domingo, 2 de novembro de 2008

Tratado de Roma


Assinatura do Tratado de Roma


por Maria Izabel Mallmann

A trajetória da integração européia dos últimos cinqüenta anos demonstrou que as fronteiras políticas podem deixar de ser obstáculos intransponíveis para consecução dos ideais de progresso material e realização conjunta dos povos, em contraposição a séculos de embates sangrentos. A Europa que, no século XX, protagonizou duas guerras mundiais, encontrou, na segunda metade desse século, um modus vivendi que proscreveu a violência como forma de realização dos interesses nacionais e, desde então, inspira o mundo para a paz. Para tanto, foram decisivos episódios bélicos traumáticos capazes de fragilizar as lealdades nacionais e semear a aspiração por uma forma de convivência pacífica fundamentada em valores e objetivos comuns. Espera-se que tais episódios, fundamentais no caso da União Européia, não sejam incontornáveis, para o bem do restante do mundo que aspira a um ideal de paz e prosperidade semelhante.

O aprofundamento da integração européia é pontuado por quatro tratados constitutivos que ligam cinco décadas de negociações em prol da superação dos limites impostos pelas diferenças nacionais à paz duradoura e à prosperidade. Ao instituir a exploração conjunta do carvão e do aço, o tratado que institui a Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), de 1951, comprometeu mutuamente seis países europeus (França, Itália, República Federal da Alemanha, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo) de modo a, na melhor tradição funcionalista, promover interesses compartidos que minimizassem a possibilidade de guerra. A frustração da projetada Comunidade Européia de Defesa (CED) no início da década de 1950, que implicaria também na criação de uma Comunidade Política Européia expôs as resistências de então, sobretudo da França sob De Gaulle, a iniciativas que implicassem alienação de soberania. A integração setorial firmou-se como a via mais promissora face às resistências às estratégias federalistas. Pela via funcionalista, foi possível criar e desenvolver compromissos mútuos, arrefecer as resistências nacionalistas e projetar nas sociedades a idéia de uma Europa unificada.

Persistir apesar das oposições e obstáculos parece ter sido a marca fundamental da trajetória da União Européia desde seus primórdios, até porque havia crescente consenso quanto à idéia de que as possíveis alternativas ao projeto de integração não assegurariam a paz recém conquistada. Assim, em 1957, dois novos tratados foram firmados. Um, instituindo a Comunidade Européia de Energia Atômica (EURATOM) e outro, a Comunidade Econômica Européia (CEE). Esta, propunha o estabelecimento de uma união aduaneira no prazo de doze anos. Apesar dessas novas frentes de integração estarem conforme o espírito funcionalista de integração setorial, foram tomadas precauções adicionais, como a formação prévia das opiniões dos públicos concernidos e o estabelecimento de mecanismos intergovernamentais de controle, para evitar resistências nacionais.

Gradualmente e não sem dificuldades, a integração européia tanto foi aprofundada quanto alargada de acordo com o que fora acordado pela Conferência de Cúpula de Haia, realizada em 1969. Após longo período de dificuldades, estabeleceu-se, naquela ocasião, as metas de atingir a união econômica e monetária, a união política e de obter a adesão de novos membros à comunidade. Desde então, o alargamento abriu espaço para mais vinte e seis países (Dinamarca, Reino Unido, Irlanda, Grécia, Espanha, Portugal, Áustria, Finlândia, Suécia, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, República Eslovaca, Eslovênia, República Checa, Hungria, Malta, Chipre, Bulgária e Romênia), doze dos quais ingressaram após o fim da Guerra Fria, de acordo com a estratégia de evitar que países ex-socialistas passassem a outra esfera de influência que não a européia.

Quando, em 1992, é firmado o Tratado da União Européia que consolida os avanços obtidos, adapta o bloco às transformações internacionais do pós Guerra Fria e encaminha seu aprofundamento, os obstáculos iniciais haviam sido superados e novos desafios colocavam-se ao seguimento do empreendimento europeu, advindos tanto da velocidade do processo, do caráter dos avanços operados quanto das diferenças introduzidas pelo alargamento do bloco que, apesar de reunir países com profundas diferenças quanto à cultura, à língua e às tradições, os fez aderir a um mesmo modelo econômico e a valores da democracia liberal e do estado de direito. Mesmo assim, os novos membros introduzem questões econômicas, sociais e financeiras até então desconhecidas e para cuja solução as instituições deverão ser adequadas e montantes consideráveis de recursos destinados. Tanta diferença torna todos os processos decisórios mais complexos e sua celeridade introduz, no seio da própria União, temores quanto a desdobramentos futuros e renova insatisfações em relação à burocratização e à precária participação dos cidadãos nos processos decisórios, o chamado déficit democrático. Os últimos avanços da integração européia tanto de aprofundamento do processo quanto de alargamento requerem um tempo para maturação de modo a que as sociedades assimilem os impactos e respondam positivamente às diferenças introduzidas, de forma a reverter o estado de ânimo político observado atualmente que tem resultado em absenteísmo eleitoral e na resistência em corroborar novos passos rumo à consolidação das instituições européias.

A construção européia longe de ser um processo tranqüilo foi marcada por muitas e graves dificuldades, que poderiam questionar sua viabilidade. Basta lembrar, nesse sentido, os longos anos de governo gaullista na França que interpôs enormes obstáculos ao avanço comunitário logo em seus primeiros anos, devidos tanto ao nacionalismo quanto a animosidades em relação ao Reino Unido. Outro exemplo é a crise desencadeada pelas controvérsias entre os membros sobre o financiamento das políticas e estruturas européias e sobre o controle parlamentar sobre as decisões. Da mesma forma, as crises externas perturbaram fortemente o processo. No entanto, ao sair desses embates, a potência Europa aparece, aos olhos do mundo, mais fortalecida e, face às dificuldades, os avanços revestem-se de maior importância.

As conquistas desse processo são inestimáveis, para a Europa e para a humanidade. A demonstração cabal de que chegamos a um tempo em que é possível realizar os interesses nacionais pela via da cooperação constitui um passo decisivo rumo à realização dos ideais de paz que animaram os debates sobre a construção da Europa desde tempos pretéritos. A União Européia representa hoje um modelo de relações internacionais eminentemente pacíficas, fruto de muitas guerras e de um enorme esforço de cooperação que rivaliza com outro modus operandi em de relações internacionais, amplamente vigente, que valoriza o uso da força na resolução das controvérsias. Resta avaliar as chances que a grande maioria dos povos tem para escolher entre uma e outra via.

Maria Izabel Mallmann é Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS (izabel.mallmann@pucrs.br).

http://meridiano47.info/2007/05/05/tratado-de-roma-50-anos/#more-194

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