domingo, 17 de maio de 2009

O Ciclo de vida das Galáxias







Os cientistas estão perto de explicar a variedade de formas assumidas por essas estruturas cósmicas.
por Guinevere Kauffmann e Frank van den Bosch


A Galáxia do Sombrero serve de exemplo para praticamente todos os fenômenos galácticos que os astrônomos lutam há um século para resolver. Tem um grande bulbo elipsoidal de estrelas, um buraco negro supermaciço situado bem no interior desse bulbo e grupos de estrelas espalhados pelos limites. Estendendo-se para além desta imagem, está o que se acredita ser um grande halo de matéria escura, invisível.

Cientistas estão perto de explicar a incrível variedade de formas assumidas por essas estruturas cósmicas.São muitas as histórias de ficção científica onde um poderoso império encontra o fim devido à sua própria arrogância: ele acha que pode conquistar e governar uma galáxia inteira. Trata-se de uma meta ambiciosa. Para pôr nossa Via Láctea sob controle, o império seria obrigado a ocupar cem bilhões de estrelas. Esses números não chegam a impressionar os cosmólogos, astrônomos que estudam o Universo como um todo. A Via Láctea é apenas uma das 50 bilhões, ou um número ainda maior, de galáxias do espaço que podemos observar. Conquistar a Via Láctea seria como ocupar uma insignificante ilhota.

Apenas um século atrás, não se conhecia a existência de todas essas galáxias. Para a maior parte dos astrônomos, Galáxia e Universo eram sinônimos. No espaço existiam mais ou menos 1 bilhão de estrelas e entre elas ocorriam borrões de material nebuloso que pareciam estrelas nascendo ou morrendo. Nas primeiras décadas do século XX, porém, a astronomia passou por uma idade de ouro. O astrônomo americano Edwin Hubble e outros cientistas determinaram que esses borrões eram, às vezes, outras galáxias.

Mas por que as estrelas se situam em gigantescos conjuntos separados por enormes vazios e por que as galáxias surgem numa incrível variedade de formas, tamanhos e massas? Os astrônomos dedicaram muito tempo para responder a essas questões nas últimas décadas. Não é possível observar a formação de uma galáxia, pois se trata de um processo muito lento do ponto de vista humano. Os pesquisadores são obrigados a montar um quebra-cabeça, observando diversas galáxias, cada uma numa etapa diferente de evolução. Esse trabalho, porém, só se tornou rotina cerca de dez anos atrás, quando a astronomia entrou numa nova idade de ouro.

Progressos espetaculares na tecnologia dos telescópios e dos detectores estão agora permitindo aos astrônomos acompanhar as mudanças que ocorrem nas galáxias em escalas de tempo cósmicas. Os equipamentos do Telescópio Espacial Hubble penetram profundamente no céu, revelando a existência de novas galáxias em níveis praticamente impensáveis. Instrumentos localizados na superfície, como os gigantescos telescópios Keck, estão colhendo dados sobre galáxias muito distantes - e, conseqüentemente, muito antigas. É como se os biólogos especializados na evolução tivessem ganho uma máquina do tempo, permitindo que visitassem a pré-história e fotografassem animais e plantas que viviam na Terra em períodos diferentes de seu passado. O desafio diante dos astrônomos, como o que surgiria para seus colegas biólogos, é determinar como as espécies surgidas no princípio evoluíram até chegar ao ponto em que se encontram agora.

Trata-se de uma tarefa de proporções verdadeiramente astronômicas. Envolve a aplicação da física em escalas terrivelmente diferentes, da evolução cosmológica de todo o Universo à formação de uma única estrela. Esse panorama faz com que seja difícil formar modelos realísticos da formação das galáxias, mas traz a possibilidade de atingir todo o ciclo do problema. A descoberta desses bilhões de galáxias reformulou a astronomia estelar e a cosmologia. No grande esquema das coisas, as estrelas são muito pequenas para terem importância. Ao mesmo tempo, os debates sobre a origem do Universo parecem abstratos demais para a maioria dos astrônomos estelares. Sabemos agora que um quadro coerente do Universo deve levar em conta tanto o grande como o pequeno.

Espécies de galáxias

Para compreender como uma galáxia se forma, os astrônomos procuram padrões e tendências em suas propriedades. De acordo com o esquema de classificação proposto por Hubble, as galáxias dividem-se em três tipos principais: elípticas, espirais e irregulares. As maiores são as elípticas. São sistemas relativamente simples, sem características especiais, sistemas quase esféricos sem ou com poucos gases e poeira. As estrelas giram ao redor do centro como abelhas em volta da colméia. A maior parte das estrelas é muito velha.

As galáxias espirais, nas quais se incluem nossa Via Láctea, são estruturas achatadas e muito organizadas, nas quais estrelas e gases se movimentam em órbitas circulares ou quase circulares em torno de um centro. Por isso, também são conhecidas como galáxias de disco. Os braços em espiral são filamentos de estrelas jovens e quentes, gases e poeira. As galáxias espirais têm, no centro, bulbos, ajuntamentos esferóides de estrelas que lembram galáxias espirais em miniatura. Mais ou menos um terço das galáxias espirais têm, na direção do centro, uma estrutura retangular, a barra. Provavelmente, a barra é conseqüência de instabilidades no disco.

As galáxias irregulares são as que não podem ser classificadas como espirais ou elípticas. Algumas parecem ser galáxias espirais ou elípticas que foram violentamente distorcidas por um encontro recente com um vizinho. Outros são sistemas isolados com estruturas mal-definidas, sem indicações de distúrbios recentes.

As três classes incluem galáxias com luminosidades muito diferentes. Na média, porém, as elípticas são mais brilhantes que as espirais e as irregulares. Para as galáxias com menos brilho, o esquema de classificação deixa de ter utilidade. Essas galáxias anãs são heterogêneas por sua própria natureza e nenhuma tentativa de classificá-las deixou de criar muitas controvérsias. Em termos gerais, elas se dividem em duas categorias: sistemas ricos em gases, nos quais há muita atividade de formação de estrelas, e sistemas pobres em gases, sem formação de estrelas.

A maior parte das galáxias está situada a grande distância de suas vizinhas. As espirais são dominantes e apenas entre 10 e 20% são elípticas. As galáxias restantes, porém, estão mais próximas entre si, formando aglomerados, e, nelas, a situação se inverte. As elípticas são maioria, e as poucas espirais são sistemas anêmicos, sem gases e sem estrelas jovens. Esse fenômeno, chamado de relação morfologia-densidade intriga os astrônomos.

Claro e Escuro

Uma pequena proporção de espirais e elípticas tem uma característica especial. Essas galáxias possuem um núcleo muito brilhante e pontudo, chamado núcleo galáctico ativo (NGA). Os exemplos mais luminosos e mais raros são os quasares, tão intensos que obscurecem as galáxias onde estão localizados. Os astrônomos acreditam que a força dos NGA vem de buracos negros que têm de milhões a bilhões de massas solares. De acordo com estudos teóricos, os gases que caem nesses monstros irradiam cerca de 10% de sua energia intrínseca, o suficiente para criar um farol capaz de ser visto do outro lado do universo.

Os NGA já foram considerados anomalias, mas hoje se sabe que fazem parte do processo de formação da galáxia. O pico da atividade dos NGA ocorreu quando o Universo tinha aproximadamente um quarto de sua idade atual, aproximadamente o mesmo período de formação da maioria das estrelas das galáxias elípticas. Além disso, acredita-se agora que existem buracos negros supermaciços em praticamente todas as galáxias elípticas e em todas as galáxias espirais com bulbos, tenham ou não NGA. A conclusão é a de que todas as galáxias podem passar por um ou mais episódios de atividade dos NGA. Enquanto matéria continuar a cair no buraco negro, o núcleo se mantém ativo. Quando o centro pára de receber material novo, entra em dormência.

A maior parte das informações sobre esses fenômenos vem dos fótons: fótons ópticos das estrelas, fótons de rádio de gases neutros de hidrogênio, fótons de raios-X de gases ionizados. Mas a enorme maioria da matéria existente no Universo provavelmente não emite fótons em nenhum comprimento de onda. Trata-se da famigerada matéria escura, cuja existência se infere apenas de seus efeitos gravitacionais. Acredita-se que as partes visíveis das galáxias estejam envelopadas por gigantescos "halos" de matéria escura.

Ninguém conseguiu detectar diretamente matéria escura até hoje e sua natureza é um dos maiores mistérios da ciência. A maioria dos astrônomos apóia a idéia de que a matéria escura é constituída na maior parte de partículas ainda não identificadas que interagem mal com partículas comuns ou entre si. Normalmente, esse tipo de partículas é chamado pelos astrônomos de matéria escura fria (MEF) e os modelos cosmológicos que defendem sua existência recebem a classificação de modelos MEF.

Nos últimos 20 anos, diversos astrônomos desenvolveram com muita dificuldade um modelo de formação de galáxia com base na matéria escura fria. A estrutura básica é a teoria padrão do Big Bang para a expansão do Universo. Os cosmólogos continuam a discutir como a expansão começou e o que ocorreu no começo, mas isso não influencia muito o problema da formação das galáxias. Vamos entrar na história cerca de 100 mil anos depois do Big Bang, quando o Universo era constituído de bárions (matéria normal, predominantemente núcleos de hidrogênio e hélio), elétrons (ligados aos núcleos), neutrinos, fótons e matéria escura fria. Observações indicam que a matéria e as radiações estavam bem-distribuídas: a densidade, em posições diferentes, tinha variações de apenas cerca de uma parte para 100 mil. O problema é descobrir como esses ingredientes simples deram origem à enorme variedade das galáxias.

Quando comparamos as condições existentes nesse período com a distribuição de matéria existente hoje, surgem duas diferenças importantes. A primeira é que no Universo atual ocorrem diferenças enormes com relação à densidade. As regiões centrais das galáxias são mais de 100 bilhões de vezes mais densas que a média do Universo. A Terra é 10 bilhões de bilhões de vezes ainda mais densa. A segunda é a de que apesar de os bárions e a MEF estarem bem misturados no início, os bárions formam hoje grupos densos (as galáxias) no interior de halos gigantescos de matéria escura. De alguma forma os bárions e a matéria escura fria se separaram.

A primeira diferença pode ser explicada pelo processo de instabilidade gravitacional. Se uma região é um pouco mais densa que a média, o excesso de massa produzirá uma força gravitacional também um pouco maior que a média, o que, por sua vez, atrairá matéria. A massa cresce e aumenta mais um pouco o campo gravitacional, o que atrai mais massa. Esse processo constante amplifica as diferenças iniciais de densidade.

Enquanto esse processo decorre, a gravidade da região compete com a expansão do Universo, que tende a afastar a matéria. No começo, a expansão cósmica vence e a densidade da região continua a decair. Mas essa diminuição é mais lenta que a ocorrida na densidade das áreas próximas. À certa altura, o excesso de densidade da região comparada com a das áreas próximas se torna tão pronunciada que sua atração gravitacional supera a expansão cósmica. A região começa a entrar em colapso.

Até esse ponto, a região não é um objeto coerente, mas simplesmente um aumento de densidade perdido na neblina de matéria que enche o Universo. Mas, quando a região entra em colapso, começa a ter vida interna própria. O sistema, que a partir de agora vamos chamar de protogaláxia, procura estabelecer uma forma qualquer de equilíbrio. Os astrônomos costumam chamar esse processo de relaxamento. Os bárions se comportam como partículas de um gás qualquer. Aquecidos pelas ondas de choque iniciadas pelo colapso, trocam energia por meio de colisões diretas uns com os outros, chegando assim ao equilíbrio hidrostático, uma situação de equilíbrio entre a pressão e a gravidade.

Na matéria escura, no entanto, o relaxamento ocorre de forma bem diferente. As partículas MEF são, por definição, pouco interativas. Não têm a capacidade de redistribuir energia entre elas por meio de colisões diretas. Um sistema formado por essas partículas não pode chegar ao equilíbrio hidrostático. Em vez disso, ele passa pelo que é chamado de relaxamento violento. As partículas trocam energia não com outra partícula isolada, mas com a massa coletiva de partículas, por meio do campo gravitacional.

O ponto de chegada do colapso e relaxamento de uma protogaláxia é um halo de matéria escura, no interior do qual o gás bariônico se encontra em equilíbrio hidrostático numa temperatura tipicamente de uns poucos milhões de graus. Como as partículas MEF conservam sua energia a partir desse momento, o gás bariônico pode emitir radiações. Ele resfria, se contrai e se acumula no centro do halo de matéria escura. O resfriamento, assim, é o processo responsável pela separação dos bárions das partículas MEF.

Até agora, colocamos nosso foco numa única protogaláxia e ignoramos as redondezas. Na realidade, outras protogaláxias estão em formação nas proximidades. A gravidade costuma aproximá-las e elas se unem, formando uma estrutura maior. Essa estrutura também se unirá com outra e o processo se repete. A formação hierárquica é uma característica dos modelos MEF. A razão é simples. Como as flutuações em pequena escala na densidade são impostas sobre flutuações em escala maior, a densidade atinge o valor mais alto sobre as regiões menores. Podemos fazer uma analogia com o topo da montanha. A posição exata do pico corresponde a uma estrutura pequena: por exemplo, uma pedrinha sobre uma rocha que está sobre uma elevação no alto da montanha. Se uma nuvem descer sobre a montanha, tampa primeiro a pedrinha, depois a rocha, depois a elevação e, por fim, o resto da montanha.

De forma semelhante, as regiões mais densas do universo inicial são as menores protogaláxias. Elas são as primeiras regiões a entrar em colapso, só depois sendo seguidas por estruturas progressivamente maiores. O que diferencia as MEF de outros tipos possíveis de matéria escura é que ela tem flutuações de densidade em todas as escalas.

A formação hierárquica dos halos de matéria escura não pode ser descrita por meio de relacionamentos matemáticos simples. Estudamos melhor o assunto usando simulações numéricas. Para representar uma parte significativa do Universo com resolução suficiente para perceber a formação dos halos individuais, os pesquisadores precisam usar os mais recentes supercomputadores. As propriedades estatísticas e a distribuição espacial dos halos que emergem dessas simulações estão de acordo, de forma excelente, com as percebidas nas galáxias observadas, o que dá um forte apoio ao quadro hierárquico e daí à tese da existência das MEF.

Dê um giro

O quadro hierárquico explica de forma natural as formas das galáxias. Nas galáxias espirais, as estrelas e gases se movem em órbitas circulares. A estrutura dessas galáxias é, assim, governada pelo momento angular. De onde vem esse momento angular? De acordo com o quadro padrão, quando as protogaláxias preencheram o Universo, exerceram forças de maré, fazendo com que começassem a girar em torno de si mesmas. Depois que as protogaláxias entraram em colapso, mantiveram o momento angular.

Quando a temperatura dos gases das protogaláxias começaram a cair, eles se contraíram e caíram na direção do centro. Da mesma forma que os patinadores do gelo giram mais depressa em torno de si mesmos quando encolhem os braços, os gases foram girando cada vez mais rapidamente enquanto se contraíam. Eles se achataram, da mesma maneira que a Terra é ligeiramente mais achatada que uma esfera perfeita, por causa de sua rotação. Chegou uma hora em que os gases giravam tão depressa que a força centrífuga, dirigida para fora, igualou a da gravidade, dirigida para dentro. Ao atingir o equilíbrio centrífugo, os gases estavam tão achatados que formavam um disco fino. A densidade era suficiente para que os gases se amontoassem em nuvens e foi assim que as estrelas se formaram. Surgiu uma galáxia espiral.

Como a maioria dos halos de matéria escura acabam por ter um pouco de momento angular, é de se espantar porque nem todas as galáxias são espirais. Como aparecem as galáxias elípticas? Há duas teorias em curso entre os astrônomos. Uma é a de que as estrelas das elípticas e bulbos atuais se formaram durante um colapso monolítico, nos primeiros tempos do Universo. A outra é a de que as elípticas surgiram em períodos relativamente recentes e são o resultado da união de galáxias espirais.

O segundo ponto de vista ganhou popularidade nos últimos anos. Simulações de computador bem detalhadas da fusão de duas espirais mostram que o forte campo gravitacional flutuante destrói os dois discos. As estrelas no interior das galáxias estão muito distantes entre si para se chocarem e o processo de união, assim, é muito semelhante ao relaxamento violento sofrido pela matéria escura. Grande parte dos gases dos discos das duas galáxias originais perde o momento angular e se precipita para o centro. Ali, os gases atingem densidades muito altas e começam a formar estrelas num ritmo acelerado. Com o passar do tempo, mais gases chegam à área, esfriam e formam um novo disco em torno da elíptica. O resultado é uma galáxia espiral com um bulbo no centro.

A alta eficiência da formação de estrelas durante as fusões de galáxias explica as razões pelas quais as elípticas normalmente têm poucos gases: eles foram usados. O modelo das fusões também dá conta da relação morfologia-densidade: uma galáxia num ambiente de alta densidade passará por mais fusões e terá, assim, mais oportunidades de se transformar em elíptica.

Indicações obtidas pela observação mostram que as fusões e interações foram comuns no Universo, especialmente em seus primeiros tempos. Nas imagens tomadas pelo Telescópio Espacial Hubble, muitas galáxias antigas mostram morfologias com distúrbios, sinal evidente de interação.

Se as galáxias elípticas e bulbos espirais estão relacionados com a fusão de galáxias, pode ser que ela também seja a responsável pela criação dos buracos negros supermaciços. As massas do buraco negro estão fortemente relacionadas com as massas da galáxia elíptica ou do bolsão que o cercam. Não há relação entre elas e a massa do disco das espirais. Os modelos de fusão foram ampliados de maneira a incorporar buracos supermaciços e, dessa forma, núcleos galácticos ativos (NGA). A grande quantidade de gases empurrada para o centro durante uma fusão pode fazer reviver um buraco negro adormecido. Ou seja, os quasares eram mais comuns no passado porque as fusões de galáxias também eram mais comuns.

No quadro hierárquico, as galáxias anãs são as sobras, pequenos ajuntamentos que ainda não se uniram entre si. Observações recentes mostram que a formação de estrelas nas anãs é particularmente irregular, vindo em erupções curtas separadas por longos períodos de calma. Em galáxias como a Via Láctea, a formação de estrelas ocorre num ritmo mais regular. São fatos intrigantes, pois muitas vezes os astrônomos aderiram à hipótese de que a fertilidade de uma galáxia é determinada por sua massa. Em galáxias pequenas, explosões de supernovas podem perturbar ou mesmo afastar todos os gases de um sistema, impedindo assim a formação de estrelas.

Embora já tenhamos um quadro padrão da formação das galáxias que responde com sucesso às principais perguntas sobre o assunto, ainda estamos longe de poder explicar todos os processos envolvidos. Além disso, os pesquisadores precisam resolver inconsistências muito fortes. A simples imagem dos gases se resfriando no interior de halos de matéria escura enfrenta um problema importante, conhecido como catástrofe do resfriamento. Os cálculos dos índices de resfriamento indicam que os gases esfriaram muito depressa e se juntaram no centro dos halos, deixando praticamente vazio o espaço intergaláctico. Mas o espaço entre as galáxias não está vazio, muito longe disso.

Mais informações, por favor.

Há outro problema, relacionado com o momento angular. A quantidade de momento angular atribuído às protogaláxias nos modelos é comparável ao momento angular que observamos nas galáxias espirais. Enquanto os gases mantêm o momento angular, o quadro MEF reproduz os tamanhos observados das espirais. Nas simulações, no entanto, infelizmente, o momento angular desaparece. Grande parte é transferido para a matéria escura durante as fusões de galáxias. Em conseqüência, os discos que aparecem dessas simulações são menores por um fator de dez. Aparentemente, ainda falta um ingrediente essencial nos modelos.

Uma terceira inconsistência tem a ver com o número de galáxias anãs. As teorias hierárquicas prevêem uma proliferação de halos de matéria escura com pouca massa e, por extensão, de galáxias anãs. Não é o caso. Nas vizinhanças da Via Láctea, o número de anãs de pouca massa é inferior ao previsto pelas teorias por um fator de entre 10 e 100. Ou esses halos de matéria escura não existem ou estão ali e não foram detectados porque não há formação de estrelas no seu interior.

Foram sugeridas diversas soluções para esses problemas. As propostas caem em duas classes: uma mudança fundamental no modelo, talvez na natureza da matéria escura, ou uma revisão no quadro atual de como os gases em resfriamento se transformam em estrelas. Como a maioria dos astrônomos mostra relutância em abandonar o modelo MEF, que funciona muito bem em escalas maiores que as das galáxias, foram concentrados esforços em melhorar o conhecimento sobre a formação das estrelas. Os modelos atuais passam rapidamente sobre o processo, que ocorre em escalas muito menores que as de uma galáxia comum. Uma incorporação total está bem abaixo da capacidade dos supercomputadores modernos.

Apesar disso, a formação de estrelas pode ter efeitos profundos sobre a estrutura de uma galáxia. Alguns astrônomos acham, inclusive, que a ação das estrelas poderia resolver os três problemas de uma vez. A energia liberada pelas estrelas pode aquecer os gases, influenciando a catástrofe do resfriamento. O aquecimento também pode tornar mais lenta a descida de gases para o centro da galáxia e reduzir dessa forma a tendência de transferência do momento angular para a matéria escura, o que reduziria o problema do momento angular. As explosões de supernovas, por sua vez, pode ejetar massa das galáxias de volta para o meio interestelar. Nos halos de massa menor, com velocidade de escape pequena, o processo seria tão eficiente que dificilmente uma estrela chegaria a formar-se. Isso explicaria os motivos pelos quais observamos menos galáxias anãs que o previsto.

Embora já tenhamos um quadro padrão da formação das galáxias que responde com sucesso às principais perguntas sobre o assunto, ainda estamos longe de poder explicar todos os processos envolvidos. Além disso, os pesquisadores precisam resolver inconsistências muito fortes. A simples imagem dos gases se resfriando no interior de halos de matéria escura enfrenta um problema importante, conhecido como catástrofe do resfriamento. Os cálculos dos índices de resfriamento indicam que os gases esfriaram muito depressa e se juntaram no centro dos halos, deixando praticamente vazio o espaço intergaláctico. Mas o espaço entre as galáxias não está vazio, muito longe disso.

Mais informações, por favor.

Há outro problema, relacionado com o momento angular. A quantidade de momento angular atribuído às protogaláxias nos modelos é comparável ao momento angular que observamos nas galáxias espirais. Enquanto os gases mantêm o momento angular, o quadro MEF reproduz os tamanhos observados das espirais. Nas simulações, no entanto, infelizmente, o momento angular desaparece. Grande parte é transferido para a matéria escura durante as fusões de galáxias. Em conseqüência, os discos que aparecem dessas simulações são menores por um fator de dez. Aparentemente, ainda falta um ingrediente essencial nos modelos.

Uma terceira inconsistência tem a ver com o número de galáxias anãs. As teorias hierárquicas prevêem uma proliferação de halos de matéria escura com pouca massa e, por extensão, de galáxias anãs. Não é o caso. Nas vizinhanças da Via Láctea, o número de anãs de pouca massa é inferior ao previsto pelas teorias por um fator de entre 10 e 100. Ou esses halos de matéria escura não existem ou estão ali e não foram detectados porque não há formação de estrelas no seu interior.

Foram sugeridas diversas soluções para esses problemas. As propostas caem em duas classes: uma mudança fundamental no modelo, talvez na natureza da matéria escura, ou uma revisão no quadro atual de como os gases em resfriamento se transformam em estrelas. Como a maioria dos astrônomos mostra relutância em abandonar o modelo MEF, que funciona muito bem em escalas maiores que as das galáxias, foram concentrados esforços em melhorar o conhecimento sobre a formação das estrelas. Os modelos atuais passam rapidamente sobre o processo, que ocorre em escalas muito menores que as de uma galáxia comum. Uma incorporação total está bem abaixo da capacidade dos supercomputadores modernos.

Apesar disso, a formação de estrelas pode ter efeitos profundos sobre a estrutura de uma galáxia. Alguns astrônomos acham, inclusive, que a ação das estrelas poderia resolver os três problemas de uma vez. A energia liberada pelas estrelas pode aquecer os gases, influenciando a catástrofe do resfriamento. O aquecimento também pode tornar mais lenta a descida de gases para o centro da galáxia e reduzir dessa forma a tendência de transferência do momento angular para a matéria escura, o que reduziria o problema do momento angular. As explosões de supernovas, por sua vez, pode ejetar massa das galáxias de volta para o meio interestelar. Nos halos de massa menor, com velocidade de escape pequena, o processo seria tão eficiente que dificilmente uma estrela chegaria a formar-se. Isso explicaria os motivos pelos quais observamos menos galáxias anãs que o previsto.

TIPOS DE GALÁXIAS

OS ASTRÔNOMOS DIVIDEM AS GALÁXIAS de acordo com um sistema de classificação conhecido como "diapasão", desenvolvido pelo astrônomo americano Edwin Hubble na década de 20. Esse sistema distribui as galáxias em três tipos básicos: elípticas (representadas pelo braço do diapasão, à direita), espirais (as pontas do diapasão) e irregulares (abaixo, à esquerda). As galáxias menores, conhecidas como anãs, têm taxonomia própria, ainda incerta.

Cada tipo tem subtipos determinados por detalhes na forma da galáxia. Seguindo o diapasão do alto para baixo, o disco galáctico se torna mais proeminente e o bulbo central menos nas imagens ópticas. Os tipos Hubble podem representar estágios de desenvolvimento diversos. As galáxias começam como espirais sem bulbo, passam por colisões nas quais aparecem como irregulares e terminam como elípticas ou espirais com bulbo.

Guinevere Kauffmann e Frank van den Bosch são pesquisadores do Instituto Max Planck de Astrofísica em Garching, Alemanha. Estão entre os mais conhecidos especialistas na criação de modelos teóricos da formação de galáxias. Kauffmann, recentemente, voltou suas atenções para a análise dos dados produzidos pela Sloan Digital Sky Survey, os quais, acredita, levarão a respostas para alguns dos problemas citados neste artigo. Nas horas vagas, gosta de explorar a Baviera com o filho, Jonathan. Van den Bosch estuda especialmente a formação dos discos galácticos e de buracos negros maciços nos centros das galáxias. Nas horas vagas, pode ser visto com freqüência numa cervejaria de Munique.

Scientific American Brasil

O enigma da matéria escura

Apesar dos esforços dos astrônomos, grande parte da matéria do Universo continua a escapar às suas observações. E não sabemos nem mesmo do que ela é feita
por Patrizia Caraveo e Marco Roncadelli

Deformação gravitacional: imagem de um quasar distante, multiplicada pelo efeito de lente gravitacional conhecido como "cruz de Einstein"

Para entender como e do que é feito o Universo, os astrônomos devem fazer cuidadosos recenseamentos dos objetos celestes procurando medir a sua distância e atribuir-lhes uma massa. Nessa tarefa são ajudados pela maravilhosa simplicidade das leis da física, que supomos serem aplicáveis a todo o Universo. As surpresas, por sorte, logo nos lembram que estamos muito longe de ter claras as idéias. Se pensarmos que o estudo do cosmo por meio da radioastronomia, óptica, raios X e gama possa nos fornecer um quadro completo do nosso Universo estaremos cometendo um erro grosseiro. Há décadas sabemos que a matéria luminosa - aquela que "vemos" porque emite radiação eletromagnética, ou seja, luz, ondas de rádio, raios X e gama - é apenas uma parcela insignificante de toda a matéria que exerce uma função gravitacional. Este é o famoso problema da "matéria escura", um dos desafios mais estimulantes da astrofísica atual.

Matéria escura é certamente um nome evocativo, uma vez que estamos falando de algo cuja natureza é desconhecida e de difícil detecção. Da mesma forma que os buracos negros, a matéria escura escapa às nossas observações diretas. Sabemos com certeza que existe somente porque vemos os seus efeitos sobre a matéria luminosa.

Assim, começamos por nos perguntar como é possível nos darmos conta da existência da matéria escura. A resposta não é unívoca, dado que são aplicadas metodologias diversas dependendo dos objetos a serem considerados. Algumas delas serão descritas a seguir, mas queremos ressaltar desde já que parte do que diremos baseia-se em uma descoberta de Christian Doppler. Em 1842 ele observou que o som emitido por uma fonte em movimento mostra-se, a um observador parado, em uma freqüência superior quando o objeto se aproxima e inferior se o objeto se distancia. É o famoso efeito Doppler, válido para qualquer fenômeno ondulatório, do apito de um trem em alta velocidade à radiação eletromagnética. Se aplicado às linhas presentes nos espectros dos objetos celestes, ele permite determinar a velocidade da fonte de radiação em relação a nós. Mas vamos proceder por ordem, examinando em primeiro lugar as galáxias individualmente para, em seguida, passar ao conjunto das galáxias e portanto ao inteiro Universo observável.

Em uma primeira aproximação, a astronomia calcula a massa de uma galáxia com base em sua luminosidade: galáxias mais luminosas contêm mais estrelas e portanto são mais maciças do que as menos luminosas. Tem-se assim uma medida direta da massa luminosa das galáxias. Existem, porém, outros métodos mais gerais para avaliar a massa total de uma galáxia: eles exploram o movimento de rotação que se estende a todas as suas estrelas, típico das "galáxias em espiral". A exemplo dos planetas do sistema solar, as estrelas e nuvens de gás que compõem essas galáxias são animadas por um movimento de rotação e descrevem órbitas mais ou menos circulares em torno do centro. Nesse movimento, a velocidade de cada estrela depende, além da distância do seu centro, da parcela de massa galáctica presente no interior da sua órbita. Portanto, o estudo sistemático desses movimentos nos permite medir a massa total das galáxias em espiral. O gráfico das velocidades medidas em função da distância do centro é chamado de curva de rotação galáctica.

Andrômeda (esquerda), é um exemplo de galáxia espiral. A curva de rotação (acima) mostra como o valor da velocidade cresce até um máximo, e depois diminui. Contrariando as expectativas, procedendo em direção à margem externa, a velocidade se estabiliza sobre um valor constante. O fenômeno pode ser explicado pela suposição de existência de matéria não-luminosa

Paradoxo galáctico

Examinando os espectros de muitas estrelas de uma galáxia em espiral, selecionadas de modo a que tenhamos distâncias do centro progressivamente crescentes, esperamos observar que a curva de rotação inicialmente cresça, à medida que aumenta a distância do centro para, a seguir, uma vez englobada toda a massa da galáxia, diminuir.

Em outros termos, esperamos que as estrelas nas bordas da galáxia se movam mais lentamente do que as mais internas, numa analogia com o que ocorre com os planetas do sistema solar. Entretanto, a natureza nos reserva uma surpresa: após um crescimento linear - em correspondência com a região central - a curva de rotação se estabiliza em um valor constante à medida que aumenta a distância do centro.

Apesar de ser impossível encontrar duas galáxias com curvas de rotação idênticas, é surpreendente constatar que praticamente todas as curvas de rotação medidas têm o mesmo andamento qualitativo. O que se esconde atrás desse comportamento?

Para explicar a curva de rotação plana das galáxias em espiral devemos supor que nas suas regiões externas exista uma significativa quantidade de matéria não-luminosa , em condições de conpensar a diminuição da velocidade que esperávamos encontrar apenas da matéria luminosa. Comos se distribui a matéria escura? Infelizmente as observações não nos permitem dar uma resposta unívoca. Temos de proceder às avessas, supondo diversas distribuições de matéria escura e estudando o andamento das correspondentes curvas de rotação. Obtemos o comportamento plano supondo que o componente luminoso de uma galáxia em espiral esteja cercado por um halo esferoidal de matéria escura. No caso da Via Láctea - que é uma típica galáxia em espiral brilhante - a matéria escura é estimada em cerca de 1012 massas solares, que deve ser confrontada com uma massa luminosa de 7 x 1010 massas solares. Isso significa que a quantidade de matéria escura é pelo menos 10 vezes superior àquela da matéria luminosa.

A existência de matéria escura nos conjuntos de galáxias é conhecida desde 1933, quando Fritz Zwicky estudou os movimentos no conjunto de galáxias que leva o poético nome de Cabeleira de Berenice. A sua estratégia pode ser assim resumida: em um sistema auto-gravitante isolado (como um conjunto) vale o teorema do virial, segundo o qual a energia potencial gravitacional do sistema (proporcional à sua massa total) deve ser igual ao dobro da energia cinética total dos constituintes (as galáxias, no caso dos conjuntos). Isso pode ser entendido de modo intuitivo: se a energia cinética dominasse, o sistema se expandiria, ao passo que - no caso contrário - tenderia a colapsar; uma condição de equilíbrio só é possível se a energia cinética for a metade da energia potencial. A velocidade das galáxias que compõem o conjunto é calculável sobre a base do deslocamento Doppler das linhas presentes nos espectros galácticos; motivo pelo qual a estimativa da massa total é imediata.

No caso da Cabeleira, encontramos uma massa total de 9,6 x 1014 massas solares, contra uma massa luminosa de 1,4 x 1013 massas solares. Portanto, a quantidade de matéria escura é 60 vezes maior do que a da matéria luminosa.

Janelas de observação

Pode-se chegar à mesma conclusão por um caminho diferente, explorando a emissão de raios X dos conjuntos. Nos anos 70 descobriu-se que os conjuntos de galáxias emitem raios X com energia da ordem de 10 quiloeletrovolt. O estudo do espectro da radiação X também esclareceu a origem dessa emissão. Trata-se da radiação de Bremsstrahlung (literalmente "radiação de freio") que os elétrons de um gás ionizado emitem quando são acelerados (desacelerados) do campo eletrostático de um íon do gás. Essa descoberta demonstrou que os conjuntos de galáxias contêm também um gás ionizado - na temperatura de cerca de 10 milhões de graus celsius - cuja massa resulta ser de cerca de 1014 massas solares, portanto bem maior do que a massa luminosa. Mas essa descoberta tem uma implicação ainda mais importante. A partir do estudo da emissão X é possível concluir que a quantidade total de matéria presente no conjunto está em conformidade com as estimativas obtidas usando o teorema do virial.

Uma confirmação posterior foi obtida recentemente através do efeito da lente gravitacional. Segundo a teoria einsteiniana da gravidade, uma distribuição de massa provoca a curvatura do espaço. A propagação da luz assim é distorcida na presença da matéria, que age como uma lente, multiplicando, aumentando ou deformando a imagem da fonte. Após os primeiros estudos de fontes puntiformes, cujas imagens resultavam multiplicadas pela presença de uma galáxia sobre a linha de vista, foram observadas distorções da imagem de uma fonte extensa. As galáxias são deformadas e o estudo da deformação permite determinar a massa da lente gravitacional. Imagens de conjuntos de galáxias tornaram evidente a presença de diversas galáxias distorcidas. Trata-se de galáxias de fundo, muito mais distantes de nós do que o conjunto em questão. A sua luz é refletida pelo conjunto que encontra no seu caminho, o que permite que se tenha uma estimativa da massa total de muitos conjuntos.


Conforto entre a curva de rotação medida da Via Láctea (ao lado) e a que se esperaria se a galáxia fosse constituída somente de matéria visível. A velocidade do Sol, neste caso, seria de apenas 160 quilômetros por segundo. A matéria não- luminosa, responsável por esta discrepância, é estimada em 1012 massas solares, contra as 7 x 1010 massas solares da matéria luminosa

Informações importantes sobre quantidade e qualidade da matéria escura são obtidas pelo estudo das propriedades globais do Universo. Devemos, portanto, fazer uma breve incursão no campo da cosmologia, utilizando o modelo cosmológico standard que emerge da teoria einsteiniana da gravidade sob a hipótese de que o espaço seja homogêneo e isótropo. Evidentemente essas propriedades referem-se a observações efetuadas em escala cósmica, maiores, em grande medida, que as dimensões de um conjunto de galáxias.

Espaço curvo

Segundo o modelo cosmológico standard, o Universo é um espaço com curvatura constante, que pode se expandir ou contrair durante a sua evolução. Mas se o espaço é homogêneo e isotrópico, não pode existir nenhum "centro do Universo" em relação ao qual ocorra a expansão ou contração. Este aparente paradoxo pode ser compreendido se imaginarmos que o Universo é semelhante à superfície de um balão que pode ser inflado ou esvaziado. A superfície externa do balão é o análogo bidimensional de um espaço com curvatura constante positiva, enquanto a do seu interior corresponde a um espaço de curvatura negativa.

O Universo se expandiu desde a sua origem com o Big Bang, ocorrido por volta de 15 bilhões de anos atrás; e essa expansão se manifesta no movimento de distanciamento recíproco das galáxias, descoberto por Edwin Hubble, em 1929. No âmbito do modelo cosmológico standard, a expansão cósmica é sempre desacelerada, em virtude da atração gravitacional entre os objetos que o compõem.

Tanto a geometria do Universo, quanto a sua evolução dependem da quantidade de matéria que ele contém. É conveniente expressar a correspondente densidade cósmica média em termos do parâmetro de densidade cósmica ?, definido como a relação entre a densidade medida e a chamada "densidade crítica", característica de um Universo com curvatura nula, ou seja descrito pela geometria euclidiana que bem conhecemos. Se a densidade média é baixa em relação à densidade crítica, temos ? <> 1: a curvatura é positiva e, a partir de um certo momento, o Universo começará a se contrair, até atingir um estado singular simétrico ao Big Bang. Uma terceira possibilidade corresponde ao caso ? = 1. Neste caso a densidade média é exatamente igual à crítica: então o Universo é espacialmente plano - ou seja, euclidiano - e a taxa de expansão se reduzirá progressivamente a zero.

A existência de matéria escura foi sugerida, em 1933, pelo astrônomo suíço Fritz Zwicky em aglomerados galácticos distantes como o da Cabeleira de Berenice

Quanta matéria existe no Universo?

Começamos recenseando a matéria luminosa. Trata-se de átomos semelhantes àqueles dos quais somos feitos, constituídos de prótons e elétrons, tecnicamente chamados de bárions. A densidade dos bárions luminosos corresponde a um valor de ? não superior a 0,005. Então vimos que a matéria escura exerce um papel preponderante tanto ao nível das galáxias quanto dos seus conjuntos. Temos, portanto, que encontrar uma estratégia para avaliar a densidade de toda a matéria, independentemente do fato de "vê-la" ou não.

O estudo da radiação cósmica de fundo, que permeia o Universo como resto fóssil do Big Bang, nos oferece a possibilidade de medir ?. Só recentemente foi alcançada uma precisão instrumental capaz de decodificar a grande quantidade de informações que a radiação cósmica de fundo nos oferece sobre as propriedades globais do Universo. Particularmente os dados reunidos pela miss ão Boomerang implicam ? = 1. Trata-se de um resultado de importância extraordinária, porque de um lado nos informa que vivemos em um Universo euclidiano e, do outro, que a matéria luminosa é insignificante em relação à matéria invisível. Os mesmos dados também podem ser utilizados para avaliar a densidade de todos os bárions: ela corresponde a um valor de ? igual a cerca de 0,05 (este resultado é confirmado pela teoria de nucleo-síntese fundada no modelo cosmológico standard).

A conclusão é perturbadora: de um lado, 95% da massa do U niverso é constituída de matéria escura não bariônica. Do outro, 90% dos bárions são escuros. Qual a forma assumida pelos bárions escuros? Mas, principalmente, do que é feito o resto do Universo, ou seja, a maior parte da matéria? Trata-se de um gravíssimo golpe ao antropocentrismo.

Quatro séculos atrás fomos obrigados a aceitar que não estamos no centro do Universo. Agora descobrimos que somos feitos de uma matéria que constitui minúscula parcela do Universo.

Mapa mostra a distribuição de aproximadamente 2 milhões de galáxias numa região equivalente a 10% de todo o céu, próxima ao Pólo Celeste Sul

WIMPs e quinta-essência

Um constituinte da matéria escura não bariônica são os WIMPs (ver box na página 31). A sua existência é necessária para explicar a formação das estruturas cósmicas, como as galáxias e os seus conjuntos. Por isso é natural supor que a matéria escura presente nos halos galácticos e nos conjuntos de galáxias seja formada principalmente por WIMPs, além de bárions escuros. É possível demonstrar que, em um cenário desse tipo, ? vale cerca de 0,3: os WIMPs são mais abundantes que os bárions, mas não bastam para tornar o Universo euclidiano.

A solução para este dilema seria, aparentemente, banal: bastaria imaginar que os WIMPs faltantes estivessem espalhados no espaço cósmico. Na verdade - como às vezes acontece - a natureza é mais fantasiosa que aqueles que a estudam, porque existem razões para se considerar que os WIMPs não esgotam toda a matéria não bariônica. Um estudo sobre as propriedades globais do Universo baseado na observação de uma amostra de estrelas extremamente distantes (para serem visíveis devem ser muito brilhantes, sendo as escolhidas denominadas supernovas o tipo Ia) mostrou que o universo atual está se expandindo de modo acelerado.

À primeira vista parece que estamos diante de um paradoxo, porque sabemos que no âmbito do modelo cosmológico standard a expansão cósmica é necessariamente desacelerada, devido à mútua atração gravitacional exercida pela matéria nele contida.

Devemos talvez concluir que o modelo cosmológico standard esteja errado? A situação é menos dramática do que pode parecer. Pode-se "salvar" o modelo - com os seus extraordinários sucessos - presumindo a existência de um novo tipo de matéria escura difundida no Universo, desde que ela possua propriedades radicalmente diferentes daquelas que atribuímos à matéria ordinária. Não se sabendo bem do que se trata, foi chamada com o nome aristotélico de "quinta-essência". Tanto os comuns bárions quanto os WIMPs se caracterizam por uma pressão positiva: se forem colocados no interior de um pequeno balão, este tenderá a se expandir sob o efeito da pressão correspondente. Porém, se o objetivo for explicar a aceleração do Universo, é necessário que a quinta-essência se comporte de modo oposto: se fosse encerrada em um pequeno balão, este tenderia a se contrair. Em outros termos, a quinta-essência deve ter uma pressão negativa. De fato, pode-se demonstrar que essa pressão dá lugar a uma "gravidade repulsiva" que, portanto, acelera a expansão cósmica. O estudo das supernovas Ia produz também um resultado quantitativo: a contribuição da quinta-essência à ? é de cerca de 0,65. Agora o valor de ?, obtido pela soma das contribuições devidas aos bárions, aos WIMPs e à quinta-essência, é de 0,05 + 0,3 = 0,65, ou seja, justamente 1, em conformidade com o resultado da missão Boomerang. Infelizmente, não sabemos mais nada sobre a natureza da quinta-essência.

Visão artística mostra o telescópio espacial Hubble apontado para o centro da galáxia espiral NGC 4321 semelhante à Via Láctea

Bárions escuros e raios gama

Por fim, vamos nos dedicar à natureza da matéria escura bariônica, a qual - apesar de menos exótica do que os WIMPs e da quinta-essência - não é menos interessante e elusiva.

Apesar de terem sido levantadas diversas hipóteses quanto à sua composição, a mais natural é que se trate de estrelas ou nuvens de gás presentes nos halos galácticos, que não conseguimos "ver" porque a radiação emitida é muito fraca.

Uma classe de candidatas compreende as estrelas ordinárias no final da sua fase evolutiva, tais como as estrelas anãs brancas, as estrelas de nêutrons e os buracos negros.

Estudos recentes, porém, excluíram essa possibilidade: se assim fosse, os halos galácticos conteriam uma quantidade excessiva de "metais" (elementos mais pesados que o hélio) produzidos durante a evolução estelar. O problema não se apresenta se supormos que a matéria escura bariônica seja formada por "anãs marrons": corpos celestes com massa pouco inferior a um décimo da massa solar; muito pequenos para que as reações termonucleares, que tornam luminosas as estrelas ordinárias, escureçam. Portanto, não existe modo de observar as anãs marrons. O seu mecanismo de formação implica que elas estejam reagrupadas em conjuntos escuros, que também contêm gás frio - principalmente hidrogênio molecular - sob a forma de nuvens. É notável que a teoria standard, ao explicar a formação dos conjuntos globulares (aglomerados esferoidais de centenas de milhares de estrelas), também anuncie a existência desses conjuntos escuros na região mais externa dos halos galácticos, justamente onde sabemos que deva se encontrar a matéria escura.

Imagem em infra vermelho da galáxia espiral Whirpool, acompanhada de sua galáxia-satélite, a NGC 5195, a 20 milhões de anos-luz de distância

Como fazer para detectar a sua presença? Na primeira metade dos anos 90, a descoberta do efeito de microlente gravitacional parecia oferecer o instrumento ideal para descobrir as anãs marrons presentes no halo escuro da Via Láctea. Também neste caso, a base do fenômeno reside na deflexão da luz que se produz quando a anã marrom cruza a linha visada de uma estrela puntiforme de fundo. Mas- ao contrário do que ocorre com as galáxias - as imagens múltiplas estão muito perto para serem observadas individualmente; a sua sobreposição, entretanto, provoca uma amplificação da luminosidade da estrela que está sendo examinada. Apesar de os eventos de microlente terem sido efetivamente observados, a sua interpretação se mostrou mais complexa que o previsto. Seguramente as anãs marrons não esgotam a matéria escura do halo, que presumivelmente também contém nuvens de gás bariônico frio.

As miragens gravitacionais podem não ser a única arma à disposição dos caçadores de matéria escura bariônica. Na verdade, as nuvens de gás frio facilmente escapam aos radioastrônomos, mas não podem evitar que os prótons de alta energia - presentes nos raios cósmicos - produzam raios gama no choque com os prótons dos seus núcleos. Se estas nuvens fossem responsáveis por uma parcela não desprezível em relação à matéria escura presente no halo galáctico, a intensidade da sua emissão gama deveria ser detectável com os instrumentos atuais. A esse respeito é importante ressaltar que a limitada resolução angular dos reveladores gama não permite distinguir a emissão proveniente de nuvens reagrupadas em conjuntos escuros de um fundo difuso. Por outro lado, a análise estatística de alto nível pode permitir que se determine se um fluxo gama provém do halo galáctico ou tem origem extragaláctica. Em 1998 essa análise foi feita sobre a emissão gama observada pelo revelador EGRET a bordo do satélite CGRO lançado pela NASA. O resultado parece indicar que se trata, efetivamente, de uma emissão devida ao halo galáctico, mas em casos como estes a prudência é obrigatória.

Serão as próximas missões de astronomia gama a nos dizer quantos destes raciocínios estão corretos. Primeiro decolará a missão italiana AGILE e a seguir GLAST, um instrumento muito ambicioso, no qual a Itália tem um papel importante. Estudando os seus dados, espera-se que a matéria que não vemos se torne um pouco menos obscura.

Habitantes fugidos do universo

As WIMPs (Weakly Interacting Massive Particles) são as novas partículas elementares prognosticadas por várias extensões do modelo de Glashow-Weinberg-Salam, que descreve as interações fortes, fracas e eletromagnéticas entre partículas elementares.

A classe mais promissora desses modelos é formada pelas teorias de supercorda. Devido à sua fraca interação com a matéria ordinária, as WIMPs presentes na Via Láctea são de difícil detecção.

Além disso, o seu efeito no interior de um revelador pode ser facilmente confundido com a interação produzida pelos nêutrons dos raios cósmicos. Com a finalidade de eliminar esse inconveniente, as experiências são feitas sob uma montanha ou embaixo da terra. Uma dessas experiências - denominada DAMA e atualmente em curso no Laboratorio Nazionale del Gran Sasso do Istituto Nazionale di Fisica Nucleare (INFN) -- observou um sinal consistente com o que se espera das WIMPs.

Entretanto, somente após uma eventual confirmação por parte de outras experiências (algumas das quais serão realizadas no Gran Sasso) saberemos se as WIMPS foram efetivamente descobertas. Um método indireto para a revelação das WIMPs baseia-se na identificação de partículas nas quais elas se aniquilam, como nêutrons de alta energia, anti-prótons, pósitrons e raios gama. Finalmente, deve-se dizer que o método conceitualmente mais simples de demonstrar a existência das WIMPs é o de produzi-las em laboratório. Mas para isso é preciso esperar que entre em função o Large Hadron Collider do CERN de Genebra, que não estará em operação antes de 2006. Deve-se ressaltar que esta última estratégia não substitui as experiências subterrâneas, porque a revelação in loco continua sendo a única maneira para conhecer a relevância astrofísica das WIMPs.

Resumo

- A matéria luminosa, que emite radiação eletromagnética, é apenas uma parcela insignificante de toda a matéria presente no Universo.

- Estudando as galáxias em espiral, observa-se que a velocidade de rotação das estrelas situadas nas partes externas é maior que o previsto. Isto só se justifica supondo que nessas regiões exista uma grande quantidade de matéria não-luminosa.

- A pesquisa dos conjuntos de galáxias também confirma - tanto pela espectroscopia óptica, quanto pela observação dos efeitos de lente gravitacional - a presença de matéria que escapa à observação direta.

- Segundo as observações da missão Boomerang, o parâmetro que mede a densidade cósmica deveria ser igual a 1, mas a matéria ordinária (luminosa ou não) participa apenas com 5%.

- Os astrônomos propuseram diversos candidatos como possíveis constituintes da matéria escura: entre eles estrelas não-luminosas, como as anãs marrons, as evanescentes WIMPs e uma exótica forma de matéria denominada "quinta-essência".

Patrizia Caraveo e Marco Roncadelli Patrizia Caraveo formou-se em física pela Università di Milano em 1977. Após um período no Goddard Space Flight Center da NASA e no Centre d\\'Études Atomiques de Saclay, chegou ao Istituto di fisica cosmica do CNR de Milão. Colaborou em missões espaciais internacionais e está envolvida na missão européia Integral, na missão da NASA Swift e na missão italiana AGILE.

Marco Roncadelli formou-se em física pela Università di Pavia, em 1978. Desenvolveu atividades de pesquisa junto ao Max-Planck-Institut de Munique, no CERN, no ICTP de Trieste e na Scuola Normale Superiore de Pisa. Atualmente trabalha no INFN de Pavia. Dedicou-se às questões fundamentais de mecânica quântica, de física teórica das partículas elementares e de astrofísica da matéria escura.

Scientific American Brasil

Obras “imateriais” são para sempre

Saberes antigos, formas de arte e artesanato originais e tradições culturais também devem ser preservados para que sua história não se perca

Samba de Roda do Recôncavo Baiano: é considerado não apenas um gênero musical, mas uma celebração, marcada pela utilização de percurssão e de violas, que virou símbolo nacional. Herança do tempo dos escravos, essa manifestação cultural foi considerada obra-prima do Patrimônio Oral e Imaterial pela Unesco e origem de outras manifestações como o samba e o jongo

Dizem que o segredo da moqueca capixaba é não levar óleo de dendê, ingrediente tradicional na versão concorrente do prato, a baiana. Mas para um grupo de artesãs do bairro de Goiabeiras, em Vitória (ES), o sucesso está nas panelas de barro (usadas no preparo da iguaria), que elas fazem manualmente, seguindo uma tradição que já dura mais de 500 anos. A arte de fazer panelas surgiu provavelmente entre índios que viviam na região antes da chegada dos portugueses, sendo passada ao longo dos séculos de mãe para filha. O ofício das paneleiras de Goiabeiras sustenta hoje 120 famílias, mas como toda a tradição oral, corria o risco de se perder com o tempo. O perigo não existe mais. Em 2002 esse conhecimento foi registrado como patrimônio imaterial pelo Iphan.

Nesse tipo de patrimônio não ocorre um “tombamento” propriamente dito, mas uma espécie de garantia de que haverá continuidade desse saber, explica Márcia Sant’Anna, diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan. Tampouco significa que aquele determinado bem terá de se manter para sempre do mesmo jeito. “É um processo dinâmico. O registro é uma forma de fortalecer os laços sociais e materiais que permitem que este saber continue se reproduzindo.”

Desde 2002, 12 conhecimentos populares e manifestações culturais já foram registrados como patrimônio imaterial pelo Iphan. Outros tantos estão em processo de análise, como o mamulengo (teatro de bonecos do Nordeste), a capoeira e o modo artesanal de fazer queijo em Minas. “Ao longo do diagnóstico, avaliamos as fragilidades desse bem, como a dificuldade em encontrar matéria-prima ou transmitir o conhecimento. Feito isso, montamos, com as comunidades detentoras do saber, um plano de salvaguarda que estabeleça ações que governo e empresas possam tomar para seu fortalecimento e continuidade.” Esse plano, segundo Márcia, é projetado para cinco anos. “A idéia é que adquiram condições para depois continuarem trabalhando sozinhos.”

É o que ocorreu, por exemplo, com a arte dos índios wajãpi (AP), ameaçada de desaparecer por desinteresse das novas gerações, mas que ganhou um ânimo novo com o título de patrimônio imaterial, não só nacional (concedido pelo Iphan em 2002), como da humanidade, decretado pela Unesco em 2003. A idéia era obter o registro desses padrões gráficos e dos saberes associados, para protegê-los do uso comercial indiscriminado”, explica a antropóloga Dominique Gallois, do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo, da USP, que ajudou os índios a organizar o dossiê. Interessava também afirmar a beleza dessas pinturas corporais para rebater a vergonha dos jovens em mostrá-los fora da aldeia.

A arte gráfica conhecida como kusiwa retrata, por meio de padrões básicos, as figuras da mitologia wajãpi e do cotidiano. Segundo Dominique, com o programa de salvaguarda lançado em 2005, houve uma inversão gradual e hoje os jovens estão interessados no seu patrimônio, “redescoberto por um novo viés, mais ‘novo’, ‘moderno’, através da escola, do registro visual etc”.

Revista Horizonte Geografico

Rio São Francisco - Será que agora vai?

O governo continua firme no projeto de transferência de águas do rio São Francisco para abastecer pequenos rios e açudes do Nordeste, veja os prós e contras da proposta de transposição

A previsão inicial era que as obras militares do projeto de transposição do Rio São Francisco fossem encerradas em março de 2010, mas o cronograma teve que ser revisto depois da suspensão na justiça e da polêmica resultante da greve de fome do bispo de Barra, na Bahia, d. Luiz Flávio Cappio. O governo, no entanto, continua firme no projeto que consiste na transferência de águas do rio para abastecer pequenos rios e açudes do Nordeste que possuem um déficit hídrico durante o período de estiagem. Pela proposta de transposição, o Rio São Francisco deve doar cerca de 26,4 m3/s de vazão aos açudes e pequenos rios do Nordeste Setentrional – uma forma de garantir o sustento de famílias que vivem na região.

O projeto prevê a construção de dois canais: o Eixo Norte que levará água para os sertões de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte; e o Eixo Leste que beneficiará parte do sertão e as regiões do agreste de Pernambuco e da Paraíba. O Eixo Norte, iniciado próximo de Cabrobó (PE), percorrerá cerca de 400 km, conduzindo água aos Rios Salgado e Jaguaribe, no Ceará; Apodi, no Rio Grande do Norte, e Piranhas-Açu, na Paraíba e Rio Grande do Norte. Ao cruzar o Estado de Pernambuco, esse eixo levará água para atender os municípios de três sub-bacias do São Francisco: Brígida, Terra Nova e Pajeú. Para atender a região do Brígida, no oeste de Pernambuco, haverá um ramal de 110 km que levará parte da vazão do Eixo Norte para os açudes Entre Montes e Chapéu.

O Eixo Leste, que vai captar água no lago da barragem de Itaparica, em Floresta (PE), terá 220 km de extensão até o Rio Paraíba (PB), após deixar parte da vazão transferida nas bacias do Pajeú, do Moxotó, e da região agreste de Pernambuco. Para o atendimento das demandas dessa última região, o projeto prevê a construção de um ramal de 70 km que interligará o Eixo Leste à bacia do Rio Ipojuca. Além disso, nos dois eixos, estão previstos vários sistemas de distribuição de água (adutoras) para suprir cidades e perímetros de irrigação.

O rio e seus números

-> 2.700 km é a extensão do “Velho Chico”, desde a Serra da Canastra, onde nasce, até a foz, entre os Estados de Sergipe e Alagoas

-> 168 é o número de afluentes do rio, dos quais 99 são perenes e o restante temporário

-> 634 mil km2 é a área da bacia

-> 504 é o número de municípios banhados, pela bacia do São Francisco. Desse total, 48,2% estão na Bahia, 36,8% em Minas Gerais, 10,9% em Pernambuco, 2,2% em Alagoas, 1,2% em Sergipe, 0,5% em Goiás e 0,2% no Distrito Federal

-> 13 milhões é o número de pessoas que habitam a área da bacia (Censo de 2000)

-> 91 m3/s é o consumo atual de água da bacia do “Velho Chico”

-> R$ 4,5 bilhões é o custo estimado da obra de transposição segundo o Ministério de Integração Nacional

Revista Horizonte Geográfico

Eslovênia, paz em região de conflitos

A terra dos eslovenos se contrapõe às outras ex-repúblicas da Iugoslávia por ter se mantido tranqüila em meio às rivalidades étnicas dos Balcãs

Fortaleza de Predjama, nos Alpes: constrída no século 13 sobre uma caverna

Você conhece a Eslovênia? Na encruzilhada dos Alpes e do Mediterrâneo, esse pequeno país da Europa Central, com a metade do tamanho da Suíça, é montanhoso e superverde. Possui o seu quinhão de castelos, cidades barrocas, monumentos e lendas do período medieval e dos tempos em que fazia parte do Império Austro-Húngaro. Na verdade, trata-se de um país de sorte. Na salada de repúblicas, povos, línguas e religiões dos Balcãs, destaca-se pela tranqüilidade. Até recentemente, compunha, com as outras repúblicas vizinhas, a antiga Iugoslávia. Com o fim do Bloco Soviético, na década de 1990, a Iugoslávia se desintegrou e começaram as guerras civis étnicas cujos efeitos são sentidos até hoje. Mas, apesar de ter se queimado com uma faísca dos conflitos, por ter sido a primeira a se separar do antigo bloco iugoslavo, a Eslovênia escapou praticamente incólume. Isso, graças a sua população relativamente homogênea (a esmagadora maioria é eslovena). Tornou-se independente em 1991 e entrou para a Comunidade Européia em 2004. Em clima de paz, conseguiu manter o seu alto padrão de vida.

Pequena grande capital

Dizem os eslovenos que a cidade de Liubliana é grande o suficiente para conter tudo o que uma capital deve ter e pequena o bastante para preservar a individualidade de seus moradores. Mas, como toda capital européia que se preze, tem também castelos, mansões e obras-primas arquitetônicas. Devastada no passado por terremotos, ela foi reconstruída várias vezes segundo o estilo da época – renascentista no século 14, neoclássico e art-nouveau no século 19. O barroco italiano, influenciado pelo país vizinho, está presente também na sua arquitetura.

A montanha símbolo

A montanha mais alta da Eslovênia e dessa parte dos Alpes é o Triglav (2.864 metros). O nome significa “três cabeças” que, segundo a lenda, vigiam a terra, o céu e o inferno. É um símbolo nacional, incluído no brasão e na bandeira do país. Diz o ditado que todo verdadeiro esloveno deve escalar o Triglav pelo menos uma vez na vida.

Cavalos imperiais

Eles quase desapareceram durante as grandes guerras mundiais. Mas, hoje, são um orgulho nacional. Os cavalos lipizanos são descendentes dos animais trazidos da Espanha no século 16 pelo arquiduque Carlos II, da Áustria, e foram criados em Lipizza, então território italiano, para fazer parte da famosa Escola de Equitação de Viena e para abastecer as carruagens da família do imperador. Existem cerca de 400 no país.

Parque das salinas

O sal extraído pela evaporação da água do mar no litoral esloveno do Mar Adriático, fronteira com a Croácia, é um dos mais apreciados pelos gourmets do mundo. O produto vem da Salina Secovlie, região que hoje foi transformada em parque nacional, protegido pela Convenção Mundial Ramsar de conservação de zonas úmidas. Em Secovlie, já foram registradas quase 300 espécies de aves, como cegonhas, fragatas e corujas.

Música e identidade

Todo verão, a música invade as ruas das principais cidades da Eslovênia. É a época dos festivais, que agregam grupos de teatro, palhaços, mágicos, danças e cinema. A identidade eslovena procura preservar a cultura, língua e história locais por meio de lendas, mitos e canções populares apresentadas em geral com acordeão, lembrando a forte presença cigana.

Vinhos de hoje e de sempre

Quando se pensa em vinho europeu, os primeiros países que vêm à mente são França, Itália ou Portugal. Mas a Eslovênia também se destaca. Há registros de que a bebida era fabricada na região antes da chegada dos romanos. A cidade histórica de Maribor abriga uma vinha que os eslovenos dizem ser a mais antiga em produção.

O sino dos desejos


A vista impressiona: cercado por uma paisagem alpina, na qual não falta nem um castelo construído sobre rochedos, fica o lago Bled. Na sua extremidade, está situada uma pequena ilha com uma igreja do século 16, no centro. Diz a lenda que qualquer pessoa que toque o sino no alto de sua torre terá cumprido o seu maior desejo. O sino foi mandado colocar na igreja pelo então papa para atender a vontade de uma jovem viúva cujo marido fora assassinado por ladrões.

Ficha técnica

Nome: República da Eslovênia
Capital: Liubliana
População: 2 milhões
Área: 20.251 km²
Idioma: esloveno (oficial), húngaro, italiano
Governo: República como forma mista de governo
Religião: Cristianismo (92%), sem religião (5%), ateus (2%), islamismo (0,1%)

Revista Horizonte Geografico

Baía da Babitonga - De volta à vida

Reduto de golfinhos e meros, a Baía da Babitonga pode sediar a primeira Reserva de Fauna do Brasil. Medida visa enfrentar a poluição e preservar um valioso criadouro de peixes

Texto: Sérgio Adeodato

Pôr-do-sol na baía mostra a beleza da região que é cercada de manguezais e Mata Atlântica. Criação de unidade de conservação é esperança de pescadores

Ao pé de montanhas cobertas de Mata Atlântica, no litoral norte de Santa Catarina, o pescador João Gonçalves Batista, o Jango, de 57 anos, aponta para o mar à sua frente e diz: “É preciso fazer alguma coisa, porque tudo aqui está se acabando.” Jango lembra do tempo em que capturava robalos-flechas e parabijus gigantes na Baía da Babitonga, com suas 24 ilhas e vastos manguezais. Hoje a área está prestes a se tornar a primeira Reserva de Fauna do Brasil. Esse tipo de área de proteção ecológica alia o uso econômico à conservação das espécies marinhas que mantêm o sustento dos pescadores e suas famílias. Será um alento para Jango e outros pescadores da Vila da Glória, município de São Francisco do Sul. A produção de camarão caiu 30% em uma década. “Em vez de caranhas de 40 quilos, hoje encontramos garrafas plásticas e até sofás velhos boiando no mar”, lamenta o pescador.

Bisneto de açorianos que imigraram do arquipélago na costa da África no século 19, Jango lembra que as florestas que ainda emolduram a Baía da Babitonga foram quase dizimadas pelo corte ilegal de palmito e madeira. Mas depois, em função de um maior controle, se recuperaram. “Hoje, até tucanos freqüentam o quintal de casa”, conta. Para ele, salvação igual poderia ocorrer no ambiente marinho, atualmente castigado pela poluição e por alterações causadas pelas indústrias.

O temor das restrições

Alunos da Escola Familiar do Mar aprendem a criar ostras

Apesar das palavras do pescador, a aprovação da nova reserva é motivo de polêmica. “Envolve conflitos e diferentes interesses”, afirma Ana Maria Torres, do Centro de Pesquisa e Gestão de Recursos Pesqueiros do Litoral Sudeste e Sul, órgão do Ibama em Santa Catarina. De um lado estão aqueles que temem prejuízos econômicos com as restrições de uso. De outro, situam-se os órgãos ambientais e os defensores de maior rigor para proteger a fauna. Após as audiências públicas, realizadas em 2006 e 2007 nos seis municípios do entorno da baía, o projeto está para ser assinado pelo presidente da República.

Segundo Ana Maria, a criação da reserva é uma medida urgente, porque a baía está secando. A degradação é antiga. Começou na década de 30, quando foi aterrado o Canal do Linguado, principal via de escoamento de águas para a Babitonga. A obra teve o objetivo de permitir o transporte ferroviário de mercadorias entre o litoral e o continente, mas alterou drasticamente o ambiente costeiro. Somado a isso, o crescimento urbano de Joinville, maior cidade e pólo industrial da região, hoje com 600 mil habitantes, espalhou poluição. Hoje apenas 13% dos esgotos das residências são tratados. Os dejetos industriais também são levados pelos rios até a baía. Há locais onde a contaminação por arsênio e outros metais pesados supera em 50% o limite aceitável.

“Apesar da maior preocupação das indústrias, há muitas falhas de controle”, critica a bióloga Marta Cremer, da Universidade da Região de Joinville (Univille). A poluição é apenas uma parte do problema. A dragagem para explorar areia no fundo da baía remove larvas de organismos marinhos e interfere no equilíbrio ecológico. “Para completar, peixes e crustáceos são capturados em quantidades exageradas, o que é agravado pelo aumento de turistas que praticam a pesca amadora”, diz a pesquisadora.

Golfinhos surdos

Desde os tempos da colonização, quando era utilizada para a exportação de madeira, ouro e erva-mate, a Baía de Babitonga é considerada uma das principais zonas portuárias do País. Além do antigo porto de São Francisco do Sul, situado próximo à saída para o oceano, novas instalações portuárias foram projetadas para o local. O porto de Itapoá, destinado à exportação de contêineres, aguarda licença ambiental para entrar em operação em 2008. Para Marta Cremer, “a criação da reserva de fauna vai ajudar a disciplinar as atividades”.

Piscinas naturais se formam na praia do Forte, uma das muitas de Babitonga, tendo ao fundo a Ilha da Paz

Caso contrário, os riscos aumentam. O intenso tráfego marítimo suja as águas da baía com o lastro dos navios e traz organismos invasores que competem por alimento e abrigo com as espécies nativas. O ruído das embarcações afasta os animais marinhos de maior porte. Golfinhos, que antes pulavam à vista de todos, já não chegam tão perto da costa. “Muitos estão ficando surdos”, revela a bióloga, que orienta pesquisas sobre a audição desses animais na universidade.

Ao abrigar 75% dos manguezais catarinenses, a Baía da Babitonga é um criadouro natural de organismos marinhos, responsável pela maior parte da produção pesqueira do Estado. Existem ali mais de 100 espécies de peixes, que são a base da alimentação de dezenas de aves aquáticas, entre as quais nove migratórias – como a águia-pescadora e a batuíra-de-bando – vindas periodicamente do Hemisfério Norte para se alimentar. Esse cenário é refúgio de caranguejos-uçás, ameaçados pela captura descontrolada. E também das toninhas, antes comuns naquela paisagem, e hoje restritas a apenas 26 dos 160 quilômetros quadrados da baía. Nas zonas mais afastadas, próximas às ilhas oceânicas, ainda há meros – o maior peixe brasileiro e um sobrevivente dos arpões dos mergulhadores.

Com menos peixes no mar, criar mariscos em cativeiro passou a ser uma alternativa. “Precisamos de água limpa para manter o negócio”, afirma o maricultor Helias Correia, dono de viveiros onde produz mais de 100 mil ostras por ano, parte delas consumida no restaurante da sua mulher.

“Antes batíamos a palha de coqueiro na beira do mar e os camarões pulavam fora da água”, diz o pescador Sandro Vieira. “Boa parte dos peixes é retirada por pessoas que não precisam deles para sobreviver. Estamos preservando a baía para o proveito de quem?”

Baía histórica

Na Praia Bonita, ruínas do século 19 lembram a missão francesa que tentou desenvolver a homeopatia na região com espécies da Mata Atlântica

Na Praia Bonita, bem próximo à casa de Sandro, ruínas de uma construção de pedra são vestígios do chamado Falanstério do Saí – missão francesa instalada em 1842 pelo médico Benoit Jules Mure, com o objetivo de aplicar os preceitos da homeopatia com remédios a base de plantas da Mata Atlântica. A comunidade não prosperou, pois seus moradores não se adaptaram à vida dura na floresta.

Matas e restingas do entorno da baía preservam sambaquis, sítios arqueológicos que reúnem ferramentas líticas e restos de conchas e alimentos de grupos primitivos que ali viveram há mais de 3 mil anos. Nos séculos 15 e 16, os índios carijós passaram a ocupar a região, foco de constantes incursões francesas. Conta-se que longas trilhas, parte delas ainda hoje existentes, eram percorridas pelos indígenas, sob o comando dos jesuítas, para transportar prata entre os Andes e o Atlântico.

A vida ao redor da Babitonga sempre foi ligada ao mar. “É preciso valorizar seus recursos para preservá-los”, explica Leonel Pavanello, professor da Escola Familiar do Mar, um modelo pedagógico francês, aplicado em dezenas de países. Após uma semana de aulas na escola, o aluno permanece 15 dias em casa e no trabalho para colocar em prática o que aprendeu. “Alguns trabalham na atracação de navios no porto, outros guiam turistas na pesca amadora ou ganham a vida nas oficinas de motores náuticos”, conta Pavanello.

O pescador Jango prepara a rede para o trabalho: hoje é mais difícil

Instalado no Centro Histórico de São Francisco do Sul, o Museu do Mar conta a história da navegação, mostra o modo de vida dos caiçaras e reúne um rico acervo de embarcações. O espaço é freqüentado por turistas e jovens das escolas públicas da cidade. Em um dos galpões do museu, o carpinteiro Raul Geraldo da Rocha, de 80 anos, não sente o cansaço da idade. Ele confeccionava canoas de tapiruvu, madeira nobre da Mata Atlântica. Conta que já fez mais de 500 delas, no tempo em que a pesca e a madeira eram fartas e podia se cortar árvores para esse fim. Hoje, Raul restaura barcos antigos para manter vivo o ofício que aprendeu quando criança. “É a forma que tenho de continuar sonhando”, conta.

A beleza de uma cidade

São Francisco do Sul, na Baía de Babitonga, é a terceira cidade mais antiga do Brasil, atrás apenas da baiana Porto Seguro e da paulista São Vicente. Foi pólo econômico e cultural importante no século 19. Sobrados, igrejas e armazéns portuários que testemunham o esplendor da época (foto) foram restaurados pelo Programa Monumenta, mantido pelo governo federal com verba do Banco Interamericano de Desenvolvimento. As obras incluíram o centenário Clube 24 de Janeiro, inaugurado em 1892, palco de bailes e reuniões políticas da época. A orla, pontilhada de casarios, foi urbanizada e iluminada, e trouxe vida nova à cidade. Restaurada, São Chico, como ficou conhecida, recebe mais visitantes, o que abriu alternativas econômicas para quem dependia da pesca. Manter o ambiente marinho saudável passou a ser indispensável para essa nova fonte de renda.


O senhor das pedras

Conhecido como “senhor das pedras”, o mero é uma espécie da família da garoupa e do badejo, que pode viver mais de 40 anos, pesar 400 quilos e medir mais de 2 metros. Dócil e pouco ágil, o animal é vítima da captura irracional, apesar de proibida, e está na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), entre as espécies criticamente em perigo de extinção. Para conhecer os seus hábitos reprodutivos, a equipe do Projeto Meros do Brasil aproveitou o final de 2007 para mergulhar na Babitonga (foto), um dos principais refúgios do peixe em águas brasileiras. Nesse período do ano, os meros se agrupam para acasalar e se tornam alvos fáceis de caçadores.

Revista Horzonte Geográfico

sábado, 16 de maio de 2009

Lembranças do Líbano

A guerra do Líbano chamou a atenção sobre este país que tenta sobreviver em meio a crises políticas antigas e recentes no conturbado Oriente Médio

Texto: Stepan Norair Chahinian

A população libanesa é constituída de cristãos e muçulmanos. Entre os cristãos, a maior comunidade é de maronitas (ramo do catolicismo), mas há também gregos ortodoxos, gregos católicos e armênios. Entre os muçulmanos, existem sunitas, xiitas e uma pequena comunidade drusa. Há ainda um número reduzido de judeus. O arquiteto brasileiro Stepan Norair Chahinian conta a seguir a história do país que se confunde com a de sua família

Beirute, a capital: vista da montanha onde se encontra a estátua de Notre Dame du Liban


Minha relação com o Líbano começou antes de eu nascer. Sou descendente de imigrantes armênios, que, em razão do genocídio cometido pelos turcos em 1915, abandonaram suas terras em caravanas pelos desertos do Oriente Médio em busca de um lugar que os acolhessem. Na minha infância, costumava ouvir contar com muita gratidão as histórias do Líbano e da Síria – dois países que acolheram meus avós e milhares de famílias armênias que perambulavam pela região. Embora tenha nascido no Brasil, laços familiares me levaram ao Líbano há dois anos para visitar o irmão mais velho de minha avó paterna. Hrant Der Bedrossian, hoje com 82 anos, nasceu em Alepo, na Síria, e se mudou para Beirute.

Hrant viu vários Líbanos. Talvez, o melhor e mais harmonioso tenha sido aquele dos fins dos anos 50, quando estabeleceu sua residência em Beirute, então um paraíso no Mediterrâneo. A capital libanesa era referência de glamour, férias, praias lindas e construções imponentes, de uma arquitetura com personalidade e ponto de encontro de artistas e empresários vindos do mundo todo. O país orgulhava-se de sua herança histórica, que remonta há 2 mil anos, quando abrigou a civilização fenícia. Até hoje, o Líbano mantém monumentos de grande valor arqueológico construídos pelos povos que lá viveram. Um dos mais importantes é Baalbek, onde estão as maiores colunas romanas conhecidas e um templo encantador dedicado ao deus Baco, localizado no vale do Beka, no sul do país.

Hrant fez carreira em uma multinacional alemã, teve uma vida confortável e usufruiu da paz e das belezas do país que o acolheu. Entre 1971 e 1974, veio diversas vezes ao Brasil, pois a parte de cá da família insistia para que ele se mudasse para São Paulo. Mas Hrant adorava Beirute, assim como muitos imigrantes. Voltou para lá em 1974 e nunca mais saiu do país que adotara. A guerra civil do Líbano explodiu no ano seguinte.

Triste ironia: país que acolhera tantos povos diferentes, o Líbano acabou sendo uma vítima de sua diversidade étnica e religiosa. Na época, mais de 300 mil refugiados palestinos das guerras contra Israel se concentraram em seu território. Foi o bastante para romper a aparente harmonia entre os diversos povos e religiões locais. Em abril de 1975, a guerra civil opôs uma coalizão muçulmana, aliada dos palestinos, aos grupos maronitas cristãos com apoio de Israel. Foram quinze anos de conflito que deixaram o Líbano em ruínas.

Terminada a guerra, Beirute era a imagem do caos e da intolerância entre os vizinhos. A cidade mantém até hoje a divisão por bairros, conforme a religião e o grau de fanatismo de seus adeptos. Muçulmanos xiitas, sunitas, cristão maronitas, católicos, ortodoxos cultuam a desconfiança mútua. Hrant sobreviveu. Por sorte, o bairro em que morava não era um alvo prioritário para as diversas milícias armadas, cristãs e muçulmanas. Mas lembro do sofrimento da minha família. Era difícil conseguir notícias dele. As comunicações eram péssimas.

Em 1994, o então primeiro-ministro, Rafik Hariri, tornou-se o homem da grande reconstrução. Para isso, reuniu investimentos maciços com o apoio de capital estrangeiro e de grandes empresários árabes. O porto e o aeroporto de Beirute, escolas, hospitais e estradas, tudo começou a ser refeito. Uma década depois, o Líbano havia retornado a sua tradição de destino turístico, com exceção de algumas regiões do sul que serviam de base para grupos terroristas como o Hezbollah, que continuava a combater o Exército israelense com respaldo sírio.

Foi em 2004 que decidi conhecer a região que povoava as histórias de família que ouvia desde criança. Conheci Beirute, cujo centro histórico havia sido totalmente reconstruído – um pouco como cenário de Hollywood é verdade. Mas o país respirava paz, as pessoas circulavam tranqüilamente nas ruas. Os grupos religiosos e etnias ainda se dividiam em bairros diferentes, o que não impedia o trânsito entre as igrejas, mesquitas, cafés e restaurantes. Havia até uma certa euforia. Edifícios de aço e vidro conviviam com construções antigas, do tempo em que a região era protetorado francês. Da Place d’Étoile, no centro da cidade, saíam avenidas com lojas de grife. Agências de viagem anunciavam as belezas de Baalbek, Biblos, Trípoli e outras cidades que guardavam a rica memória dos antigos fenícios, gregos, persas e romanos.

Explosão em Maarjyou



Em fevereiro de 2005, uma tragédia deu um fim a esse tempo de paz. Hariri, polêmico como todo líder que ousa reconstruir um país, foi acusado por adversários de representar interesses estrangeiros, e foi morto em atentado nas ruas de Beirute. No mesmo lugar em que, meses antes, eu havia passeado com meu tio Hrant que me contava histórias da sangrenta guerra civil.

O atentado, atribuído aos sírios, foi o estopim de um novo estado de tensão. Manifestações arrastaram multidões às ruas, terroristas tiraram proveito da instabilidade para piorar o quadro político. O eterno conflito entre palestinos e israelenses assumiu novas proporções com repercussões no sul do Líbano, dominado pelo Hezbollah. Em 12 de julho, o Exército israelense atravessou a fronteira entre os dois territórios.


Foram 33 dias de guerra (um cessar-fogo foi estabelecido em 14 de agosto), que acompanhei pela televisão e internet. Novamente, ligávamos para Hrant em Beirute – muitas vezes sem conseguir linha – para ouvir notícias de bombas que explodiam perto de seu prédio. Ele dizia que não podia sair de casa, havia luz apenas algumas horas do dia, as pessoas faziam estoque de alimentos e remédios. As escolas haviam suspendido as aulas – Elisa, minha prima de 18 anos, não pôde completar o semestre da faculdade. Restaurantes, lojas, hotéis estavam fechados. O medo, desta vez, era mais intenso, pois o poder de destruição das armas de Israel era maior do que nos tempos da guerra civil.

O grosso dos ataques ocorria no vale do Beka e no sul do país, onde se concentrava a milícia do Hezbollah, mas os israelenses bombardearam os bairros muçulmanos de Beirute. Acabaram com pontes, estradas e a infra-estrutura que havia sido reconstruída com tanto esforço. O porto ficou sitiado e o aeroporto arrasado. A capital libanesa mais uma vez foi destruída.

Hrant sobreviveu a mais essa guerra, assim como milhares de cidadãos libaneses – muitos com famílias no Brasil. Apesar do cessar-fogo, não se sabe o que reserva o futuro do país. Mas a história do Líbano é bem maior, na verdade se confunde com a história da humanidade. A esperança é que, novamente, o país encontre uma saída. Se já enfrentou o domínio e as disputas de fenícios, hititas, romanos, gregos, persas, europeus e turcos, supõe-se que esta seja uma região fadada a sobreviver aos desatinos dos seres humanos nessa complicada e explosiva mistura de interesses étnicos, religiosos, políticos e econômicos do Oriente Médio e do mundo.


Natureza, vítima do conflito


Efeitos da guerra têm longo alcance: derramamento de óleo deve prejudicar o ambiente e a vida marinha no Mediterrâneo

Mais de 15 mil toneladas de combustível foram derramados no mar Mediterrâneo em 14 de julho de 2006, quando aviões israelenses atingiram a usina elétrica de Jiyeh, a 20 quilômetros de Beirute. Novos mísseis atingiram o local no dia seguinte. Seis tanques de combustível foram destruídos, gerando explosões que derrubaram o dique construído para conter vazamentos. O óleo contaminou até 30 quilômetros do litoral libanês e afetou praias e portos, atingindo também a Síria. Segundo a ONU, a limpeza do vazamento poderá durar até um ano e custar US$ 64 milhões. Esse foi mais um resultado da guerra, que matou 1.200 pessoas (a maioria civis libaneses) e destruiu cidades inteiras. “O fundo do mar está cheio de combustível – entre as rochas e os vales”, disse Mohammed El Sarji, chefe dos mergulhadores libaneses que gravaram imagens da mancha de óleo. “Tudo está coberto de piche.” Segundo grupos ambientalistas, o vazamento deve prejudicar espécies como atum e tartarugas que vivem na região.

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