segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Tradição das carpideiras nos velórios do sertão


Figurado de Autor Carpideira
As carpideiras, como muitas outras peças criadas pela oficinadaterra e registadas na Sociedade Portuguesa de Autores como ideia original, são a representação de uma tradição mediterrânica em extinção: tratava-se das mulheres que eram pagas para chorar nos funerais das pessoas ilustres.
Este estranho hábito, que se julga terá origens árabes, era ao mesmo tempo sinónimo de perda - pelo que partia - e estatuto social dos que, ficando, o veneravam.

Diário do Nordeste - Março de 2008


Resgatar a memória do sertão é falar do trabalho das carpideiras, pessoas que rezavam e choravam pelos mortos

São Gonçalo do Amarante. Dor, choro, lamentação. Pessoas vivendo um momento que preferiam nunca saber como é. Ao redor de um caixão, muitas lágrimas derramadas pela família que perde um ente querido. E, para completar a cena, o grupo que canta benditos como forma de transformar o último momento em situação bem mais sofrida. Em pé ou sentados no chão, homens e mulheres eram chamados a passar a noite inteira velando um morto. Com cânticos piedosos, o intuito era fazer com que todos os presentes ao velório, chorassem. Além disso, era como se, com o ato, auxiliassem os mortos a entrar no reino do céu.

Essa era a função das carpideiras cearenses que, antigamente, eram figuras comuns no Interior do Estado. Embora, atualmente, a função já não seja mais exercida como antigamente, as “cantadeiras de inselências”, como se auto-conheciam, fazem parte da história dos antepassados nordestinos.

Uma delas é Rosalva da Conceição Lima, mais conhecida como dona Rosinha que, até hoje, trabalha em Juazeiro do Norte, no Cariri, moradora da Rua do Horto. São muitas histórias nos seus 87 anos, pois acompanha velórios desde os 12 anos. O aviso da encomenda de alma vem por uma voz misteriosa. Tanto pode ser homem quanto mulher. Sua atividade é tão merecedora de atenção que, de julho de 2003 a junho de 2004, foi tema de um projeto de pesquisa da Universidade de Fortaleza (Unifor), na Capital cearense, que estudou a história das carpideiras.

Para quem foi uma delas, não tem como esquecer dos “bons tempos”. Um exemplo foi o grupo encontrado no município de São Gonçalo do Amarante, localizado a 59 quilômetros de Fortaleza, e Paracuru, a 87 quilômetros da Capital.

“Cantávamos a noite toda para atrair as pessoas. Hoje já não tem mais. É triste. As pessoas vão para um velório, passam um pouquinho de tempo e vão embora. Antes não era assim. Ficávamos até que o morto fosse enterrado”, contou Cristina Conceição da Silva, 42 anos, moradora da comunidade de Marco, em Paracuru.

A agricultora Maria Gomes de Oliveira, mais conhecida como Maria Silvino, vizinha de Cristina, 77 anos, também lembra “do tempo bom que não volta mais” e confirma as palavras da “cumade”. “A gente passava a noite toda e o velório era cheio de gente e hoje não”, contou ela.

De acordo com Maria Silvino, o trabalho de cantar as inselências era para que “as pessoas ficassem juntas”. Era um momento de reunir até quem não era da família. “Hoje ninguém mais chora, parece que não tem sentimento”, contou a antiga carpideira.

E para lembrar que “cantar” não era só função das mulheres, o comerciante e agricultor da comunidade de Sítio Cordeiro, em São Gonçalo do Amarante, José Júlio Pereira, conhecido por “Caçaco”, 63 anos, fez questão de ressaltar a memória daqueles tempos em que o morto era “honrado”.

Segundo ele, “a despedida da manhã é que fazia o caba chorar, porque as cantigas eram penosas. Hoje, o que se faz é rezar o terço e pronto. Não é como antigamente”, lamentou. Segundo afirma, o trabalho era para que “o espírito ficasse fortalecido para ir para o reino da salvação”.

Para que a nova geração possa ter conhecimento dessa antiga tradição, o conselheiro tutelar, integrante do Conselho Municipal de Defesa Social e presidente do Conselho Municipal do Idoso da cidade de São Gonçalo do Amarante, José Gildenor Barbosa, informou que o grupo sempre é chamado para fazer apresentações em datas especiais como, por exemplo, a festa de emancipação política do município.

“Os estudantes também os procuram para fazer trabalhos das escolas. Eles até participaram do Encontro Mestres do Mundo que aconteceu em Limoeiro do Norte”, salientou o conselheiro tutelar.

EM FAMÍLIA
Cantadores seguiam os passos dos pais

São Gonçalo do Amarante. Seguiram os passos dos pais. Quando indagados sobre como começaram a “tomar gosto” pelas inselências, Maria Silvino, Caçaco e Cristina, de Paracuru e São Gonçalo do Amarante, foram unânimes em afirmar que desde pequenos observavam os pais e os acompanhavam quando eles iam cantar nos velórios.

“Sabe como é, menino é curioso. Então, a gente curiava as cantigas. Me tornei rapaz e ia acompanhando. À noite tinha que ter o cântico e, assim, passava a noite toda no velório”, disse José Júlio (Caçaco).

Foi assim também com Maria Silvino. “Mamãe já cantava inselência e eu fui crescendo e começando a cantar e a rezar também”, contou. Outra que não fugiu à regra foi Cristina. “Acompanhava meus pais e fui aprendendo os cantos. Achava ruim quando tinha velório e não tinha inselência”, lembrou Cristina. “As coisas mais arcaicas desapareceram”.

Divertimento

Mas quem pensa que os velórios eram só locais de tristeza e choro se engana. Por incrível que pareça, a dor, muitas vezes, dava lugar para o divertimento. É isto mesmo. Os três cantadores de inselências contaram que alguns deles estavam acostumados a beber cachaça durante os benditos. “Com cachaça, o povo se animava”, disse Caçaco.

Outro detalhe eram os namoros que, às vezes, iniciavam nos velórios. “A gente ia para a sentinela (velório), mas não namorava não, respeitava”, contou José Júlio, confessando que sua esposa, ele conheceu em um dos tantos velórios do qual participou.

Quantidade

Os três disseram que não têm como saber em quantos velórios tiveram a função de carpideiras só que “foram muitos”. Afinal, “toda pessoa que morria nessa redondeza vinham chamar nós”, comentou Maria Silvino. Fizeram questão de ressaltar que não recebiam nada em troca, faziam como uma forma de “obrigação, de fazer visita”.

E, nestes tantos anos, não tem como não ter histórias curiosas ou engraçadas, como lembram. “Uma vez teve uma briga em um velório. Um bebo quis invadir o local onde estávamos cantando e foi uma confusão. As pessoas correram, até eu levei pancada”, relembrou rindo Maria Silvino.

Evelane Barros
Repórter

Imagens do Sertão
























Cerrado - Primavera Permanente

Fotos de Paulo J.S





A chegada da primavera na região dos Cerrados
Brasileiros é marcada mais pela volta das chuvas
do que pelo aparecimento de flores.

As flores existem e aparecem sempre em grande
quantidade ao longo de todos os meses e são muito
discretas ou o contrário: completamente escandalosas
- como a palipalã, a canela-de-ema e as espécies
mostradas nas fotos deste ensaio.

A primavera florida dos Cerrados começa meses antes
da data oficial, em um ajuste perfeito da natureza.
É por volta de maio que boa parte das árvores e das
espécies dos campos começa a florir. Isso para que
quando começar a ventar forte - o que sempre
acontece em julho e agosto - as sementes
estejam prontas para serem levadas pelo ar
e espalhadas ao solo.

Assim, quando a chuva chegar, normalmente semanas
depois, tudo está pronto para germinar e garantir
a perpetuação. Um espetáculo que mostra que a vida pode
ser linda ou esquisita, como uma flor, mas sempre
será colorida - como uma flor.

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Revista Altiplanos - www.altiplano.com.br

EROSÕES ANIQUILAM NASCENTES DO ARAGUAIA

Imensas voçorocas ameaçam a vida do Grande Rio

http://www.altiplano.com.br/Eroaraguaia.html

Três décadas de muito "progresso", muita modernização no campo e muita monocultura, principalmente de soja, na intersecção dos Estados de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, mostram agora que, enquanto uns poucos enriqueceram, a sociedade toda perdeu.
É ali que uma leva de produtores rurais - a maioria formada por oportunistas e ex-retirantes (hoje podres de ricos) do Paraná e do Rio Grande do Sul - vem provocando estragos ambientais sem precedentes. Além de devorarem o entorno do Parque Nacional das Emas, no sudoeste goiano, eles não hesitaram em destruir as nascentes do Araguaia, um dos maiores e mais importantes rios brasileiros

No lugar de minas e olhos d'água o que existe hoje são 17 voçorocas - imensas erosões com até 800 metros de extensão, 35 de largura e 15 de largura. O quadro é conseqüência do desmatamento desenfreado, inclusive de matas ciliares, e da não-conservação do solo, o que expressa um típico comportamento de agricultores sulistas: a soma de ganância e ignorância.
Por este motivo, autoridades estaduais e federais chegaram a iniciar uma campanha de recuperação das cabeceiras há três anos, mas tudo não passou de marketing.

O problema, porém, continua, é grave e, se nada for feito, ameaça a existência do Araguaia. Apesar de ser um grande rio, como dizem os índios Karajás, é também um sistema ainda frágil, no qual as interferências podem ser mais catastróficas do que já são.
E é muito fácil destruí-lo: os seus primeiros quilômetros são meros regos d'água, que vão formando pequenos córregos, somam-se, viram riachos e, só mais adiante, transformam-se em um verdadeiro rio. É um rio misterioso. Com as nascentes localizadas praticamente dentro da Bacia do Paraná, que corre para o Sul, o Araguaia vai para o Norte - desenhando praias no inverno e perpetuando a vida no verão.

*Reportagem de Paulo José
*Fotos de Paulo J.S. e Evandro Bittencourt
Altiplano.com.br (Goiânia, Goiás, Brasil, 1999)

domingo, 28 de dezembro de 2008

Fórum Surreal Mundial: Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores, por Paulo Roberto de Almeida

27 Dec 2008 - Meridiano 47

1. Globalizados contra a globalização: reação freudiana?
Os participantes do próximo conclave do Fórum Social Mundial, a realizar-se em Belém, de 27 de janeiro a 1° de fevereiro de 2009, podem congratular-se por serem os mais globalizados do planeta: eles desfrutam, provavelmente, de 100% de inclusão digital por meio da internet (sem considerar celulares e outros gadgets do mundo moderno), ou seja, fazem uma utilização plena das possibilidades abertas pela atual sociedade da informação. Todo o processo de informação preliminar sobre o FSM, de convocação e de mobilização preventivas, assim como o registro simultâneo e instantaneamente disseminado de suas ruidosas reuniões, colocadas (escusado dizer) sob o signo da anti-globalização, todo ele terá sido assegurado e efetivamente realizado 100% online, isto é, sob o signo do mundo virtual, que é praticamente um sinônimo da globalização.
E, no entanto, os alegres participantes do piquenique anual da antiglobalização se reunirão para, entre outros objetivos, conspurcar, atacar e combater os próprios mecanismos que possibilitaram, viabilizaram e permitiram todas essas facilidades de informação, de comunicação e de interação recíproca. Não é contraditório? Aliás, não parece completamente estapafúrdia essa revolta irracional contra os seus meios de expressão? Eu - como não pretendo usufruir de minha cota permitida de ilogismo e de irracionalidade - respondo imediatamente que SIM.
Sim, me parece totalmente ilógico e contraditório que pessoas normalmente constituídas, bem informadas, geralmente alfabetizadas (inclusive até o nível universitário) e (que se acredita serem) cidadãos razoáveis no contexto do mundo em que vivemos - ou seja, estudantes e trabalhadores honestos, cumpridores de seus deveres cívicos, promotores de um mundo melhor, ativos na defesa do meio ambiente e dos direitos humanos - consigam revoltar-se contra aquilo mesmo que lhes permite serem exatamente o que são: cidadãos bem informados, participantes, defensores de um mundo melhor para si mesmos e para todos os habitantes do planeta. Em vista disso, apenas posso sorrir ante a perspectiva de ver tantos jovens (e alguns velhos também) reunirem-se para combater a globalização capitalista, logrando, aliás, pleno sucesso em seus empreendimentos antiglobalizadores, justamente tendo como suporte material tudo o que a globalização capitalista lhes ofereceu de melhor. São uns ingratos, para dizer o mínimo. Eu acho que eles também são ingênuos, provavelmente equivocados em suas concepções e intenções e, talvez mesmo, um pouquinho desonestos, pois que se eximindo - como não deveria ocorrer na academia e nas organizações mais sérias - de trazer as provas de suas afirmações tão contundentes contra o capitalismo e a globalização. Deixamos esses aspectos de lado, por enquanto, pois voltaremos a eles no momento oportuno.
Podemos perdoar a inconseqüência política e cultural desses jovens - que parece ser o simples resultado da ignorância e ingenuidade típicas da juventude, ou seja, daquilo que os franceses chamam de naïveté; mas certamente não o tremendo equívoco em que incorrem os mais velhos, que induzem esses jovens a protestar contra o mesmo sistema que lhes permitiu tanta eficiência comunicativa, tanta modernidade organizativa, tanta interação virtual para, finalmente, empreenderem iniciativas ruidosas e totalmente inconseqüentes contra a própria base material de seu tremendo sucesso globalizado. Os jovens antiglobalizadores constituem o mais vibrante exemplo e sustentáculo daquilo mesmo que pretendem combater: a globalização capitalista (forçosamente assimétrica).
Digo equívoco, porque quero acreditar que esses velhos órfãos da globalização, esses escolhos do anticapitalismo militante, esses falidos profetas de um socialismo ultrapassado, hoje quase surrealista - entre os quais podemos identificar vários acadêmicos de sucesso, todos eles monotonicamente adeptos do pensamento único do altermundialismo, de origem francesa - não sofram de um mal bem mais grave e infinitamente mais prejudicial aos mais jovens, que eu chamaria de desonestidade intelectual. Consiste em desonestidade intelectual o ato de acusar a globalização capitalista de (quase) todos os males do planeta, quando na verdade é a falta de globalização capitalista que provoca os próprios males que os mais jovens dizem pretender combater. Para ser direto, eu sequer preciso provar a desonestidade intelectual desses que proclamam as misérias do capitalismo: basta olhar ao redor de si, ou consultar as tabelas estatísticas de qualquer organismo internacional, para ver onde estão os melhores indicadores de bem estar e de liberdade política e individual, e comparar o quadro com os países que não são, justamente, capitalistas e globalizados.
Mas examinemos a questão com um pouco mais de detalhe, por meio dos argumentos dos antiglobalizadores e altermundialistas (esta última designação é a preferida dos próprios interessados; mas como eles ainda não conseguiram dizer do que seria feito o outro mundo possível, prefiro chamá-los pelo nome que melhor os identifica). De certa forma, eles já nos facilitaram a tarefa, ao enunciar seus argumentos em dois conjuntos de “teses”, que contêm aquilo que pensam sobre o mundo, seus problemas (os do mundo) e as suas propostas (as deles) para salvar esse mesmo mundo do capitalismo perverso e da globalização assimétrica.

2. Objetivos reciclados nos últimos três anos: falta de idéias?
O primeiro conjunto é formado por uma espécie de decálogo que eles vêm digerindo há algum tempo e que são definidos como os “objetivos de ação para o evento de 2009″. Ora, isso revela preguiça intelectual dos antiglobalizadores, posto que esses objetivos não são novos, tendo sido elaborados anteriormente, mas apenas em número de nove objetivos, por ocasião de reunião do Conselho Internacional do FSM, realizada em Parma, Itália, de 10 a 12 de outubro de 2006. Na época, esses nove objetivos se destinavam a servir como documento preparatório ao FSM de 2007, realizado em Nairobi, no Quênia, nos dias 21 a 24 de janeiro de 2007. Eles foram objeto de meus comentários (mas também podem ser lidos por inteiro) em texto já publicado sob o título: “Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos”, in Meridiano 47 (n. 78, janeiro de 2007, p. 7-14; link: http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano78.pdf).
Para poupar trabalho aos mais preguiçosos, ou aos membros do MSI - movimento dos sem internet -, reproduzo novamente aqui abaixo as propostas dos antiglobalizadores. Permito-me, todavia, convidar os interessados a ler os meus comentários a cada um deles no trabalho acima indicado. Aqui estão os nove objetivos de 2006-2007:

1. Pela construção de um mundo de paz, justiça, ética e respeito pelas espiritualidades diversas, livre de armas, especialmente as nucleares;
2. Pela libertação do mundo do domínio do capital, das multinacionais, da dominação imperialista patriarcal, colonial e neo-colonial e de sistemas desiguais de comércio, com cancelamento da dívida dos países empobrecidos;
3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens comuns da humanidade e da natureza, pela preservação de nosso planeta e seus recursos, especialmente da água, das florestas e fontes renováveis de energia;
4. Pela democratização e descolonização do conhecimento, da cultura e da comunicação, pela criação de um sistema compartilhado de conhecimento e saberes, com o desmantelamento dos Direitos de Propriedade Intelectual;
5. Pela dignidade, diversidade, garantia da igualdade de gênero, raça, etnia, geração, orientação sexual e eliminação de todas as formas de discriminação e castas (discriminação baseada na descendência);
6. Pela garantia (ao longo da vida de todas as pessoas) dos direitos econômicos, sociais, humanos, culturais e ambientais, especialmente os direitos à saúde, educação, habitação, emprego, trabalho digno, comunicação e alimentação (com garantia de segurança e soberania alimentar);
7. Pela construção de uma ordem mundial baseada na soberania, na autodeterminação e nos direitos dos povos, inclusive das minorias e dos migrantes;
8. Pela construção de uma economia centrada em todos os povos, democratizada, emancipatória, sustentável e solidária, com comércio ético e justo;
9. Pela ampliação e construção de estruturas e instituições políticas e econômicas - locais, nacionais e globais - realmente democráticas, com a participação da população nas decisões e controle dos assuntos e recursos públicos.

Pois bem: confirmando o torpor mental dos antiglobalizadores - ou a sua completa falta de novas idéias, mesmo desinteressantes -, esses nove objetivos são reproduzidos ipsis litteris num post que li no site do FSM, sob o título de “Rumo a Belém”; são apresentados como “Os 10 objetivos de ação para o Fórum Social Mundial 2009″. Claro, está faltando um, que eles prepararam em consulta aos seus membros, e que vai reproduzido aqui abaixo, imediatamente seguido de meus comentários, com o que ficamos todos quites: você, leitor, que conhece agora todos os dez objetivos de ação do FSM para seu piquenique de Belém, e eu, que termino assim meus comentários a esses objetivos vagos e ingênuos. Digo isto, confesso desde logo, sem qualquer preconceito contra os objetivos dos antiglobalizadores, pois que as suas propostas são realmente vagas, o que não as impede se serem, também, equivocadas e nocivas - em sua maior parte - para o mundo de bem estar geral para cuja construção eles pretendem contribuir.

3. Pelo menos um objetivo novo: alguma grande contribuição intelectual?
Como não podia deixar de ser, o único objetivo novo formulado para o encontro de Belém tem a ver - nada mais apropriado - com a realidade amazônica e aqui vai ele:

10. Pela defesa da natureza (amazônica e outros ecossistemas) como fonte de vida para o Planeta Terra e aos povos originários do mundo (indígenas, afrodescendentes, tribais, ribeirinhos) que exigem seus territórios, línguas, culturas, identidades, justiça ambiental, espiritualidade e bom viver.

A primeira coisa que se pode afirmar, em relação a este objetivo, é que ele está mal redigido, continua vago e indefinido sobre o que se deve fazer para alcançar todos os elementos nele inscritos e revela, mais uma vez, preguiça mental, pois que contém, inequivocamente, uma grande dose de conservadorismo social e econômico, o que é surpreendente para pessoas e grupos que se pretendem progressistas e avançados. O que pode significar “defesa” sem que se defina, exatamente, onde estão os perigos? O conceito de defesa sempre implica uma ação contra algo ou alguém que ameaça a sua segurança ou a própria vida. Mas isto não está claro no objetivo acima. Que a natureza seja fonte de vida é algo totalmente tautológico, como sabem os adeptos da lógica formal ou aqueles que lidam com a biologia elementar. Não existe, aliás, outra fonte de vida (salvo para os criacionistas).
A segunda coisa que se pode dizer é que o Português dos antiglobalizadores anda tão estropiado quanto a floresta amazônica, pois não é possível admitir que esse “aos” seja o equivalente funcional de “para os”, referindo-se aqui aos “povos originários do mundo”. Fonte de vida “aos” povos originários? Recomendo uma revisão estilística antes de publicar oficialmente esse décimo e último objetivo.
Mas indo à substância da matéria, parece-me que os antiglobalizadores têm se mostrado tremendamente preconceituosos contra todos os habitantes da Amazônia que não se encaixem em nenhuma das categorias inscritas nesse objetivo, aliás, contra eles mesmos, que virão das grandes metrópoles do Brasil e do mundo e que não são, em sua grande maioria, povos originários. A Amazônia comporta hoje um bocado de gente que não é nem originária, nem indígena, nem afrodescendente, nem tribal, nem ribeirinha, sendo cidadãos emigrados de outras regiões do Brasil e de outros países e que ali vivem e trabalham honestamente. Reivindicar todas aquelas coisas apenas para esses “originários” me parece um tremendo reducionismo étnico ou racial, um pouco como ocorre com esses movimentos racialistas pelos direitos de certas minorias e que pretendem introduzir oficialmente o apartheid no Brasil. Coisa feia, antiglobalizadores!
Mas o quê, mesmo, eles pretendem reivindicar? Está lá, dito claramente assim: “territórios, línguas, culturas, identidades, justiça ambiental, espiritualidade e bom viver”. Território implica a noção de direitos sobre um patrimônio fundiário e isso parece que já está regulado na Constituição e na legislação pertinente, bastando fazer apelo a um advogado ou aos cartórios de registro para assegurar esses direitos. Língua é algo tão vivo que me parece supérfluo ou inócuo reivindicar direitos sobre qualquer uma delas: enquanto existirem povos usando uma língua como instrumento de comunicação ela será preservada; mas é também algo que se transforma com o tempo, acompanhando os destinos de seus detentores. É certo que as línguas indígenas - ou dos “povos originários do mundo” como preferem os antiglobalizadores - vêm sendo submetidas a um duro processo de enxugamento, que corresponde, também, à própria transformação cultural das sociedades originárias, como resultado da pressão terrível sobre elas exercida pela cultura materialmente dominante, que é a do homem urbano (ou talvez capitalista, como prefeririam os antiglobalizadores).
Este é um desafio partilhado por quase todos os “povos originários do mundo” em qualquer canto do planeta, e ele corresponde a forças históricas quase irresistíveis, já que é difícil colocar esses “povos originários” numa redoma e impedi-los de manter contato com outras culturas e civilizações, sobretudo quando estas chegam a eles pela via da invasão territorial ou dos meios de comunicação. Por outro lado, o próprio ato de pretender preservar esses povos originários em seu estado “originário” pode não representar algo progressista ou desejável; ao contrário, pode ser algo regressista ou mesmo reacionário, já que implicando o congelamento desses povos numa das fases evolutivas do seu desenvolvimento cultural - geralmente correspondendo, em linguagem pré-histórica, à era do paleolítico superior -, o que, por outro lado, provocaria muita “injustiça ambiental” e muito “mau viver”, para usar, no sentido inverso, outros dois conceitos dos antiglobalizadores.
Constatemos, em primeiro lugar, que quem está, exatamente, determinando essa defesa contra toda e qualquer mudança nos meios de vida, nas identidades e na cultura não são, para ser mais preciso, os “povos originários do mundo”, mas sim uma tribo de brancos intelectualizados que se reúnem todo ano para proclamar objetivos para o mundo todo, inclusive para os “povos originários do mundo” (que, obviamente, não são eles). Questionemos, em segundo lugar, o direito desses brancos exóticos de traçar uma lista de objetivos para os “povos originários do mundo”, sem que estes tenham se reunido e decidido democraticamente o que pretendem fazer: ficar com suas culturas, línguas e identidades originais, ou integrar-se progressivamente ao chamado mainstream civilizacional, que significa, simplesmente, o Brasil do século XXI, com todas as suas misérias e grandezas, realizações e frustrações, justiças e injustiças. Assim é o mundo, e a nós cabe tomá-lo como ele é, para melhorá-lo progressivamente, em favor de todos, e não apenas dos “povos originários do mundo”.
Deixo de lado, por fim, o objetivo da “justiça ambiental”, posto que ela não está definida positivamente e não deve ser clara em que consiste, mesmo para o mais tarimbado antiglobalizador. Talvez algum jurista altermundialista possa elaborar a respeito, e eu me reservo o direito de comentar sua inovação jurídica posteriormente. Quanto aos termos “espiritualidade e bom viver”, deixo à imaginação dos leitores tentar descobrir o que é isso, exatamente, pois não me parece que mereçam maiores comentários, pela indefinição conceitual ou substantiva. Pergunto, aliás, como “exigir” espiritualidade de alguém?

4. Os “sábios” da antiglobalização: mais bem dotados que os jovens?
Eu mencionei, ao final da primeira seção deste meu texto, dois conjuntos de “teses”, que conteriam aquilo que os antiglobalizadores pensam - verbo sério, este - sobre os problemas do mundo e suas propostas para salvar esse mesmo mundo do capitalismo perverso e da globalização assimétrica. Mas me concentrei, até aqui, nos componentes de apenas um bloco de argumentos altermundialistas. Estes são, de toda forma, os objetivos oficialmente aprovados para o encontro de Belém, e são eles que devem ser considerados no debate atual.
Creio que meus comentários, antes e agora formulados, bastam quanto a esse primeiro bloco de argumentos. Em todo caso, como já escrevi bastante sobre os anti e suas idéias surrealistas, permito-me remeter os interessados no aprofundamento de minhas contestações a essas propostas ingênuas a vários outros trabalhos meus que se encontram livremente disponíveis numa pequena bibliografia pessoal que elaborei a partir dos meus escritos dos últimos anos. Eles não esgotam, obviamente, tudo o que tenho a dizer (e já disse) sobre o processo de globalização e seus descontentes; mas podem dar uma idéia de quão longe da realidade se encontram os antiglobalizadores “originários” (que precisariam ser reciclados ou substituídos por representantes mais inteligentes ou intelectualmente mais preparados). Eis a compilação a que me refiro: “Pequena Bibliografia Pessoal sobre a Globalização (e seus descontentes)”; (no link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/1964BiblioGlobalizacao.pdf).
Pois bem, como são poucas (e inconsistentes, como vimos) as “idéias” dos antiglobalizadores, vou me permitir ajudá-los neste momento de tensão pré-encontro, retomando - e praticamente “desenterrando” - algumas outras propostas de alguns dos seus mais lídimos representantes, que tinham sido formuladas e apresentadas cerca de quatro anos atrás, mais exatamente no dia 1o. de fevereiro de 2005, sob a forma de um “manifesto” sob o titulo de “Doze Propostas para Outro Mundo Possível” (procurem nos arquivos do FSM, por favor, que eu já perdi o link original). Esse manifesto era apresentado como “produzido por ativistas e intelectuais durante o Fórum Social Mundial com propostas para a construção de um outro mundo”.
Os signatários desse manifesto “para um outro mundo” foram 19 eminentes antiglobalizadores (ou que passam por tal), personalidades que continuam a freqüentar os conclaves do FSM a cada ano e que continuam a pontificar sobre a globalização assimétrica e o capitalismo perverso. São eles: Adolfo Pérez Esquivel; Aminata Traoré; Eduardo Galeano; José Saramago; François Houtart; Armand Matellar; Boaventura de Sousa Santos; Roberto Sávio; Ignácio Ramonet; Ricardo Petrella; Bernard Cassen; Samuel Luis Garcia; Tariq Ali; Frei Betto; Emir Sader; Samir Amin; Atílio Borón; Walden Bello e Immanuel Wallerstein. À época eu não comentei suas doze sugestões, seja por falta de tempo, seja porque eu já tinha feito em julho de 2004 (preventivamente, portanto), um texto “Contra a anti-globalização: contradições, insuficiências e impasses do movimento antiglobalizador”, publicado de forma fragmentada nas Colunas de Relnet , de julho a dezembro de 2004, e depois, de forma parcial, em diversos números do Meridiano 47, de julho de 2004 a maio de 2005 (vide recomendações de leitura, ao final).
No ano seguinte, em janeiro de 2005, o FSM foi realizado, como todos sabem, em Caracas, ocasião na qual eu também perpetrei um texto contendo os “Resultados antecipados do Foro de Caracas: um exercício de futurologia garantida…”, elaborado obviamente antes da realização do jamboree bolivariano e publicado em um dos meus blogs em 15 de janeiro (link: http://paulomre.blogspot.com/2006/01/165-resultados-antecipados-do-foro-de.html). Como eu tinha ficado devendo, portanto, meus comentários às doze propostas dos antiglobalizadores eminentes, eu me permito neste momento completar a lacuna pela transcrição integral dessas propostas, seguidas imediatamente de meus comentários sintéticos, reservando a uma outra ocasião uma elaboração mais sofisticada intelectualmente, à altura da respeitabilidade dos sábios antiglobalizadores (mas que não me parecem melhor dotados do que os jovens que costumam produzir mais transpiração do que inspiração nesses conclaves aborrecidos pela repetição das mesmas idéias surrealistas).
Resumindo suas (poucas) idéias, os sábios propunham o cancelamento da dívida pública dos países do sul, a taxação internacional das transações financeiras e o desmantelamento progressivo dos paraísos fiscais, jurídicos e bancários. Pediam, ainda, a proibição de todo o tipo de patente do conhecimento e seres vivos, assim como da privatização de bens comuns da humanidade, em particular a água. Diziam que estavam se expressando a título estritamente pessoal e que não pretendiam falar em nome do FSM, afirmação que pode ser tomada pelo seu valor face (mas que cabe receber cum grano salis, posto que eles são considerados os maîtres-à-penser do movimento antiglobalizador). Mas como o Fórum tem se notabilizado por uma notável falta de idéias, pode-se considerar que suas propostas representam, sim, propostas do FSM, mesmo que não tenham sido distribuídas oficialmente para discussão no conclave amazônico. Como imagino que vários desses sábios ali comparecerão, permito-me comentar agora suas idéias de 2005, esperando que elas não tenham piorado desde então.

5. Mais uma dúzia de propostas para um outro mundo possível: será possível?
Vejamos o que seria possível dizer, sinteticamente, sobre cada uma das propostas:

1) Anular a dívida pública dos países do Hemisfério Sul, que já foi paga várias vezes e que constitui, para os Estados credores, os estabelecimentos financeiros e as instituições financeiras internacionais, a melhor maneira de submeter a maior parte da humanidade à sua tutela;
A proposta é redundante, chega tarde e traz a marca de uma visão equivocada do que constitui a dívida externa. Desde meados dos anos 1980, pelo menos, os países do G7, os membros do Clube de Paris e os sócios mais influentes das instituições de Bretton Woods vêm aprovando - aprofundando a cada ano - mecanismos de redução negociada e menus de redução unilateral da dívida dos países mais pobres. Dizer que ela já foi paga várias vezes constitui, obviamente, uma visão totalmente política do problema, que não corresponde às condições contratuais. A relação, obviamente, é recíproca e não se tem notícia de países tomadores de crédito que tenham contraído dívidas para se submeter voluntariamente à tutela dos credores. Os juros da dívida pública, inclusive, ostentam os menores níveis do mercado e podem ter aspectos concessionais, como é o caso da relação entre muitos credores e os países mais pobres. A anulação da dívida pública comprometeria um sistema que ocupa um nicho não atendido pelo sistema de mercado de créditos a taxas comerciais.
Os propositores, provavelmente, não têm idéia de como funcionam os diversos mercados de créditos, e o atendimento de sua proposta simplesmente prejudicaria o conjunto dos tomadores públicos, que são todos os países em desenvolvimento que não possuem sistemas de financiamento sofisticados ou abastecidos. Para o Brasil, por exemplo, que é um país ao mesmo tempo tomador e credor, a implementação dessa medida representaria um enorme prejuízo nos negócios empreendidos por empresas brasileiras no exterior, que contam com financiamento público (BNDES ou outro).

2) Aplicar taxas internacionais às transações financeiras (especialmente a Taxa Tobin às transações especulativas de divisas);
Essa iniciativa, especialmente na forma proposta originalmente pelo seu suposto patrono, já foi inclusive renegada pelo economista James Tobin, que deu, involuntariamente, o nome à associação francesa que está na origem do movimento antiglobalizador, a ATTAC (Association pour la Tobin Tax en Appui aux Citoyens). Tobin havia feito a proposta no quadro dos movimentos cambiais erráticos que se seguiram à quebra do sistema de Bretton Woods de taxas estáveis, mas logo constatou sua inaplicabilidade prática, em virtude da impossibilidade de se separar os fluxos de ativos reais voltados para o investimento e a produção, daqueles puramente especulativos. Este é o problema central de toda taxação sobre transações financeiras: ela pune indistintamente movimentos positivos e outros de qualquer natureza, o que introduz, simplesmente, não um fator dissuasivo aos movimentos erráticos - que se realizam de qualquer maneira - mas um custo adicional aos legítimos tomadores de recursos nos mercados de créditos.
O Brasil, decididamente, seria prejudicado pela introdução desse tipo de medida mal concebida e impossível de ser aplicada em bases universais, como aliás já escrevi em um pequeno texto (”Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais?”, Meridiano 47, n. 47, junho 2004, p. 12-15; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-100_files/Meridiano_47.pdf). Considerando-se que existem brasileiros entre os 19 sábios do FSM, se a proposta fosse introduzida, eles estariam, conscientemente ou não, prejudicando a posição do Brasil enquanto tomador de recursos nos mercados financeiros internacionais. Ingenuidade ou simples ignorância?

3) Desmantelar progressivamente todas as formas de paraísos fiscais, jurídicos e bancários, por considerá-los como um refúgio do crime organizado, da corrupção e de todos os tipos de tráficos;
De fato, os paraísos fiscais constituem um problema para governos e empresas e cidadãos honestos, na medida em que eles não apenas subtraem recursos que, de outra forma, poderiam estar integrados aos circuitos normais da vida econômica, como também podem ser utilizados pelo crime organizado e pelos habituais defraudadores das administrações tributárias nacionais. O problema está em que, num sistema de soberanias ilimitadas, cada país está livre para determinar seu sistema tributário e as alíquotas a serem aplicadas às operações financeiras conduzidas em suas jurisdições. Nenhum outro Estado ou organização pode obrigar os paraísos fiscais a incorporar mecanismos ou alíquotas contra sua vontade e interesse nacional (que é, obviamente, o de ganhar alguns trocados - ou milhões - à margem dessas operações fictícias). Eles podem, teoricamente, ser submetidos a sanções por iniciativa dos Estados que se sentirem prejudicados por sua atitude oportunista e desleal no plano fiscal. Mas o fato é que esse tipo de prática vai continuar enquanto Estados predadores pretenderem manter níveis impositivos e mecanismos extratores intrusivos e extorsivos do ponto de vista das empresas e cidadãos; daí a “utilidade” dos paraísos fiscais como válvulas de escape, mesmo para contribuintes honestos na maior parte do tempo.
O desmantelamento sugerido pelos sábios do FSM pode significar alguma iniciativa truculenta da parte dos Estados “normais” da comunidade internacional, o que obviamente apresenta problemas no plano da legalidade internacional e do direito soberano de cada Estado adotar a estrutura tributária que melhor lhe convenha. Aliás, eles querem atuar bem mais sobre os efeitos do que sobre as causas: existem paraísos fiscais para responder a certas “necessidades” econômicas, assim como existem traficantes de drogas para responder à proibição oficial e para atender os “clientes”.
Talvez a solução mais conveniente, ou pelo menos mais racional, esteja numa coordenação fiscal internacional apontando na direção de alíquotas moderadas e mecanismos menos intrusivos do ponto de vista dos agentes econômicos primários. A experiência ensina que medidas truculentas como as sugeridas pelos sábios acabam resultando em mais fraudes fiscais, fuga de capitais e outras práticas nefastas no plano fiscal nacional. Os sábios confirmam, indiretamente, sua visão autoritária, dirigista e estatizante do sistema econômico, o que em todos os lugares levou a distorções e à exportação de riquezas. Eles provavelmente acham que os sistemas ultra-intrusivos e centralizados ao extremo conformam o modelo ideal de governança: a História ensina que o contrário costuma ser o verdadeiro.

4) Cada habitante do planeta deve ter direito a um emprego, à proteção social e à aposentadoria, respeitando a igualdade entre homens e mulheres;
Talvez os sábios pudessem acrescentar também: uma casa, um carro, conta em banco, milhas ilimitadas, vale-refeição, uma visita por ano a Paris e outra a Nova York. Incrível como esse pessoal tem uma capacidade imitativa extraordinária: eles são capazes de imitar o discurso de qualquer político em campanha eleitoral. Como não dizem absolutamente nada sobre como pretendem conceder todas essas bondades e benesses aos felizes habitantes do seu outro mundo possível, podemos ignorar totalmente esta quarta proposta, por inoperante e puramente demagógica.

5) Promover todas as formas de comércio justo, rechaçando as regras de livre comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC). Excluir totalmente a educação, a saúde, os serviços sociais e a cultura do terreno de aplicação do Acordo Geral Sobre o Comércio e os Serviços (AGCS) da OMC;
Os sábios estão mal informados: a OMC é tão capaz de impor regras de livre comércio quanto a Igreja é capaz de assegurar a castidade ou a abstinência de seus seguidores. A expressão “todas as formas de comércio justo” é completamente vazia de significado no mundo do comércio real, o que talvez não seja do conhecimento dos sábios, já que eles vivem exclusivamente no âmbito universitário ou das ONGs, sem contato de qualquer tipo com a esfera econômica. Quanto aos temas para os quais eles pedem exclusão dos acordos de liberalização, provavelmente não sabem que vários deles já fazem parte das ofertas ou da situação real de “exploração” de serviços em muitos dos países membros da OMC. No campo da educação, por exemplo, nenhuma regra constitucional poderia impedir as universidades de Harvard ou de Yale de se instalarem no Brasil, se assim o desejassem (o que seria excelente para a competição entre instituições de qualidade), bastando uma autorização do MEC e a conformidade dessas universidades com as regras em vigor no Brasil.
Incrível como mesmo os mais reconhecidos sábios têm horror à competição no mundo da ciência e cultura e preferem manter sistemas fechados e excludentes, o que, por si só, já constitui um insulto à inteligência e à universalidade do conhecimento. Esses sábios deveriam ser coerentes com o que propõem e começar por não aceitar mais nenhum convite das universidades européias ou americanas que os cortejam (talvez indevidamente, ou por excesso de generosidade com figuras “exóticas”).

6) Garantir o direito à soberania e segurança alimentar de cada país, mediante a promoção da agricultura campesina. Isso pressupõe a eliminação total dos subsídios à exportação dos produtos agrícolas, em primeiro lugar por parte dos Estados Unidos e da União Européia. Da mesma maneira, cada país ou conjunto de países deve poder decidir soberanamente sobre a proibição da produção e importação de organismos geneticamente modificados destinados à alimentação;
O que eles propõem é absolutamente contraditório com o que dizem defender. Os EUA não vão retornar à “agricultura campesina”, seja lá o que isso queira dizer, nem os europeus vão renunciar aos gordos subsídios que sustentam artificialmente sua agricultura, em detrimento dos verdadeiros campesinos africanos ou asiáticos. Por outro lado, os subsídios à exportação não são, ao contrário das subvenções internas, os mais importantes nem os mais nocivos a um comércio agrícola verdadeiramente “justo” (para empregar um conceito que eles apreciam). Os sábios também parecem contraditórios com seu apego à ciência, ao rejeitar a priori, sem qualquer fundamento científico, os OGMs ou outras inovações que possam ser introduzidas para melhorar a produtividade agrícola de capitalistas e campesinos e atender à segurança alimentar de todos os povos do planeta. Seu obscurantismo nessa matéria revela preconceito e uma atitude propriamente reacionária em relação aos avanços responsáveis da ciência.

7) Proibir todo tipo de patenteamento do conhecimento e dos seres vivos, assim como toda a privatização de bens comuns da humanidade, em particular a água;
Os sábios não devem conhecer legislação de propriedade intelectual, pois em nenhum país do mundo o conhecimento é patenteável. Seres vivos podem, sim, ser objeto de proteção, por instrumentos adequados, se cumprirem os requisitos fixados na legislação. Tecnologias proprietárias têm sido responsáveis pela maior parte dos novos medicamentos, que salvam a vida das pessoas e melhoram suas vidas. Talvez os sábios pretendam ou possam pessoalmente ficar à margem dessas possibilidades de bem-estar e se abster de usar novos medicamentos.
Quanto aos bens comuns, eles certamente se submetem a alguma regulação, nacional ou multilateral, o que não impede sua exploração em regime de concessão, cujos termos são a rigor estabelecidos com vistas ao bem comum, justamente. Apenas um preconceito contra empresas privadas leva os sábios a excluírem preventivamente essa possibilidade de exploração eficiente, cost-effective, de certos bens comuns. Não se sabe de uma empresa privada que não esteja interessada em ampliar sua clientela, mesmo para “bens comuns”. O que os sábios refletem, implicitamente, é um tremendo preconceito contra o lucro, obviamente, o que totalmente ridículo em pessoas que são supostamente razoavelmente instruídas em matéria econômica (ou não?).

Lutar por políticas públicas contra todas as formas de discriminação (sexismo, xenofobia, anti-semitismo e racismo). Reconhecer plenamente os direitos políticos, culturais e ambientais (incluindo o domínio de recursos naturais) dos povos indígenas;
Nada a objetar quanto ao primeiro objetivo. Sérias preocupações quanto ao segundo, posto que esses povos não permanecerão eternamente indígenas, a menos que os sábios pretendam fazer deles objetos de museu, preservados em uma redoma que os impeça de se integrarem às sociedades nacionais. Esses sábios se consideram tutores dos povos indígenas.

9) Tomar medidas urgentes para pôr fim à destruição do meio ambiente e à ameaça de mudanças climáticas graves. Implementar outro modelo de desenvolvimento fundado na sobriedade energética e no controle democrático dos recursos naturais;
Nada a objetar. Os sábios só ficam nos devendo uma descrição mais acurada do que eles entendem por “outro modelo de desenvolvimento”, sem o que fica difícil criticar, mais uma vez, suas “idéias” surreais. Sobriedade energética pode querer dizer muitas coisas, inclusive com novas tecnologias desenvolvidas por empresas privadas, que eles tão zelosamente querem expulsar de todo e qualquer domínio “público”. O controle democrático dos recursos naturais é uma frase generosa, que pode tanto querer dizer parlamentos nacionais, quanto ONGs, mas estas geralmente escapam de qualquer controle democrático, pois são de caráter privado e não costumam prestar contas à sociedade.

10) Exigir o desmantelamento das bases militares estrangeiras e de suas tropas em todos os países, salvo quando estejam sob mandato expresso da Organização das Nações Unidas;
Tremendo autoritarismo, pois existem países que definem sua segurança com base em alianças militares e que preferem delegar certas tarefas a tropas estrangeiras, instaladas em bases nacionais. Japão e Alemanha, por exemplo, não pretendem se nuclearizar e preferem se colocar ao abrigo do guarda-chuva nuclear dos EUA. Os sábios vão exigir que esses dois países deleguem sua segurança a tropas da ONU?

11) Garantir o direito à informação e o direito de informar dos cidadãos mediante legislações que ponham fim à concentração de veículos em grupos de comunicação gigantes;
Os sábios deveriam encaminhar sugestões detalhadas aos órgãos nacionais de regulação audiovisual ou apresentar casos concretos de abuso nas instâncias de defesa da concorrência. Atitude louvável essa, embora a mesma postura não se aplique no caso de entidades puramente estatais, sempre julgadas benéficas por princípio.

12) Reformar e democratizar em profundidade as organizações internacionais, entre elas a Organização das Nações Unidas (ONU), fazendo prevalecer nelas os direitos humanos, econômicos, sociais e culturais, em concordância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Isso implica a incorporação do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial do Comércio ao sistema das Nações Unidas. Caso persistam as violações do direito internacional por parte dos Estados Unidos, transferir a sede da ONU de Nova Iorque para outro país, preferencialmente do Sul.
Reformar essas instituições deve fazer permanentemente parte da agenda dos governos responsáveis, já que essas instituições tendem a se converter em dinossauros esclerosados, cuidando unicamente do seu próprio interesse e do seu pessoal. Curiosamente, as instituições de Bretton Woods e a OMC não estão entre as mais mal geridas, bastando constatar que os piores casos de má administração de recursos, excesso de pessoal e desvios de função - quando não duplicação de iniciativas nas mesmas áreas - se encontram bem mais nas organizações da área social e cultural e nas de assistência aos países pobres.
Quanto à segunda sugestão, acredito que poucos delegados do Sul estariam de acordo em retirar a maior parte das organizações internacionais de suas sedes em países do Norte. Mas sempre se pode tomar a iniciativa de consultar os interessados.


Conclusão
Enfim, concluímos por aqui mais este “diálogo” com os antiglobalizadores, na verdade uma iniciativa totalmente unilateral e unidirecional, posto que nunca recebi nenhum comentário dos interessados a respeito de minhas críticas - algo contundentes, reconheço - a suas idéias surrealistas. É da minha natureza exercer o pensamento crítico, como também imagino que deva ser a postura acadêmica dos antiglobalizadores e seus representantes autorizados, em primeiro lugar os sábios.
O que constato, de fato, é que os antiglobalizadores, e seus sábios, adoram o pensamento único, pois que nenhuma entidade, ou personalidade individual, que não concorde com seus princípios algo esquizofrênicos é convidada a falar ou debater em seus conclaves sempre ruidosos e inconclusivos. Deve fazer mais de dez anos que eles nos prometem um outro mundo possível, e na verdade a única coisa que eles conseguem aprovar, como resultado desses encontros, é uma agenda que conseguiria tornar o mundo atual pior do que ele já é. Com efeito, todas as suas recomendações vão a contrário senso das tendências econômicas e científicas contemporâneas, tal como observadas no mundo real; não nesse outro mundo possível de que eles falam, mas do qual não conseguem entregar a receita.
Eu espero, no que me concerne, que este pequeno manual das irrealidades dos antiglobalizadores possa contribuir para que eles reflitam sobre a realidade do mundo concreto, não daquele imaginado por eles e que pouco tem a ver com as relações sociais, políticas e econômicas efetivamente existentes na maior parte dos países. O que deveriam fazer os antiglobalizadores (mas o que eles provavelmente não farão) seria aproveitar o Fórum Social Mundial de 2009, em Belém, para fazer um balanço honesto dos seus dez anos de pregações surrealistas e tirar as lições de por que suas receitas e recomendações - com exceção, obviamente, das mais óbvias, relativas a direitos humanos e sustentabilidade ecológica - não vêm sendo implementadas por praticamente nenhum governo do planeta, mesmo aqueles supostamente mais comprometidos com as suas causas.
Pode-se, a rigor, estabelecer um benchmark com base em suas recomendações - tal como examinadas neste trabalho e em textos anteriores - e verificar em que medida os governos aparentemente mais comprometidos com os princípios e causas do FSM implementam, de fato, as medidas preconizadas pelos antiglobalizadores. O primeiro teste é, evidentemente, o da própria globalização. Ninguém há de recusar a realidade, por exemplo, de que Cuba e Coréia do Norte são países pouco globalizados - junto com outros, como Síria e Iran, que também controlam a internet e a imprensa -, comparativamente com Costa Rica e Coréia do Sul, e isso poderia servir de benchmark para um balanço do bem estar social, dos direitos à livre informação e de todas as demais liberdades individuais ou coletivas em todos esses países. O contraste seria tão flagrante que eu não tenho nenhuma dúvida quanto ao resultado desse teste.
Em face desse tipo de realidade, eu me pergunto o que é que os sábios e seus seguidores da antiglobalização aprovarão em Belém. Talvez uma repetição maquiada das teses aqui examinadas. Creio que teremos mais do mesmo (até o próximo Fórum Surreal Mundial), posto que eles sairão convencidos de que suas propostas podem funcionar na prática. Ainda não se viu nada disso, mas eles não perdem a esperança.
Imagino que os mais jovens o façam por ingenuidade ou ignorância das coisas do mundo. Imagino também que os mais velhos - sindicalistas, professores e outros últimos crentes na verdade revelada - o façam por autismo político e incapacidade de enfrentar a realidade. Quanto aos sábios, que teoricamente podem dispor de todo o conhecimento acumulado desde sempre nas academias e centros de pesquisa, acredito que eles continuam a repetir as mesmas idéias surrealistas e os mesmos equívocos na área econômica, não por acreditarem em seus argumentos, mas apenas para disporem de uma tribuna fácil para suas perorações inúteis. Isto não constitui apenas uma forma de auto-engano; mas se trata, provavelmente, de desonestidade intelectual, o que é imperdoável a cidadãos escolarizados além do terceiro ciclo. Enfim, ninguém gosta de desmantelar seus sonhos e utopias. Acho que os sábios também não…

Algumas recomendações de leitura:
“Contra a anti-globalização: Contradições, insuficiências e impasses do movimento antiglobalizador”. Publicado de forma fragmentada em Meridiano 47 (disponível em formato integral no link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/1297ContraAntiGlobaliz.pdf).
“Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos”, Meridiano 47 (n. 78, janeiro 2007, p. 7-14; link: http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano78.pdf).
“A distribuição mundial de renda: caminhando para a convergência?”, Meridiano 47 (n. 74, setembro 2006, p. 20-29; link: http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano74.pdf).
“A globalização e seus descontentes: um roteiro sintético dos equívocos”, Espaço Acadêmico (n. 61, junho 2006; link: http://www.espacoacademico.com.br/061/61almeida.htm).
“A globalização e seus benefícios: um contraponto ao pessimismo”, Espaço Acadêmico (n. 37, junho 2004; link: http://www.espacoacademico.com.br/037/37pra.htm).
“A globalização e as desigualdades: quais as evidências?”, In: Paulo Roberto de Almeida, A Grande Mudança: conseqüências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Códex, 2003; link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/859GlobalizDesig.pdf).

Paulo Roberto de Almeida é Doutor em ciências sociais, diplomata de carreira, professor no Mestrado em Direito do Centro Universitário de Brasília - Uniceub (pralmeida@mac.com). Os argumentos aqui apresentados correspondem única e exclusivamente às posições pessoais do autor, não tendo qualquer relação com as entidades a que ele se encontra vinculado.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Os biocombustíveis, a BP-Berkeley, e o novo imperialismo ecológico


por Hannah Holleman e Rebecca Clausen [*]
British Petroleum, Beyond Petroleum ... Biofuel Promoter, Biosphere Plunderer. [Petróleo Britânico, Bem longe do Petróleo… Promotor dos Biocombustíveis, Pirata da Biosfera]. Independentemente de qual o significado actual da abreviatura da BP, uma coisa é certa: este gigante do petróleo reconhece um bom negócio à primeira vista. Em troca de uma contribuição financeira relativamente pequena, a BP apropria-se do saber académico duma importante instituição pública de investigação, alicerçada em 200 anos de apoio social, para maximizar o retorno dos seus investimentos na energia. Estes investimentos, por sua vez, estão concentrados sobretudo na promoção do mercado dos biocombustíveis, a actual coqueluche dos que detêm o poder e que estimulam a mudança enquanto mantêm o "negócio do costume". O que significa que são os trabalhadores no seio dos países desenvolvidos que vão subsidiar a extracção de bens ainda mais ecológicos nos países em desenvolvimento para saciar as elites, que nunca se importam em tirar a comida da boca das pessoas para encher de ouro as algibeiras. A socialização de custos para proveito económico privado não é um fenómeno novo no sistema capitalista. No entanto, este caso significa uma nova deformação na aliança entre ciência aviltada, imperialismo económico e sofisma do "desenvolvimento sustentado".

Combustível novo, barris velhos

Em Fevereiro de 2007, a BP anunciou os seus planos com a Universidade da Califórnia (UC) em Berkeley, em parceria com a Universidade do Illinois e o Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, para liderarem a maior aliança de investigação académico-industrial da história dos EU. O osso de 50 milhões de dólares por ano que a BP vai atirar à Berkeley irá criar o Instituto de Biociências Energéticas (EBI), que concentrará fundamentalmente a sua investigação na biotecnologia para produção de biocombustíveis. "Ao lançar este instituto visionário, a BP está a criar um novo modelo de colaboração universidade-indústria", disse Beth Burnside, vice-chanceler para a Investigação da UC Berkeley (citado em Sanders 2007). À luz do registo histórico da acumulação capitalista, este "modelo novo" para a colaboração universidade-indústria parece um vinho novo numa garrafa antiga: apropriação de um bem social (universidade pública), privatização de propriedade (desenvolvimento intelectual) e comercialização do resultado (produtos de energia intensiva). E deste modo a BP recrutou uma instituição pública como sua subsidiária para arranjar lucros.

Apropriação da academia

Não é a primeira vez que a UC Berkeley enche a gamela empresarial e, como os gastos governamentais com os bens sociais continuam a diminuir, não será certamente a última. Há dez anos Berkeley fez um acordo de investigação com o gigante das sementes Novartis, depois do que uma análise externa à interacção UCB-Novartis recomendou que se evitassem estas parcerias (Altieri e Holt-Gimenez 2007). Apesar disso, a 15 de Novembro de 2007, a BP, a UC Berkeley, o Laboratório Nacional Lawrence Berkeley e a Universidade de Illinois em Urbana-Champaign anunciaram a assinatura de um polémico pacto por dez anos fundando o Instituto de Biociências Energéticas. O actual negócio com a BP é dez vezes maior do que o negócio da Novartis. Segue-se uma breve descrição desta parceria com a BP:

No contexto nas suas tentativas permanentes de encontrar alternativas comerciais a longo prazo para o petróleo e o gás, a BP anunciou em 2006 que iria investir 500 milhões de dólares durante os próximos 10 anos para instalar o instituto, a primeira instituição pública-privada mundial a esta escala. A tónica do instituto sobre os novos combustíveis integra-se nos objectivos de investigação da UC Berkeley e do Laboratório de Berkeley para o desenvolvimento de fontes sustentadas de energia e com os esforços da Universidade de Illinois para desenvolver matérias-primas biocombustíveis. As três instituições académicas formaram uma parceria estratégica para apresentar à BP uma proposta que foi seleccionada em Fevereiro de 2007 de entre cinco propostas internacionais. (Burress 2007)

Quando os pormenores do contrato final vieram a público, as pessoas ficaram a saber que a BP irá ganhar tecnologia e conhecimentos especializados virados para a obtenção de lucros, deixando de fora grande parte do custo da investigação e do desenvolvimento. Os benefícios para a BP incluem o acesso a cientistas e laboratórios de ponta, os direitos prioritários para negociações de patentes, e o selo da academia e da ciência nos seus novos projectos. O benefício para a universidade é puramente financeiro, embora um terço do dinheiro, pelo menos, vá para os projectos privados da BP no campus. Difícil é dizer qual o benefício para o público. Políticos, funcionários da universidade e gurus pró-mercado enaltecem esta parceria público-privada, enquanto que são marginalizados os críticos da "prostituição" da universidade, que incluem especialistas dos impactos sociais e ambientais dos biocombustíveis,. Isto não é de estranhar dada a natureza antidemocrática do processo em que os pormenores do negócio foram negociados sem qualquer contribuição pública.

Privatização da propriedade (intelectual)

Jennifer Washburn, analisando a corrupção generalizada do ensino superior, explica que o negócio com a BP irá aumentar o controlo que as empresas privadas detêm sobre os programas de acção universitários (Washburn 2007). Com efeito, conforme os cientistas Richard Levins e Richard Lewontin assinalam no seu mais recente livro, Biology Under the Influence (2007), as chamadas parcerias público-privadas estão na moda, e o seu financiamento, um importante factor na orientação da investigação, é, cada vez mais, determinado pelas necessidades da indústria privada com o beneplácito dos governos. Estas "parcerias" são ideologicamente aceites e promovidas, tal como o foram as primitivas apropriações de terras e os esquemas de privatização contemporâneos, como sendo uma evolução natural e inevitável das instituições da sociedade [1] . Os debates relativos à viabilidade cultural, política e tecnológica de soluções com base no mercado para os problemas ambientais e sociais são influenciados directamente pela forma como a ciência interage com a ideologia dominante para moldar e reforçar decisões que afectam o mundo. É preciso confrontar o processo aparentemente natural das tendências degradantes do desenvolvimento capitalista.

Não há almoços de graça nas culturas para biocombustíveis

Tal como a retórica de Esopo utilizada pelo capitalismo para promover a guerra e o imperialismo em nome da democracia, é preocupante o modo como o plano de 10 anos para "investigar" (melhor dizendo, promover) os biocombustíveis menospreza grosseiramente os possíveis danos ecológicos. Não há indícios de que os biocombustíveis possam realmente satisfazer o apetite energético do capitalismo – até agora apenas têm ajudado a destruir as relações ecológicas e sociais. Esta crítica não provém apenas dos que sofrem as consequências imediatas do avanço dos biocombustíveis, mas também de ecologistas no interior das paredes de marfim da UC Berkeley. O Dr. Miguel Altieri, agro-ecologista explica:

Com a promoção de monoculturas mecanizadas em grande escala, que exigem maquinaria e contributos agroquímicos, e com o abate das florestas que captam o carbono para dar lugar às culturas para biocombustíveis, as emissões de CO2 vão aumentar em vez de diminuir. A única maneira de impedir o aquecimento global é promover a agricultura orgânica numa escala pequena e reduzir a utilização de todos os combustíveis, o que exige reduções significativas nos padrões de consumo e o desenvolvimento de sistemas de transportes públicos maciços, áreas que a Universidade da Califórnia devia estar a investigar activamente e em que a BP e os outros parceiros de biocombustíveis nunca investirão um tostão. (Alteri 2007) [2]

Os prejuízos provocados pela produção de biocombustíveis estão a aumentar. Por exemplo, um recente relatório da UNEP/UNESCO prevê o desaparecimento de 98% das florestas da Indonésia em 2022, em grande parte devido à limpeza de terras para plantação de palmeiras para produção de biocombustíveis (Nellemann e Virtue 2007: 6). A Indonésia possui uma das maiores selvas do mundo e um repositório de uma grande porção da biodiversidade do mundo. A par com a desflorestação, a destruição do habitat, a redução da biodiversidade, e os contributos industriais e agrícolas da mono-cultura (incluindo fertilizantes, herbicidas, sementes geneticamente modificadas e água), assistimos à retirada de terras sensíveis dos programas de conservação e a mais poluição da água.

Portanto, a afirmação do projecto BP-Berkeley quanto à sua preocupação ecológica coloca muitas questões [3] . Uma delas, que não é a menos importante, é o próprio historial da BP quanto a destruição ambiental. E o combustível "alternativo" representa apenas a iniciativa mais discutida publicamente do novo instituto. Outros esforços de investigação incluem: "a conversão de hidrocarbonetos pesados em combustíveis limpos, a recuperação melhorada das reservas existentes de petróleo e de gás e o sequestro do carbono" (Brennema 2007). Perante esta agenda de investigação, é fácil entender porque é que os ambientalistas, agricultores e outros críticos em todo o mundo concluem que a principal coisa "verde" que sairá do EBI será o dinheiro.

Quem fica a perder? O imperialismo ecológico e a biopirataria nua e crua

Enquanto os militares americanos abrem as portas de Bagdad a pontapé e patrulham os campos petrolíferos do Médio Oriente e de Africa, as empresas ocidentais esgueiram-se pelas portas das traseiras do sudeste asiático, de Africa e da América latina para se apoderarem de terras e mão-de-obra para os biocombustíveis. Os Estados Unidos não estão sozinhos nesta manobra, mas grande parte da Europa, a Escandinávia, e o Canadá andam também excitados com a possibilidade de vestir de verde os seus negócios. As consequências dos negócios do capitalismo são bem conhecidas. Os agricultores do sul global são proletarizados pelos nortenhos mais ricos e tecnicamente mais experientes. Os cereais geneticamente modificados e as patentes privadas dos produtos vitais põem em perigo a segurança alimentar e ambiental de milhões de pessoas em nome do "progresso" tecnológico e da eficácia na agricultura. No entanto, abundam as cínicas justificações racistas, sexistas e imperialistas para as consequências da produção de biocombustíveis. Podemos ouvi-las a todas na boca dos apoiantes do negócio BP-Berkeley.

O afastamento dos indígenas das selvas limpas para as plantações de palmeiras (Indonésia) e de cana do açúcar (Brasil) é justificada pela nova "democratização" da produção de combustível. A escalada dos custos dos produtos alimentares básicos em todo o mundo é justificada pela necessidade de fornecer às mulheres recursos energéticos visto que são elas quem mais sofre com a tentativa de juntar as pontas sem produtos energéticos contemporâneos "limpos". Estas justificações aparentemente "humanitárias" vêm todas a par de afirmações ridículas feitas por certos políticos de que os biocombustíveis podem fazer acabar com as guerras pelo petróleo – como se fosse o tipo de energia, e não o papel da energia na sociedade capitalista, a causa da corrida global aos recursos.

Estas desculpas para a pilhagem recorrente do mundo em desenvolvimento feita pelos países capitalistas super-desenvolvidos nada mais são do que uma actualização da retórica liberal, imperialista. Embora estas mistificações se apresentem hoje sob a bandeira do "desenvolvimento sustentado", não são diferentes das utilizadas pelos defensores da invasão do Afeganistão que queriam "libertar" as mulheres muçulmanas. No entanto, as vitimas das forças "civilizadoras" e mais recentemente "democratizadoras" do imperialismo capitalista sentiram na pele a sangrenta hipocrisia dos holandeses, britânicos, franceses, e agora dos americanos. No caso dos biocombustíveis, as pessoas têm-se reunido em todo o mundo para protestar contra as ultrajantes afirmações sobre os recursos humanos e ecológicos mundiais feitas pelos países mais ricos que não conseguem abandonar a sua dependência dos combustíveis líquidos, do alastramento suburbano e da acumulação capitalista a qualquer custo.

Conclusão

O caso da BP-Berkeley, os biocombustíveis e o novo imperialismo ecológico demonstram a "irracionalidade de um mundo cientificamente sofisticado" (Levins and Lewontin 1985). A ideia absurda de esperar que a causa da degradação social e ecológica possa ser a sua própria solução estabelece tanta confusão como os argumentos que defendem mais combustíveis líquidos e automóveis alternativos em vez de transportes de massas. É crucial questionar a ciência usada para legitimar a pilhagem de povos e do planeta e avaliar honestamente o que é que se pode tirar para servir o bem comum.

Tal como outros sectores duma sociedade de classes, há cientistas rebeldes que utilizam os seus recursos para denunciar e resistir à opressão. O problema é que, dado o acesso restrito e desigual às instalações de ensino e de investigação, a maior parte dos cientistas ocidentais mantém-se alheado das opressões mais difíceis e quase sempre alheados das consequências das políticas que apoiam através da investigação. Não é difícil imaginar que a urgência em reduzir a procura de combustíveis nos EUA seja um problema diferente para os ogoni da Nigéria ou os bidayuh em Bornéu, que perdem gente e terras a favor do combustível (petróleo e biodiesel), ou para os cientistas do novo instituto da BP em Berkeley. Tal como uma sociedade mais alargada é dominada cada vez mais pelos imperativos de um sistema opressivo de propriedade privada, o "saber e a ignorância são determinados, tal como em toda a investigação científica, por quem possui a indústria da investigação, por quem comanda a produção do saber". Com efeito, "há luta de classes nos debates acerca de qual o tipo de investigação que deve ser feita". (Lewontin and Levins 2007: 319).

Enfrentamos relações de poder cada vez mais desiguais, devido ao desenvolvimento das indústrias de armamento e tóxicas que são ambas mais mortíferas para os seres humanos e para o ambiente do que jamais visto na sociedade humana. Para confrontar a organização de capitalistas, os cientistas têm que se juntar às restantes pessoas da sociedade para recusar o seu trabalho a quem está no poder ao mesmo tempo que tornem mais difícil aos colaboradores com o actual sistema sabotar os nossos esforços. A perspectiva de Lewontin e Levins (2007:217) pode servir-nos de guia eficaz.

Existe… um conflito crescente entre a necessidade urgente da nossa espécie por uma integração e democratização da ciência e a economia e sociologia do saber comercializado que impede esse desenvolvimento. Podemos tentar simplesmente prever, detectar ou tolerar o desfecho desse conflito. Ou podemos aderir à luta para influenciar o que vai acontecer.

Bibliografia
Altieri, Miguel A. and Eric Holt-Gimenez. 2007. "University of California's Biotech Benefactors." The Berkeley Daily Planet. Berkeley, CA. February 6.

Altieri, Miguel A. and Eric Holt-Gimenez. 2007. "Biofuel and the BP-UC Berkeley Research Deal: A 'Win-Win' Agenda?" California Progress Report. February 7.

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Notas

[1] Citação do presidente do senado académico de Berkeley sobre o novo negócio com a BP, apesar do clamor da faculdade e dos estudantes da universidade: "Nenhum de nós achou que o EBI apresenta qualquer ameaça para a natureza pública da universidade. Na realidade, a tradicional missão tripartida das instituições concessionadas – ensino, investigação e serviços – fica bem servida com este projecto. O programa de investigação do EBI está voltado para a solução dos actuais problemas supremos da sociedade, é disso que trata a terceira perna da nossa missão pública – serviços ou investigação aplicada genericamente. Portanto, encaro o EBI como um reforço da nossa missão pública. A cooperação com o sector privado é cada vez mais uma forma de levar a cabo esta missão, mas necessitamos de estruturar as nossas relações com o sector privado de forma a preservar a integridade da universidade". - William Drummond, Chair, Berkeley Division of the Academic Senate, (Drummond 2007)

[2] Infelizmente, o Departamento dos Transportes também não se vai concentrar nos transportes de massas, mas irá contribuir com uma bela soma para o desenvolvimento da utilização dos biocombustíveis. (Research and Innovative Technology Administration November 2006)

[3] Muitos defensores deste acordo dizem que temos que investir no futuro dos chamados biocombustíveis de "segunda geração". Mas, mesmo no "melhor" dos cenários, estes biocombustíveis continuam a ser uma solução anti-ecológica e anti-social para os nossos problemas energéticos. Um relatório recente da ONU conclui que
A segunda geração das instalações de produção de biocombustiveis líquidos vai criar um mercado para quantidades muito maiores de biomassa agrícola e promete criar co-produtos de alto valor (e portanto uma geração rica). No entanto, vai exigir também o desenvolvimento de mais instalações complexas de capital intensivo, dando maior margem às grandes empresas. Já se assiste a grandes investimentos que assinalam o aparecimento de uma nova "bio-economia" nas próximas décadas. (United Nations Energy April 2007: 24)
Fazendo eco das muitas críticas aos biocombustíveis, este relatório mostra que mesmo a mais optimista das previsões no que se refere aos biocombustíveis não pode resolver os problemas de escala e de procura de energia cada vez maior. Ver também "Biofuels for Transport: An International Perspective," "Plants at the Pump: Biofuels, Climate Change and Sustainability," and "Potential Contribution of Bioenergy to the World's Future Energy Demand."

[*] Doutorandas na Universidade de Oregon, EUA.

O original encontra-se em http://mrzine.monthlyreview.org/hc160108.html . Tradução de Margarida Ferreira.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

28/Jan/08

Causas do aumento do preço de alimentos no mundo


Ribas A. Vidal1; Michelangelo M. Trezzi2 & Aldo Merotto Jr.3
1Eng. Agr., M. Sc., Ph. D., P.D.F. Pesquisador do CNPq e Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - E-mail: ribas.vidal@pq.cnpq.br
2Eng. Agr., M. Sc., Ph. D. Professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná - E-mail: trezzi@utfpr.edu.br
3Eng. Agr., M. Sc., Ph. D., P.D.F. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - E-mail: merotto@ufrgs.br

A elevação dos preços de cereais no mercado mundial se iniciou desde 2001. Estimativas do Banco Mundial indicam o incremento de 140% no preço de alimentos entre janeiro de 2002 e janeiro de 2008. Contudo, quase 75% desta expansão ocorreu a partir de setembro de 2006.

Estes dados têm levado a diversas especulações de pelo menos dois grupos de interesses: os neo-Malthusianos e os "agentes da indústria petroleira". Há quase 200 anos Malthus constatou que a população de humanos aumentava de forma exponencial enquanto que a produção de alimentos aumentava de forma aritmética e concluiu que em breve (para a época) haveria falta de alimentos para tanta gente (Elwell, 2008). Esta teoria não se concretizou porque felizmente Malthus não pode prever que novas tecnologias na produção de alimentos e expansão da área cultivada permitiriam o crescimento da produção de forma a impedir a escassez de alimentos naquele tempo. No final da década de 1960, também houve uma crise de alimentos e esta teoria foi ressuscitada (Ehrlich, 1968). Novamente as previsões alarmistas não se concretizaram devido à chamada "revolução verde", a qual se baseava no uso de variedades de plantas altamente produtivas e no elevado uso de insumos como fertilizantes e defensivos, que elevou a produtividade das culturas, principalmente trigo e arroz, e garantiu o abastecimento mundial de alimentos. Uma simples análise das estatísticas da população mundial, permite concluir que não houve aumento de 75% da população de humanos a partir de setembro de 2006 que justificasse aquele aumento no preço de grãos.

O segundo grupo de interesses, "os agentes da indústria petroleira", apregoam que os programas de biocombustível são responsáveis pelo aumento mundial no preço dos alimentos. É fácil de ver os interesses econômicos e políticos que são prejudicados pela oferta de uma fonte de energia alternativa para movimentação de veículos e do mundo. Novamente, as análises das estatísticas disponíveis nos permitem concluir outra realidade. Os subsídios do governo do EUA e dos membros da Comunidade Européia aos programas de biocombustíveis se intensificaram a partir de 2006 e, de fato, houve incremento de 75% no preço dos alimentos a partir de setembro de 2006. Perfeitamente relacionados. Mas, como explicar (e culpar o programa de biocombustível) pelos 65% de aumento no preço de alimentos que ocorreu entre 2001 e 2006? Além disto, será que entre 2006 e 2008 não houve outros fatores, além dos programas de biocombustíveis, que também podem ter contribuído com a disparada no preço mundial dos grãos?

Na realidade, existem DEZ RAZÕES que levaram a esta crise mundial de alimentos. A seguir serão apresentadas estas causas da crise alimentar na seqüência cronológica da ocorrência dos fatos.

Primeira, houve aumento do número de consumidores de alimentos de forma acentuada e continuada na última década. São conhecidas as estatísticas da elevada taxa de crescimento econômico da China e da Índia. São quase 10% de taxa de crescimento, todos os anos e por mais de uma década. Com isto são mais pessoas que aumentam seu poder aquisitivo e começam a ingerir alimentos em maior quantidade e qualidade. Foram 450 milhões de consumidores que deixaram a linha de pobreza e aumentaram seu consumo de alimentos mais nobres, como carne de gado (China, Rússia) e de frango (China, Índia). Sabe-se que são necessários de 6 a 10 kg de grãos para produzir cada kg de carne (POLLAN, 2008). Bastante ineficiente, mas quem não aprecia um bom churrasquinho? Certamente, esta tendência de consumo não vai diminuir e isto representa uma enorme oportunidade de negócios para os empresários brasileiros que será abordada mais adiante.

Segunda, houve falta de investimentos mundiais em pesquisa agrícola por negligência dos organismos internacionais como FAO (órgão da Organização das Nações Unidas), AID (agência dos EUA) e o Banco de Desenvolvimento Asiático (ADB) (Bradsher & Martin, 2008). Este fato foi paralelo ao equilíbrio entre oferta e demanda de alimentos que houve a partir do início dos anos 1980. De fato, de 1980 até 2001 houve redução lenta mas quase contínua no preço dos alimentos. Após o sucesso da "revolução verde" o Banco Mundial assumiu que a crise mundial de alimentos estava solucionada para sempre, reduzindo o interesse e o incentivo para investimentos em pesquisa pública.

Por exemplo, o IRRI (Instituto Internacional de Pesquisa em Arroz, sediado nas Filipinas), que recebe boa parte de seus recursos destes três organismos, teve redução drástica de seus recursos a partir das últimas décadas. Assim, resultados de pesquisas da década de 1980 que tinham identificado genótipos de arroz tolerantes as pragas ficaram engavetadas, enquanto hoje a Ásia enfrenta falta de arroz e insetos devoram as plantações desta cultura e ao mesmo tempo infectam as plantas com viroses que também prejudicam o rendimento de grãos. Os EUA reduziram 75% do seu orçamento de quase 60 milhões de dólares para pesquisa agrícola mundial (Bradsher & Martin, 2008). Como conseqüência no corte do orçamento, o IRRI que no final década de 1970 tinha 200 pesquisadores e ajudantes trabalhando com entomologia (estudo e manejo dos insetos) atualmente só possui 8 pessoas. Enquanto os insetos engordam, as pessoas fazem greve por falta de arroz no Egito, no Vietnã e no Haiti; ou por falta de milho no México. Novamente, a pesquisa brasileira está à altura do desafio que se apresenta, fato que será apresentado mais adiante neste artigo.

A terceira razão da escassez de alimentos no mundo é conseqüência dos enormes subsídios à agricultura de Europa e dos EUA. Atualmente nos EUA, cerca de 50 bilhões de dólares são gastos anualmente como subsídios para 1 milhão de agricultores (EWG, 2008). A agricultura dos EUA tem sido fortemente subsidiada nas últimas quatro décadas. Esta política permitiu a redução dos preços de alimentos, destacando trigo e milho no mercado mundial. Em economia este tipo de estratégia tem o termo técnico de "price dumping" ou derrubada de preços e sua prática, em geral, é condenada pois inviabiliza a competitividade. De fato, atualmente nos EUA 74% dos subsídios agrícolas são destinados para 10% das grandes empresas agrícolas (ver lista dos recipientes dos subsídios em 2007 em EWG, 2008). O subsídio agrícola nos EUA foi nefasto no próprio EUA, pois elevou o êxodo rural naquele país e reduziu drasticamente milhares de propriedades familiares de pequena área. A política de subsídios agrícolas tem sido acusada um dos principais fomentadores da baixa produtividade agrícola mundial, pois ao redor do mundo também foi inviabilizada a competitividade de agricultores mais carentes de recursos, como conseqüência do baixo preço pago aos produtos agrícolas não compensarem investir em tecnologia (UKFG, 2008).

A quarta causa da alta de preços se deve à redução de estoques de alimentos no mundo. Até a década de 1990, muitos países do mundo (principalmente na Europa, EUA e China) mantinham estoque de alimentos para situações de emergência ou para ajudar a regular os preços nacionais e controlar (ou manipular, como dizem os críticos) os preços mundiais. Com o advento da globalização, gradativamente as barreiras ao comércio mundial foram diminuindo e como havia um aparente superávit de alimentos, a necessidade de estoques reguladores foi desaparecendo, o que tem favorecido a elevação de preços recente.

Os quatro fatores descritos nos parágrafos anteriores retratam mudanças conjunturais que ocorreram no mundo e que possuem uma inércia muito grande, ou seja, são difíceis de serem corrigidas em curto prazo e devem continuar a pressionar o valor dos alimentos por pelo menos uma década (Trostle, 2008). Eles implicaram em aumento da demanda e alimentos sem o concomitante aumento na sua oferta e portanto foram as principais forças desencadeantes do aumento do preço dos alimentos que ocorreu a partir de 2001. Assim, já no início de 2004 os preços de alimentos estavam em níveis similares aos de 1980 (já descontados a inflação do dólar). Estes fatores ainda continuaram pressionando o valor dos alimentos até que 2006 novos fatores de alta surgiram no mundo.

Quinto motivo do incremento de preços: supervalorização do valor do petróleo a partir de 2006 e incentivo à produção de etanol pelo governo do EUA e dos paises Europeus. O atual valor do barril de petróleo está mais do que o dobro do que estava em 2006. Desde meados de 1999 houve elevação suave mas continuada do valor do petróleo, principalmente devido ao aumento do consumo ocasionado pela expansão industrial e econômica dos tigres asiáticos e da Índia. Por exemplo, Índia, China e outros paises da Ásia consumiam em 1995 apenas 2 milhões de toneladas de petróleo (ou 30% do consumo mundial na época) e em 2006 consumiam 6 milhões de toneladas (mais da metade do consumo mundial). Somente a China quintuplicou o seu consumo em 10 anos (Trostle, 2008).

Estas análises fizeram grandes potências mundiais perceberam que o preço do petróleo vai continuar a subir e procuraram no álcool uma alternativa para o combustível líquido para sua frota automotiva. Desde 2002, os EUA começaram um programa de subsídios para produção de álcool a partir do milho. Este programa se acentuou a partir de 2006, de forma que já em 2007 cerca de 10 milhões de hectares de milho (25% da área plantada com esta cultura) era utilizada para esta finalidade. Os 30 bilhões de litros de etanol produzidos nesta área só supriram 2% da necessidade de combustível dos EUA, mas favoreceu que muitos agricultores deixassem de produzir soja naquele país para produzir milho.

Na Europa a situação não foi muito diferente. A Europa é o maior produtor e consumidor de biodiesel, produzido principalmente a partir do óleo de canola. Os países da comunidade européia tinham assinado um protocolo de intenções com a previsão de que 10% de seu consumo de combustível em 2020 seria biodiesel. Para piorar a situação na Europa, como eles eram grandes importadores do milho dos EUA para alimentação animal. Como faltou milho para importar, o trigo produzido localmente começou a ser utilizado em substituição ao milho com conseqüente aumento de preços de ambos.

Sexta causa do aumento mundial de preço de alimentos: especulação no mercado financeiro. O mercado de futuros de produtos agrícolas é uma estratégia financeira de permitir aos agricultores se protegerem de reduções do preço dos seus produtos que normalmente ocorrem por ocasião das colheitas, época de super oferta de grãos. O cenário de aumento de preços dos alimentos descrito anteriormente foi previsto por alguns investidores no ano de 2006. Assim, houve forte movimento especulativo de dinheiro para os mercados futuro de alimentos como forma de garantir um lucro fácil. Com a crise das hipotecas nos EUA e a desvalorização do dólar, muitos capitalistas investiram no mercado futuro de grãos como forma de diversificar seus investimentos. O jornal mais conceituado na área econômica, o Wall Street Journal, relatou em 31/3/2008 que ao menos 40% das operações em mercados futuros de grãos foram realizadas por fundos altamente especulativos e não agricultores. Mais recursos "apostando" em elevados preços de grãos garantiu um efeito dominó para elevação destes valores (Reuters, 2008).

A sétima causa da elevação no preço dos grãos mundialmente decorre do fato de que aqueles países com superávit de divisas internacionais como China e os tigres asiáticos e os países da OPEP (exportadores de petróleo) estão garantindo o seu suprimento de grãos através de aquisições no mercado futuro de grãos. Com isto, a demanda de grãos também está elevada no mundo virtual, o que garante aumento dos preços no mundo virtual e também no mundo real.

O oitavo motivo do aumento de preços foi a redução na produção de alimentos devido aos períodos de seca prolongadas que ocorreram na Austrália em 2006, 2007 e 2008, na Rússia e na Ucrânia em 2006 e na África do Sul em 2006, no norte da Europa e no Canadá em 2007. Além disto, ocorreram geadas na florada das culturas nos EUA e na Argentina. Estes e outras "catástrofes" climáticas que ocorreram nos últimos dois anos limitaram seriamente a produção de alimentos no mundo. Com menor oferta de grãos e o excesso de demanda já relatada anteriormente, a conseqüência é a elevação de preços. Caso as previsões de aquecimento global e aumento da aridez do planeta se concretizem é provável que a seca continue a impor suas perdas na agricultura com efeitos nocivos para toda a humanidade.

Nono motivo da falta de alimentos no mundo e elevação no preço dos mesmos: proibição da exportação de alimentos (para não faltar internamente) como registradas na Argentina, Índia, China, Rússia, Ucrânia, Servia, Egito, Camboja, Vietnã e talvez Brasil. Temendo carência de alimentos para sua população, principalmente aquela de baixa renda, alguns países (Europa, Índia, Coréia, Tailândia, entre outros) reduziram as tarifas de importação de alguns alimentos como farinha de trigo, soja, grãos em geral e carne de porco. Para conter a inflação de alimentos, alguns países como Venezuela e Marrocos estão subsidiando os consumidores de alimentos, ou seja, importam grãos ao preço internacional e revendem aos consumidores a um preço mais compatível com a economia local. Outros países, como os EUA, estão racionando a venda de alimentos como o arroz para conter a carência de produto e evitar a inflação neste alimento. Tudo isto, mantém ou aumenta a demanda de grãos no mundo e a conseqüência, ... aumento do preço dos grãos!

Décima razão do aumento de preços dos alimentos: mais especulação financeira com a desvalorização do dólar e aumento dos preços do petróleo. Agora, a crise virou um círculo vicioso, nossa conhecida ciranda financeira. De fato, o petróleo é matéria prima de defensivos e fertilizantes e além disto é fonte de energia (diesel) para produção, processamento e transporte dos alimentos produzidos. Com o incremento de preços deste insumo fica mais caro produzir. Assim, os capitalistas mundiais especulam que os alimentos serão vendidos mais caros e, com isto, as bolsas de mercados futuros de produtos agrícolas prometem lucros compensadores. Os agricultores, por sua vez, investem nas lavouras e o aumento da demanda dos insumos eleva os preços dos mesmos e, assim, se elevam os custos de produção, tendo impacto no preço final dos grãos. E escalada continua...

Todos fatores descritos acima possuem uma inércia elevada de difícil reversão. Estima-se que a crise de preços dos alimentos ainda continuará por período prolongado, mesmo que sejam eliminados os subsídios à produção de etanol. Analistas internacionais prevêem que esta é a pior crise de alimentos dos últimos 50 anos e provavelmente será necessária uma década até que a crise de alimentos e suas causas sejam solucionadas (Trostle, 2008).



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Revista Plantio Direto, edição 106, julho/agosto de 2008. Aldeia Norte Editora, Passo Fundo, RS.

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