislação que permite a extensão da idade obrigatória para a aposentadoria tenha sido resolvida rapidamente no Congresso. No reinado, em contrapartida, a discussão está na boca do povo e a imprensa britânica oferece amplo espaço ao tema.

O caso da popular socióloga e feminista Sheila Rowbotham sustenta a tese acima. Quando, no ano passado, Rowbotham, então com 65 anos, foi despedida da Universidade de Manchester, a campanha “Save Sheila” ganhou notoriedade global. Rowbotham, apontada por Simone de Beauvoir, em 1983, como uma das maiores pensadoras em atividade do mundo, recebeu o apoio de intelectuais de Itália, França, Espanha, Irlanda, Israel e Estados Unidos. Diante de tamanha manifestação global, a Universidade de Manchester voltou atrás, mantendo-a no cargo. Rowbotham, agora com 66 anos, continua a lecionar.

Magnus, o economista do banco UBS, argumenta que sucessivos governos britânicos preferiram, até agora, não abolir a lei de aposentadoria obrigatória aos 65 anos “porque quiseram satisfazer os interesses políticos e econômicos dos patrões, os quais não apreciam os custos e consequências de manter empregados idosos na força de trabalho”.

Sobre se existe, de fato, discriminação contra idosos, Magnus responde: “Sim. A percepção é que idosos são menos produtivos, menos capazes de aprender e de se adaptar”. Em algumas ocupações, continua o economista, essas alegações podem ser verídicas, por conta das condições físicas de certos idosos. Mas, acrescenta, em várias outras tudo não passa de “puro preconceito”.

Segundo o autor de The Age of Aging, quem tem mais de 65 anos pode exercer (e exerce) várias funções no mercado de trabalho britânico. Vários deles ocupam vagas nos setores de serviços, nas áreas de turismo, consultoria, pesquisa e educação, sociais e de saúde. Magnus conclui a entrevista em tom otimista: “Se o mercado de trabalho incluir pessoas da terceira idade, a discriminação contra os idosos poderá ser resolvida, ou ao menos reduzida”.

Patricia Brown concorda. Aos 66 anos, a ex-dona de restaurante francês no elegante bairro de Knightsbridge, em Londres, Brown não cogita parar de trabalhar. Loira e alta, tem a aparência de uma mulher de menos de 50 anos, corre e faz ioga duas vezes por semana. A floricultura que atualmente administra, também em Knightsbridge, lhe dá uma renda considerável. Brown faz parte da geração de baby boomers engajados politicamente – e isso num país onde, segundo Magnus, dentro de cinco anos mais da metade do eleitorado terá acima de 50 anos de idade.

Políticas e políticos terão, portanto, de pensar em como seduzir mulheres como Brown ao organizar suas campanhas eleitorais. Da mesma forma, as agências de publicidade terão de mudar sua visão da terceira idade. Não somente, as pessoas estão vivendo mais, mas seu poder aquisitivo tende a aumentar, ou, simplesmente, continuar no mesmo patamar de quando eram mais jovens.

Pirâmide Reformada

A distribuição etária da população mundial atravessa a maior mudança da história. O processo de envelhecimento é mais visível nos países desenvolvidos, mas ocorre em todos os recantos do globo, numa velocidade sem precedentes. A combinação entre o aumento da expectativa de vida e a queda na taxa de natalidade reflete avanços generalizados no combate a doenças e a melhora da qualidade de vida mesmo nas regiões mais empobrecidas. Ao mesmo tempo, apresenta às gerações futuras o desafio de atender às demandas crescentes de uma população composta de um número cada vez maior de idosos.

Nos primórdios da existência do homem, a vida durava entre 20 e 35 anos, e a média era arrastada para baixo por uma alta taxa de mortalidade durante a infância e a juventude. Por volta de 1900, a expectativa de vida subia para 45 a 50 anos nos países industrializados e começava a se elevar também no restante do mundo. Um século depois, um homem comum pode esperar viver até os 65 anos, na média, ou ultrapassar os 80 anos de idade em algumas economias avançadas, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU).

A edição de 2007 do Estudo Econômico e Social Mundial da ONU adotou o tema Desenvolvimento em um Mundo que Envelhece. E mostrou que a expectativa de vida no Japão, a mais alta entre os maiores países desenvolvidos, deve subir do atual patamar de 82 anos (registrado entre 2000 e 2005), para 88 anos entre 2045 e 2050. O Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia não ficam muito atrás, com evolução esperada dos atuais 80 anos para a média de 85 anos no mesmo prazo de cinco décadas. Nos Estados Unidos, as projeções apontam para uma longevidade de 82 anos entre 2045 e 2050, ante os atuais 77 anos.

Para o mundo em desenvolvimento, o relatório traz a promessa de mutações ainda maiores. Como os sete anos a mais de vida a serem conquistados pela população da América Latina (de 72 para 79 anos, nos primeiros 50 anos do século XXI). Ou, no extremo com os piores índices do planeta, a África, a elevação de uma expectativa média de 49 anos, no início dos anos 2000, para 65 anos até 2050.

A distribuição etária da população mundial tende a se afastar da antiga estrutura piramidal. A base será mais estreita em relação ao corpo, que terá de suportar um topo cada vez mais alargado por uma massa de cidadãos com mais de 65 anos. De acordo com o relatório da ONU, “a não ser que o crescimento econômico possa ser acelerado de modo sustentável, essa tendência continuará a impor pesadas demandas à população em idade de trabalho para manter um fluxo de benefícios aos grupos mais velhos”.

A boa notícia é que as mudanças futuras são bem compreendidas e altamente previsíveis. “Ainda que o envelhecimento da população seja inevitável, suas consequências dependem das medidas adotadas para enfrentar os desafios que o processo impõe”, conclui a ONU.

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