segunda-feira, 1 de junho de 2009

O país das mil colinas

Depois de enfrentar um dos maiores genocídios da história, os ruandeses tentam voltar à vida normal e promover a reconciliação

Texto: Pedro da Cunha e Menezes

Pequena nação da montanhosa região dos Grandes Lagos Africanos, Ruanda vive da agricultura em propriedades familiares

Ao aterrissar no aeroporto da capital Kigali, é possível entender o motivo pelo qual Ruanda é chamada de País das Mil Colinas. A cidade é emoldurada por uma seqüência de colinas verdejantes; seus bairros ricos acotovelam-se em vales estreitos, os subúrbios aboletam-se em íngremes encostas. O trânsito flui, não há lixo nas ruas nem a algazarra de centenas de camelôs ocupando as calçadas, tão comuns em outras capitais africanas. Quando lá chegamos, 11 anos após o infame genocídio que custou a vida de 1 milhão de ruandenses, ou 11,5% da população, Kigali – mesmo espremida pela geografia –, não transpira mais a tensão que provocou o conflito entre as etnias tutsi e hutu. De fato, há mesmo quem diga que, antes da chegada dos europeus à região, no século 19, ela nunca existiu.

Tutsis e hutus não eram então dois povos, mas duas classes sociais nessa que é uma das regiões mais populosas da África. Os tutsis eram os donos de terras e de rebanhos bovinos, enquanto os hutus se dedicavam à agricultura e aos trabalhos braçais. Se um hutu ascendia socialmente, virava tutsi; a recíproca também era verdadeira. Os dois grupos viviam em paz e o único problema, que aumentou com o tempo, era o desmatamento para dar lugar à agricultura. Tanto que hoje o que sobrou de vegetação divide-se em um punhado de parques nacionais de savana africana e de floresta tropical.

Ruanda foi ocupado pelos belgas após a Primeira Guerra Mundial. Para terem um aliado que os ajudasse governar, os belgas reforçaram o papel hegemônico dos tutsis, dotando-os de poder político, econômico e militar. Além disso, fortaleceram as diferenças destes com os hutus, tornadas éticas e imutáveis. Quem tinha mais de dez vacas, nariz fino e pele mais clara, cristalizou-se como tutsi. Os hutus foram rotulados como povo (85% dos ruandenses) e inferiores.

Kigali é cercada por colinas verdejantes; os subúrbios invadem as encostas

Não satisfeitos com esse apartheid, o governo colonial optou por aumentar as diferenças, privilegiando os tutsis na hora de escolher os quadros da administração civil. As poucas escolas que foram criadas destinavam-se, sobretudo, a formar uma elite local tutsi que auxiliasse os belgas na tarefa de subjugar o país. Com o passar do tempo, a divisão imposta começou a gerar ressentimento entre os dois grupos. Na luta pela independência, as diferenças se acentuaram. Os tutsis manobraram para herdar o poder dos belgas, mas enfrentaram uma revolta hutu que, em 1959, obrigou 160 mil tutsis a fugir para os países vizinhos. Com a independência, em 1962, os hutus assumiram a direção da vida política em Ruanda, iniciando um processo de reversão dos privilégios tusis. Cerca de 500 mil tutsis deixaram o país, formando a Frente Patriótica Ruandesa, que invadiu o norte de Ruanda em 1990.

Seguiram-se dois anos de guerra até que os rebeldes, que já estavam próximos de Kigali, concordaram com um cessar-fogo. Seguiram-se prolongadas negociações que levaram ao compromisso de formação de um governo de união nacional em 1994. Antes que o acordo fosse posto em prática, um atentado mudou tudo.

No Memorial do Genocídio, hoje existente nos arredores de Kigali, estão expostos vários casos de vizinhos que massacraram vizinhos, genros que mataram sogras, alunos que esquartejaram professores. As ruas da capital encheram-se de corpos mutilados. Os tutsis eram o alvo, mas também os hutus moderados que acreditavam em uma convivência pacífica, como se pode ver no filme Hotel Ruanda (2004), que conta a história real de um gerente de hotel que decide abrigar milhares de refugiados. Diante da imobilidade das Nações Unidas, as tropas tutsis da Frente Patriótica Ruandesa retomaram as hostilidade e, eventualmente, dominaram todo o território.

O tempo passou, a tensão diminuiu, mas o país ainda não se recuperou totalmente. E nem poderia. Mas há esperança no ar. Kigali está cheia de atividade. Nos morros que a rodeiam, os mais pobres vivem em pequenas casas no meio de micropropriedades onde plantam sua subsistência e criam umas poucas cabras e vacas. Hoje, oficialmente, não existem mais tutsis e hutus. O novo governo aboliu a odiosa classificação étnica. Na aparência, na língua e na cultura não há diferenças. Em resposta aos novos tempos, a taxa de fecundidade aumentou.

Por trás das ruas limpas e floridas de Kigali e dos campos cultivados do interior, no entanto, está um povo que não sorri com facilidade. Jovens que, ainda crianças, perderam pai, mãe, avós e trabalham muito para ganhar o suficiente para sobreviver. As mulheres são responsáveis por extensas famílias de crianças, muitas infectadas pelo HIV, uma vez que os estupros foram uma das armas do terror. Um tribunal internacional instalado pela ONU em Arusha, na Tanzânia, em 1994, está encarregado de julgar os grandes criminosos de guerra – 43 ao todo, entre ex-membros do governo, ex-chefes do exército e líderes regionais. Em Ruanda, outros 3 mil já foram julgados, com 500 condenações à morte. Nas aldeias, hordas de cidadãos comuns que se deixaram levar pela onda de assassinatos aguardam julgamento. Há 120 mil prisioneiros que, vestidos de macacão rosa, realizam trabalhos forçados no interior do país.


Cenas de horror

O maior genocídio africano teve início depois que o presidente hutu Juvenal Habyarimana morreu em um atentado, quando o seu avião foi derrubado por um míssil terra-ar. A derrubada serviu de senha para que hutus armados de facões saíssem pela cidade em busca de tutsis. Insuflados por transmissões inflamadas da Rádio Televisão Livre Mil Colinas, tropas do Exército, auxiliadas por milícias paramilitares, montaram barreiras nas ruas e promoveram a carnificina em todo o país (veja foto da época). No processo, receberam a ajuda de civis influenciados pela loucura macabra da “solução final”, pregada pela Mil Colinas.

As montanhas dos gorilas

No norte de Ruanda, nas montanhas dos Virungas, está o Parque Nacional dos Vulcões. Ali vive a metade dos 650 gorilas da montanha existentes no mundo. São animais criticamente ameaçados de extinção. Sobreviveram ao genocídio e à falta do estado de direito que propiciou a caça indiscriminada. Sobreviveram também à destruição de seu hábitat por uma população faminta em busca de novos terrenos para a agricultura longe do perigo de seus semelhantes

O filme A Montanha dos Gorilas, de 1988, mostra como os gorilas da montanha são criaturas gentis e amigáveis, que dividem com o homem 97% de seu material genético. Atraem hoje a quase totalidade dos 8 mil turistas que visitam Ruanda todo ano. Cada viajante paga 370 dólares pelo direito ao passeio pelas montanhas. No parque, caminham horas na mata até encontrar um dos oito grupos de gorilas que habitam os 80 km2 dos Virungas. O grupo recebe os humanos com curiosidade. Troca com os visitantes olhares de boas-vindas e continua ocupado com suas atividades diárias. Fêmeas gulosas seguem comendo seus brotos de bambu, mães catam piolhos dos gorilinhas, adolescentes gastam seus hormônios em saltos exibicionistas de árvore em árvore. Tudo isso sob a guarda vigilante do “costas prateadas”, o macho dominante do grupo.Na trilha de volta à civilização, os visitantes são brindados com um meigo olhar do “costas prateadas”, como a dizer adeus. Na estrada, retornando a Kigali, em meio às lembranças de tristeza e dor, é impossível não pensar nos gorilas de Ruanda como vencedores. Com uma dose de otimismo, o visitante tem a certeza de que um país que logrou preservar tão belo e doce animal em meio a tanta barbárie, tem todo o direito de sonhar com um futuro de tolerância e alegrias.



Ficha técnica

República Ruandesa

Área: 26.338 km2

Capital: Kigali

Governo: República com forma mista de governo

População: 8,5 milhões (2004)

Composição: hutus (90%), tutsis (9%), tvás (1%)

Idiomas: francês, inglês, quiniaruanda (oficiais)

Religião: cristianismo (82,7%) católicos (51%), protestantes (21%), outros (10,8%), crenças tradicionais (9%), islamismo (7,9%), outras (0,4%)

Revista Horizonte Geográfico

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