sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

CUBA - "Es muy complicado"


"Es muy complicado"

Dizem os cubanos quando tentam explicar a situação de seu país. Havana é a síntese do desafio de viver no século 21 aferrado a um modelo comunista

Texto: Ana Paula Souza


Se uma cidade é muitas cidades, Havana é, além disso, muitas épocas e mitos. Quando decidi conhecer a capital cubana, não podia imaginar que meus olhos iriam se flagrar, ali, tão confusos. Ainda mais agora que Fidel Castro renunciou ao poder depois de 49 anos. Embora não se possa esperar demais do seu irmão Raúl, quem sabe a próxima vez que for a Cuba encontre uma ilha diferente?

Havana é um retrato dessa ilha multifacetada. Vejo na estrada escura dois homens agachados; consertando um enorme carro no estilo dos anos 1950. Mais adiante, um outdoor conclama “Viva la Revolución” e outro estampa George W. Bush sob a frase “No al Fascismo”. Despontam a seguir edifícios suntuosos do começo do século 20 com seus balcões virados para a rua. Penso até que ponto uma reviravolta para a economia de mercado pode mudar essa aparência.



“Cuba Libre” em Havana: com o salário e a caderneta de produtos, vive-se 15 dias; depois entram em cena os CUCs, dinheiro informal
Meu hotel é da cadeia Hilton que abrigou os milionários que adoravam cassinos e hoje se chama Habana Libre. As escadas de torneados barrocos e o grande lobby mantêm os sinais da riqueza que a revolução podou. É assim, feito cartão-postal animado de meio século atrás, que a cidade se apresenta aos estrangeiros. Encantada. Guardada numa época que não conheci. E vivendo, ao mesmo tempo, o hoje.

Cristalizada essa impressão – tão verdadeira e tão falsa quanto qualquer impressão –, o melhor a fazer é caminhar para qualquer dos pontos que todos os cubanos apreciam na sua capital. O importante é andar. Ouvir. Olhar. Quem deseja perceber Cuba para além das praias para turistas de Varadero e da constatação óbvia de que o povo quase nada pode comprar, deve colocar as pernas à prova. Deixar-se perder.

Minha primeira parada foi na Plaza de la Revolución, aquela dos discursos de incontáveis horas de Fidel Castro. E agora, provavelmente, de Raúl. A construção de mármore abriga, no cume, uma estátua de José Martí (1853-1895), o poeta que condensou os ideários da Revolução Cubana. Se ficarmos ao lado de Martí, vemos, do outro lado da rua, o rosto de Che Guevara (1928-1967) esculpido em ferro e torneado pela famosa frase “Hasta la Victoria Siempre”. Fica no monumento o Memorial José Martí que, com o Museu da Revolução, erguido em outro canto da cidade, resumem a história oficial de Cuba.

Da cidade imortalizada pelo Estado em fotos, textos e obras de arte, sigo, num coco-táxi, motoneta com cobertura em forma de coco, para a cidade vivente, no Malecón, a avenida que contorna toda a cidade velha. “Quem viveu em Havana sabe que o Malecón foi (e é), como a própria cidade, muitas coisas. Não apenas o lugar do descanso, do amor, das conversas e desolações, mas também das festas, nostalgias e suicídios”, afirma o escritor Abilio Estévez em Inventario Secreto de la Habana, ao apresentar os personagens emblemáticos e anônimos de sua terra natal.



Cubanos conservam os veículos das décadas de 40 e 50 e “criam” carros com peças velhas
O Malecón é um vasto muro junto ao mar. O mesmo mar para o qual a Plaza de la Revolución dá as costas e que é a fronteira transposta pelas balsas em fuga. “O que vocês pensam? Os Estados Unidos oferecem dinheiro a quem embarca. Eles querem fazer a propaganda dos fugitivos”, explica resolutamente uma funcionária do Ministério do Turismo com quem converso. “Ah, minha amiga, es muy complicado. É tanta proibição, tanta mentira, que é difícil um jovem não imaginar que, além do mar, pode ter alguma coisa melhor à sua espera”, contrapõe, lírico, um vendedor de livros chamado Jose Carlos, quando pergunto sobre os destinos da revolução.

Foi depois de percorrer o Malecón que o encontrei. Jose Carlos tem uma banca na feira de livros ao lado do Castillo de la Real Fuerza, em Habana Vieja. Não sei exatamente por que, ao ver volumes de Che, os Cadernos de Notas, de Martí, Nosso Homem em Havana, de Grahan Greene, e os álbuns de fotos de Alberto Corda, peço Havana para um Infante Defunto, de Gillermo Cabrera Infante, notório inimigo do ex-ditador.

Um livreiro negro, aparência de 60 e tantos anos, olhos rudes e voz grave do fumo de uma vida diz, com o cenho franzido, não possuir o livro. De repente – e aí Freud diria que meu pedido foi estripulia do inconsciente – me dou conta do absurdo do pedido e cometo outra gafe. “Ah! É proibido, não?” O velho livreiro nega, irritado. Jose Carlos intervém e, além de dizer que o livro é, sim, proibido, me consegue um exemplar.

Jose Carlos, economista por formação e leitor por paixão, soa como a consciência crítica de Cuba. Ele jamais pensou em deixar a ilha, mas se sente enredado pela burocracia e enganado pelo Estado. Falou claramente sobre a transmissão de poder de Fidel para o irmão Raúl: “Mudarão para que fique tudo igual”, filosofa.
E acrescenta: “O Estado cria regras e os mecanismos para descumpri-las surgem na mesma velocidade. Com o salário oficial e a caderneta de produtos que recebemos vivemos 15 dias. E no resto do mês?. Nos viramos com os CUCs. Es muy complicado, amiga, es muy complicado”.

Para os turistas, a moeda são os CUCs. Mas esse dinheiro é, em tese, apenas um conversor. É como se, no Brasil, a URV, criada em 1994 para a implantação do Plano Real, tivesse virado dinheiro – em papel. Com os CUCs compra-se tudo, de picolé na rua a Coca-Cola no hotel. É com esse dinheiro que os cubanos se viram nos tais outros 15 dias do mês.

Como conseguir os CUCs? Es muy complicado. Os taxistas desligam o taxímetro, controlado pelo Estado, e cobram por fora. As camareiras do hotel oferecem desconto no serviço de quarto para quem paga direto para elas. O ex-lutador de boxe que guia uma bicicleta-táxi leva o cliente a um restaurante residencial. Todos, ao encontrar um turista, explicam brevemente a situação e, de quebra, pedem uma “propina”.

Mas, se não houver propina, não há problema. Francos e fanfarrões, os habaneros estão sempre dispostos a um dedo de prosa. Enquanto os turistas miram os monumentos, eles miram os olhos do interlocutor. Transpiram uma sensualidade serena que tem a ver com os trópicos, com os corpos de quem trabalha muito e ganha pouco, mas se diverte com o sorriso fácil.



A renúncia de Fidel e sua substituição pelo irmão Raúl não afetou o dia-a-dia dos cidadãos da cidade parada no tempo
Vem do caráter do povo, da franqueza que pode parecer excessiva, a atmosfera alegre que nem os conhecidos problemas eliminam. “Esta gente é exagerada como poucos”, dizia o poeta Federico García Lorca em carta de 1930. Os tempos mudaram e o embargo econômico endureceu a vida e deixou velhas as casas. Mas o espírito parece ter continuado imbatível. “Somos como as baratas”, comparou o guia de uma viagem para o vale de Viñales, interior de ilha, terra onde o tabaco floresce. “Querem nos matar, mas somos resistentes.” O homem aproveita a bela paisagem – com contornos que fazem lembrar a Chapada Diamantina – para defender a revolução. “Vocês estão vendo esta terra? Antes da revolução, isso tudo era dos americanos. Quatro empresas dos Estados Unidos tinham 70% da ilha.”

O viés político da conversa estimula um estrangeiro a fazer perguntas sobre as mudanças políticas. A renúncia de Fidel parece ter pego a todos de surpresa, embora sua doença fosse conhecida. “Ele não está bem de cabeça, mas não sai tão cedo”, imaginava o taxista formado em biologia com quem puxei conversa. A mudança, no entanto, parece não afetar a confiança no regime e o orgulho e dignidade das pessoas com quem conversei.
Essa dignidade é ressaltada, por exemplo, na ausência de servilismo. Garçons, motoristas de todos os transportes – das improvisadas bicicletas aos táxis novos que o Estado comprou – e cantores que embalam jantares com Guantanamera proseiam com o visitante tal qual com um amigo. O nome disso talvez seja “senso de igualdade”.

Essa dignidade também reverbera nas críticas ao regime, na ironia que imprimem às próprias agruras. “A burocracia parece ficção. Você acredita que é o Estado quem diz quantas pessoas cabem na minha casa? Na minha, são três pessoas e meia. Vou dividir minha filha ao meio”, provoca Jose Carlos.
Esses detalhes da vida cotidiana não são visíveis para quem vem de fora. Dá apenas para intui-los: pelas frestas das persianas das casas com o sol a pino; pelas ruas de nomes revolucionários, como Salvador Allende e Simon Bolívar, mas que o povo chama de Carlos III ou Reina Isabel II; pelos relatos sobre os apagões que enegreciam a cidade nos anos 90.

Havana ainda guarda a aura que grandes narradores do século 20, como Hemingway e Graham Greene, ajudaram a criar entre copos de mojitos e daiquiris. “Vivo agora num palácio encantado. Toda minha tristeza e apreensão desapareceram mal vi Havana”, escreveu Anaïs Nin no diário de 1922.
Os anos mudaram e os escritores também. “Cidade que vista de longe parece que até existe, cidade que é uma prisão candente”, descreve Reinaldo Arenas, em Otra Vez el Mar. Havana resiste a ser explicada. Por isso, é a cidade de Arenas e muitas mais.

Para as brasileiras que encontrei no avião russo, dos anos 50, que me levou a Cayo Largo – uma linda ilha no meio do Caribe – Cuba se assemelha ao discurso da mídia brasileira. “O povo tem tanto medo de falar, né?” Para o jovem americano que encontro no aeroporto – “Estou aqui sem a ordem do meu país!” – é o espelho no qual se refletem as distorções do capitalismo. Para a figura que passou as férias deixando crescer a barba para se assemelhar a Fidel, deve ser símbolo de sonhos juvenis. Para a mãe, cujo filho morreu na travessia da balsa, é encarnação da tristeza.

Para mim, ficará guardada como o ruído do mar que se ouve à noite, à beira do Malecón, quando a música vibrante que embala a cidade silencia. Ficará guardada como a mistura de sonho e desalento estampada nos olhos dos habaneros de roupas coloridas que fumam um charuto à varanda, jogam dominó e vêem o tempo passar. Com ou sem Fidel, têm de seguir a vida. E até parecem saber que o mundo os olha. De novo.



Os desafios da Revolução Cubana

A sobrevivência da única nação comunista das Américas, situada a apenas 170 quilômetros da costa dos Estados Unidos, é uma proeza que surpreende a todos os estudiosos da política. Há 49 anos, rebeldes liderados por Fidel Castro, tomaram o poder em Cuba, promoveram a reforma agrária, nacionalizaram empresas e fuzilaram os colaboradores da ditadura anterior de Fulgencio Batista (1901-1973). Desde aquela época, Fidel deteve o poder com mão de ferro e sem admitir qualquer tipo de oposição. Isso até fevereiro de 2008, quando o ditador renunciou ao poder, depois de um ano em que, por problemas de saúde, foi substituído por seu irmão Raúl, agora oficialmente o novo presidente de Cuba.

Durante esse tempo, houve inúmeras tentativas de derrubar Castro do poder por parte de exilados cubanos em Miami e como resultado da Guerra Fria que colocou em pólos opostos Estados Unidos e a ex-União Soviética.
O bloqueio comercial, imposto pelos americanos em 1962, e ainda em vigor, também trouxe conseqüências sérias para a economia do país. E aumentou a resistência de Castro a mudanças e a dependência dos soviéticos, que vigorou até 1993. Com a rápida transição russa para o capitalismo, Cuba foi deixada a sua própria sorte.

Para enfrentar os novos tempos, o governo promoveu reformas comerciais (autorização do trabalho autônomo, mercados livres na agricultura, legalização do dólar, criação de empresas de economia mista, incentivo ao turismo etc.), que permitiram uma retomada do crescimento, ainda que pequena. Entretanto, as medidas provocaram distorções sociais e o impasse diantes dos valores inculcados pela revolução, favorecendo, por exemplo, a distância entre a renda dos que têm dólares e a dos que não têm acesso a eles. O futuro ainda é imprevisível.

Exclusivo On-line

Veja mais imagens de Cuba fotografada por Alvaro Vilela










Revista Horizonte Geográfico

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