quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Separatismo na Geórgia: Considerações Geopolíticas e Etnicidades



por Adalgisa Bozi Soares


Desde o fim da União Soviética, a Geórgia tem sido palco de conflitos separatistas, principalmente nas regiões da Ossétia do Sul e da Abkázia. À primeira vista, a situação entre essas regiões e a Geórgia poderia ser vista como um conflito intraestatal resultante dos princípios às vezes antagônicos da auto-determinação dos povos e da soberania estatal. No entanto, o apoio da Rússia às duas das regiões separatistas demonstra a grande importância geopolítica e estratégica da questão. Dada a complexidade da situação, uma abordagem sistêmica deve ser complementada com outros elementos, entre eles a animosidade entre as diversas etnias.

Breve história do conflito
A desintegração da União Soviética desencadeou a crise no Cáucaso. Em 1992, a população da Ossétia do Sul manifestou, por meio de um referendo, o desejo de separação em relação à Geórgia e integração à Federação Russa, para que pudesse se unir à Ossétia do Norte. O referendo não foi reconhecido pela Geórgia, que respondeu com uma invasão militar à província. O cessar fogo foi assinado, e uma série de protocolos adicionais criaram a Comissão de Controle Conjunta (Joint Control Comission - JCC), formada pela Geórgia, Rússia e Ossétias no Norte e do Sul, observada pela Organização para Segurança e Cooperação da Europa (OSCE), além da Força Conjunta de Peacekeeping, com unidades russas, ossetianas e georgianas. Desde então, o envolvimento da Rússia na região tem sido crescente, indo desde auxílio econômico até emissão de passaportes russos aos habitantes da Ossétia do Sul.
O desenvolvimento da situação da Abkásia foi um pouco distinto. A princípio, a Abkásia propôs o arranjo de federação ou confederação em relação à Geórgia, proposta esta que foi ignorada pelo governo georgiano. As tentativas de obter maiores liberdades em relação ao governo da Geórgia não cessaram, até que, em 1992, tropas da Geórgia atacaram a Abkásia. Durante o processo de reconquista da região abkaz foi promovida uma verdadeira limpeza étnica em relação aos georgianos, de forma que os abkazes, até então minoria na região, passaram a ser maioria. Para a observação do cessar fogo, assinado em 1994, foram criadas uma força de Peacekeeping da Comunidade dos estados Independentes e a Missão de Observadores Militares das Nações Unidas na Geórgia, a UNOMIG.


Embora diferentes, as situações se assemelham principalmente no que tange o envolvimento russo. Durante o período mais violento dos conflitos, no início da década de 90, a participação da Rússia foi velada, embora não fosse propriamente um segredo. Na Abkásia, que possui uma indústria turística bem desenvolvida e instituições democráticas desenvolvidas, a Rússia tem servido de apoio para a manutenção da separação, na prática, em relação à Geórgia. Na Ossétia do Sul, a intervenção Russa é mais direta, principalmente porque, para a região, a independência em relação à Geórgia significaria a integração à Rússia, por meio da unificação com a Ossétia do Norte.
Com a abertura do precedente legal para o reconhecimento de regiões separatistas, após o caso do Kosovo, a Rússia tem reforçado a necessidade de reconhecimento da independência das duas regiões, inclusive estabelecendo laços jurídicos com a Abkásia e a Ossétia do Sul, o que causou protestos do governo de Tbilisi.

Geopolítica e estratégia russa
O fim da Guerra Fria representou uma grande ruptura com o sistema que parecia consolidado por grande parte do século XX. Durante esse longo período, os anseios separatistas das regiões da Geórgia permaneceram congelados. A principal característica do sistema na época, a existência de duas superpotências em equilíbrio militar, contribuiu para que essa situação assim se mantivesse. Em decorrência de tal equilíbrio, as duas superpotências enfrentavam-se indiretamente. Um conflito separatista no seio da URSS poderia ser a brecha para um enfrentamento direto entre os dois sistemas existentes, o que explica, de certa forma, o congelamento dos conflitos separatistas durante a Guerra Fria.
Com a mudança do sistema internacional no início da década de 90, ou seja, com o desaparecimento da superpotência do Leste, a esfera de influência da Rússia foi ficando cada vez menor, o que desencadeou ações russas para reverter esse quadro. A medida em que a influência russa diminuía no território georgiano, a Rússia foi aumentando sua participação nos conflitos separatistas da Abkásia e na Ossétia do Sul. Após 2003, o ano que marcou a guinada em direção ao Ocidente na Geórgia, com a Revolução da Rosa, as relações entre Geórgia e Rússia têm se deteriorado rapidamente.
Tal situação se insere em um contexto mais amplo de questionamento, por parte da Rússia, de sua posição no sistema. Se considerarmos que tal posição é determinada pela distribuição de capacidades materiais, é compreensível a posição contestadora russa. O país tem uma das maiores forças militares do globo, sua economia se recuperou do fim da União soviética, o país possui abundante recursos minerais. Esses fatores, em associação à posição privilegiada dentro do Conselho de Segurança das Nações Unidas, fazem com que a Rússia acredite que não pode ser ignorada em sua política externa.
No entanto, todos esses fatores não têm sido suficientes para manter sua esfera de influência, que se esvaziou de forma significativa na última década e meia. Dessa forma, a orientação pró-ocidental da Geórgia tem incomodado muito o Kremlin. As ações da Rússia na Abkásia e na Ossétia do Sul podem ter duas razões. A primeira delas seria a tentativa de mostrar à Geórgia que a governabilidade do pequeno país, sem o apoio russo, é improvável ou mesmo impossível, uma vez que o apoio que a Geórgia tem recebido dos EUA não tem sido suficiente para a sua estabilização, até mesmo por razões geográficas. A outra opção da Geórgia à Rússia, a União Européia, não parece disposta a indispor-se com a Rússia pela questão georgiana. Uma outra razão para o apoio aos separatismos seria a garantia nessas áreas da influência Russa. Embora o esforço no sentido de manter toda a Geórgia sob influência russa pareça prioritário, caso isso não aconteça seria importante estrategicamente para Moscou manter áreas fiéis ao Kremlin no Cáucaso, principalmente pelo apoio que essas regiões podem fornecer na estabilização do Cáucaso Russo.

Etnicidade e Construção Social
Uma explicação em termos de distribuição de capacidades materiais e manutenção de esfera de influência podem explicar a atuação de alguns atores, como a Rússia. No entanto, a dimensão local do conflito parece melhor explicada pelas diferentes percepções entre Georgianos, Ossetianos e Abkases. Tanto os ossetianos como os abkazes se valem do argumento étnico para reivindicar a independência. No entanto, não existe nada de natural no argumento de que, por serem de etnias distintas, as regiões têm que se separar. Na verdade, sequer o conceito de etnia em uma região como essa, marcada por fluxos migratórios e diásporas, tem algo de biológico, mas deve ser entendido como uma construção social. Nas situações aqui analisadas, ao contrário de outras regiões separatistas, o aspecto religioso não é o grande constituinte dessa diferença. No caso da Ossétia do Sul, a identificação com os ossetianos do norte é essencial para a diferenciação em relação os georgianos. No caso dos abkazes, o poder econômico e político independentes da Geórgia constituem em grande parte essa diferença. Esses fatores, aliados a narrativas históricas diferentes, costumes, cultura e línguas distintas fazem com que os ossetianos e os abkazes não se sintam parte do território georgiano.
No entanto, apenas essas diferenças não são suficientes para impedir a convivência dos três grupos sob a mesma soberania. Tensões étnicas existiram por muito tempo nessas regiões, mas os eventos violentos do início da década de noventa tiveram grande papel na internalização da idéia, por parte de todos os atores, de que a convivência pacífica, sob a mesma soberania, é impossível. Com a internalização da idéia de que as etnias deveriam ser separadas para que pudessem sobreviver, as rivalidades entre elas passaram a ser compreendidas como um dado daqueles sistemas de interação, ou seja, ao mesmo tempo em que essa idéia foi construída socialmente, ela passou a reforçar a situação de animosidade existente e a contribuir para as conseqüências violentas dos eventos.


Conclusão
Considerado a falta de apoio internacional à independência da Ossétia do Sul e da Abkásia, é pouco provável que Rússia vá além do apoio à separação de facto, como vem fazendo nos últimos anos. Mesmo que a Rússia não avance no sentido de promover o reconhecimento dessas regiões, um movimento contrário, no sentido de uma maior integração com a Geórgia tampouco é esperado, principalmente em razão das construções sociais aqui apontadas.
A instabilidade interna da Geórgia pode ser um convite a uma tentativa russa de retomada de influência sobre o país. A reeleição do presidente que assumiu após a Revolução da Rosa foi rodeada de incertezas e denúncias de fraude, o que pode significar sérios abalos em seu apoio. Aproximam-se ainda as eleições parlamentares, e a desestabilização do atual governo pode abrir portas à ingerência russa nos assuntos internos da Geórgia. Caso tal movimento aconteça, certamente será dificultado pelo apoio que os Estados Unidos têm prestado a esse governo. Dessa forma, entre a tentativa de manutenção da esfera de poder da Rússia, a orientação ocidental do governo georgiano e as aspirações de independência da Ossétia do Sul e Abkásia, é pouco provável que a situação sofra modificações substantivas nos próximos meses.

Adalgisa Bozi Soares é Membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília - PET-REL e do Laboratório de Análise em Relações Internacionais - LARI (luluzinha_br@hotmail.com).

http://meridiano47.info/2008/04/30/separatismo-na-georgia-consideracoes-geopoliticas-e-etnicidades-por-adalgisa-bozi-soares/#more-298

Petróleo: a manutenção da importância geoeconômica



por Virgílio Arraes


Em 1999, John McCain, em sua primeira disputa no Partido Republicano para ser o candidato a Presidente, havia sido favorável à interrupção de novas prospecções petrolíferas ao longo da costa norte-americana ao menos até 2012. Em 2008, contudo, ele alterou o seu posicionamento, sendo favorável à imediata retomada da exploração, sob a justificativa de que ela auxiliaria a estabilizar, no curto prazo, o abastecimento energético. Desta forma, a cotação poderia situar-se em patamar inferior à atual, com resultado positivo sobre a economia nacional.
No entanto, caso houvesse o fim da suspensão a partir, por exemplo, de 2009, a produção materializar-se-ia apenas em 2014 - estima-se que as reservas marítimas estejam próximas de 20 bilhões de barris. Atualmente, os Estados Unidos consomem quase 21 milhões de barris diários, o que representa ¼ do total, embora os estoques do país correspondam a meros 3% do mundo inteiro.
A despeito da instabilidade política e econômica, ocasionada pela disputa para obtenção regular de petróleo e gás, os republicanos não parecem dispostos a investir maciçamente no desenvolvimento de novas matrizes energéticas. Conquanto no início de seu segundo mandato Bush tenha enfatizado a importância da energia renovável, na prática, a Casa Branca concedeu poucas verbas para pesquisas.
De imediato, apenas medidas protecionistas, a fim de resguardar o biocombustível, no caso extraído majoritariamente do milho. Sabe-se que este tipo de etanol está impossibilitado de concorrer com o da cana-de-açúcar em termos de aproveitamento energético. No entanto, ao ser produzido maciçamente no centro-oeste do país, região conhecida por seu conservadorismo político, os republicanos sentem-se à vontade para resguardá-lo.
John McCain pertence politicamente à ala que se opõe a destinar parte dos impostos do setor petrolífero para pesquisar fontes energéticas renováveis e menos poluentes. Assim, a fixação na energia de origem fóssil perdurará bastante.
A questão deste tipo de combustível tornou-se mais complexa recentemente porque há uma presença significativa de empresas estatais. Até o início dos anos 70, as grandes companhias ocidentais controlavam cerca de 80% das jazidas de petróleo e de gás, enquanto hoje mal passam de 10%. Contribuíram para o presente quadro o posicionamento da Rússia e da Venezuela. Assim, 15 das 25 maiores empresas do ramo são, ao menos parcialmente, estatais.
A mudança da composição administrativa já implica considerações de ordem geoeconômica em um grau observado apenas quando do Primeiro Choque do Petróleo em 1973: o quarto fornecedor dos Estados Unidos é a Venezuela, o que deixa o Departamento de Defesa, por meio do Comando do Sul, alarmado com as iniciativas políticas do Presidente Hugo Chávez. Desde 2005, uma subsidiária da PDVSA, a Citgo, comercializa o óleo de aquecimento a preços menores em algumas localidades carentes norte-americanas.
Além do mais, a África, considerada por Washington como uma alternativa relevante ao Oriente Médio, recebe cada vez mais a atenção da China, desassossegada na busca de matérias-primas com o objetivo de manter o ritmo de seu crescimento. Na encarniçada disputa por recursos energéticos, endereçam-se lamentavelmente direitos humanos e referências democráticas para um plano secundário.
No inicio do ano passado, o governo chinês vetou uma resolução do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas sobre a União de Mianmar, país detentor de gigantescas reservas de gás natural e com o qual Pequim estreita-se comercialmente. Na Ásia Central, o Casaquistão, farto em petróleo, é o exemplo de um país transformado em um regime, onde a presidência é, de fato, vitalícia, sob o férreo comando de Nursultan Nazarbayev. No relacionamento diplomático russo-ucraniano, o fornecimento de gás é um elemento-chave, sendo a maneira de Moscou influenciar os rumos políticos de Kiev.
Ainda assim, destaque-se que não se pode menosprezar a força das companhias privadas no setor energético, ainda mais após os recentes e robustos aumentos do petróleo, originados simultaneamente do rumo desastrado da II Guerra do Golfo e do crescimento econômico indo-chinês.
Deste modo, a presença das corporações petrolíferas se confirma no cenário, em muitas ocasiões, por meio da transferência de conhecimento ou do estabelecimento de parcerias. Vários países estatizantes não dispõem por si mesmos de condições - tecnológicas ou econômicas - suficientes para uma exploração adequada de seus recursos naturais, por onde se diminua o desperdício e se minimizem os danos ambientais, como é o caso do próprio Cazaquistão.

Virgílio Arraes é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (arraes@unb.br).
http://meridiano47.info/2008/07/02/petroleo-a-manutencao-da-importancia-geoeconomica-por-virgilio-arraes/#more-349

Conflito em Darfur: das Motivações Internas à Reação Internacional

Foto de Sebastião Salgado

por Evandro Farid Zago

O dia 26 de fevereiro de 2003 é tido como ponto inicial do conflito presenciado, atualmente, na região de Darfur, província localizada no oeste do Sudão. A data ficou marcada como o dia do primeiro ataque de rebeldes darfurianos contra o governo central sudanês, sediado na capital Cartum. Na ocasião, o grupo Darfur Liberation Front (DLF) promoveu uma ofensiva contra o distrito de Jebel Marra. Nos meses seguintes, o DLF passaria a se denominar Sudan Liberation Army/Movement (SLA/M), maior contingente rebelde do país. Além disso, desavenças locais evoluiriam para o que se afirma ser a maior crise humanitária da atualidade.
A presente análise de conjuntura tem o objetivo de relacionar a recente aprovação, pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, do envio maciço de tropas para o oeste sudanês com a complexa genealogia do conflito. Para isso, num primeiro momento, os fatores internos que levaram à eclosão dos embates serão expostos. Em seguida, os acontecimentos mais recentes relacionados a Darfur servirão como base para a contextualização global dos fatos. Por fim, será apresentada uma conclusão abordando um possível desenlace da atual conjuntura.
As verdadeiras motivações para o conflito em Darfur localizam-se, temporalmente, décadas antes de fevereiro de 2003. Atritos que se refletiram em violência física apenas no século XXI tiveram início em meados do século XX, quando da independência do Sudão em relação à Inglaterra e ao Egito, em 1956. Ainda nesse ano, o governo do país foi ocupado por elites da região do Vale do Nilo. Assim, o que se presenciou nas décadas seguintes foi uma seqüência praticamente ininterrupta de gerações de governantes que se punham à frente do país exercendo o poder de maneira diferenciada em relação às diversas regiões do Sudão. Os recursos nacionais eram destinados, em especial, à zona central da nação, deixando, principalmente, o sul e o oeste desfavorecidos. Políticas governamentais que se recusavam a enxergar o país como um todo único e semelhante fizeram com que o desenvolvimento de suas diversas regiões fosse desigual. O passar dos anos mostrou para a população sudanesa que os homens que ocupavam o poder central tendiam a beneficiar sua própria região. Dessa forma, grupos contrários a essa tendência começaram a surgir, em especial nos locais para os quais menos atenção federal era despendida. Chega-se, assim, à principal motivação para a crise que viria a eclodir em Darfur: levantes ocorreram como protesto contra políticas governamentais diferenciadas.
Há, no entanto, uma grande tendência por parte dos estudiosos do caso darfuriano em afirmar que os embates vividos na região teriam também intensos estímulos de ordem étnica. É recorrente a visão de que o conflito representa uma luta entre árabes e africanos. Deve-se, todavia, analisar de forma menos simplista e mais profunda essa linha de interpretação.
Em primeiro lugar, se os atritos em Darfur podem ser compreendidos sob um ponto de vista “racial”, deve-se ter em mente que o uso de denominações, tais como “árabe” e “africano”, não se aplica, de maneira aceitável, ao caso sudanês. A região é composta por dezenas de grupos sociais descendentes de antigas tribos que habitavam o Chifre da África. Dividir tais grupos em duas categorias é uma atitude equivocada. Características, como língua falada e religião seguida por cada um, têm sido encaradas, de maneira errônea, como dados exatos e suficientes para se classificar os sudaneses em grupos de diferentes etnias.
Expostos esclarecimentos de cunho antropológico, pode-se analisar melhor a realidade dos atritos vividos no Sudão. Na prática existem, atualmente, reais conflitos entre o que seriam “etnias” sudanesas. A própria população do país sente-se dividida entre “africanos” e “árabes”. Visto, como supracitado, que, apenas culturalmente, essa diferença não pode ser comprovada, há de se buscar outra razão para as “desavenças étnicas” enfrentadas entre sudaneses.
O motivo pelo qual se encara Darfur e Sudão central de maneira etnicamente diversa pode ser encontrado na forma por meio da qual o governo sudanês decidiu combater os rebeldes darfurianos. Assim que os levantes iniciaram-se no oeste do país, Cartum percebeu que seria impossível enfrentá-los apenas fazendo uso das Forças Armadas nacionais. Os rebelados eram mais numerosos e melhor preparados e conseguiriam resistir às investidas do exército. Dessa forma, a solução encontrada para o problema foi fazer uso de forças paramilitares no combate dos grupos rebeldes de Darfur. O governo forneceu, então, equipamentos e artilharia para uma milícia denominada “Janjaweed”.
Os Janjaweed foram formados, essencialmente, por membros de antigos grupos tribais de língua árabe. O passo seguinte, tendo por objetivo uma maior efetividade no combate aos rebeldes, foi a inculcação do ódio racial entre os grupos opostos. Os Janjaweed, apoiados pelo governo, passaram a ser vistos como “árabes” que lutavam contra os “africanos” de Darfur. Diferenças culturais relativamente sutis foram exploradas e potencializadas pelo governo de Cartum visando ao aumento da rivalidade entre ambos. Reflexo dessa tendência é o costume presenciado, durante a contra-insurgência governamental, nas atitudes da milícia, que ataca, normalmente, povoados “não-árabes”, deixando intactos aqueles pertencentes a sua própria “etnia”.
Portanto, pode-se concluir que diferenças étnicas fazem, realmente, parte da dinâmica do conflito que se desenvolveu no Sudão. Todavia, emulações desse tipo não foram fundamentais para sua eclosão. Elas serviram mais como instrumentos intensificadores do que criadores de divergências. O oeste marginalizado opondo-se ao governo central é o verdadeiro motivo pelo qual grupos darfurianos levantaram-se contra Cartum. A divergência étnica foi algo que ganhou destaque durante a contra-insurgência. Diferenças culturais que já existiam, mas eram toleradas, ganharam visibilidade e passaram a integrar o contexto no qual se davam os confrontos.
Os últimos meses trouxeram consigo diversos fatos relevantes no que toca à crise de Darfur. Três deles são dignos de maior destaque.
Em maio deste ano foi assinado um acordo de paz entre Chade e Sudão. Os dois países estavam em conflito desde o início dos ataques a rebelados darfurianos. O maior ponto de atrito era a constante invasão de solo chadiano, pela milícia Janjaweed, durante suas investidas contra refugiados de Darfur no Chade. O governo do país vizinho havia se declarado, em abril de 2004, hostil ao Sudão, devido aos crimes praticados por Cartum em território alheio. O acordo é uma mostra da melhora dos relacionamentos regionais, beneficiando ambas as partes.
O segundo fato importante foi o retorno de 75 mil refugiados sudaneses para a região de Darfur. Eles cruzaram a fronteira do Chade e do Níger com o Sudão na primeira quinzena de julho deste ano, sendo realocados em vilarejos abandonados durante confrontos entre os lados opostos do conflito. Esse retorno maciço de refugiados darfurianos é um indício do abrandamento dos embates, já tornando possível realojar pessoas em Darfur.
O último, e mais importante, fato a ser destacado foi a aprovação, por parte do Conselho de Segurança das Nações Unidas, no dia 31 de julho, de uma resolução prevendo o envio de uma missão de paz híbrida para Darfur. A chamada “United Nations African Union Mission in Darfur” (UNAMID) terá suas atividades iniciadas em 31 de dezembro de 2007 e será composta por 26 mil soldados, sendo gerida, em conjunto, pela ONU e pela União Africana (UA).
O governo sudanês aceitou a decisão do Conselho, mas impôs uma exigência: o contingente da missão deve ser unicamente de soldados africanos. Esse se tornou um ponto controverso nas últimas discussões acerca da missão híbrida. A defesa em relação a Cartum atenta para o fato de que um grupo totalmente africano conferiria maior legitimidade à missão de paz. Além disso, haveria a intensificação da política de africanização dos processos pacificadores, respeitando uma tendência que vem se reforçando nos últimos anos.
Por outro lado, a exigência do governo sudanês fornece bases para um julgamento menos otimista. É possível interpretar a manobra como uma estratégia diplomática para conseguir maior poder sobre a UNAMID. Um corpo militar formado apenas por africanos seria mais passível de controle pelo governo do Sudão do que tropas contendo membros de outros continentes. Segundo a ONG Human Rights Watch e diversos especialistas na área, o Conselho de Segurança não deve permitir que Cartum faça qualquer exigência acerca da formação e da gerência das tropas.
A crise humanitária que se desenrolou em Darfur é mostra da complexidade da sociedade sudanesa. Anos de políticas governamentais diferenciadas aliaram-se à potencialização de “disparidades étnicas” para dar origem a um conflito que chama atenção por sua intensidade e abrangência. Toda região do Chifre da África foi mobilizada e o mesmo ocorreu com a comunidade internacional de modo geral.
A aprovação da criação da UNAMID mostra como a reação global às atrocidades cometidas no confronto Janjaweed versus grupos rebeldes está sendo efetiva. O esforço híbrido para pacificação será posto em prática no início de 2008, tornando-se a maior missão de paz em exercício atualmente.
O estabelecimento da UNAMID, associado ao tratado de paz entre Chade e Sudão e ao retorno de refugiados a Darfur apontam para um futuro menos violento no oeste sudanês. Dado o tamanho e o poder da missão, é provável que esta alcance resultados positivos futuramente. O fato de refugiados iniciarem seu retorno e agressões em relação a um país vizinho cessarem também são pontos a favor de um horizonte menos pessimista com relação a Darfur.
Contudo, deve-se estar atento ao fato de que entre a aprovação da citada resolução pelo Conselho e sua implementação prática algum tempo terá decorrido. Serão, exatamente, cinco meses: de 31 de julho a 31 de dezembro deste ano. Dado o grau de calamidade em que o oeste sudanês encontra-se, janeiro de 2008 pode ser uma data longínqua o suficiente para a ocorrência de mais dezenas de milhares de mortes entre darfurianos. O curto prazo, dessa forma, mostra-se pessimista.
A provável confirmação da composição totalmente africana das tropas, como exigido por Cartum, também pode contribuir negativamente para o quadro. Como já abordado, o governo do Sudão exerceria mais controle sobre um contingente totalmente originário da África, aumentando o grau de politização da missão de paz.
A UNAMID, tomada isoladamente, é fator que aponta para um cenário positivo. Todavia, a demora para sua efetiva implementação, aliada a sua provável politização, vão contra uma onda de otimismo que a comunidade internacional finalmente havia presenciado no que diz respeito à crise em Darfur.

Evandro Farid Zago é Membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília - PET-REL e do Laboratório de Análise em Relações Internacionais – LARI (evandrofz@yahoo.com.br).
http://meridiano47.info/2007/09/18/conflito-em-darfur-das-motivacoes-internas-a-reacao-internacional/#more-206

Quênia: crise política, rivalidades étnicas e o problema do Estado-Nação




por Márcio Santos de Santana

O continente africano sempre foi palco de preocupantes experiências históricas, uma vez que a violência tem sido elemento constantemente usado nos processos políticos. O cenário revela uma tendência crescente de anomia social, salvo alguns países específicos. Senão vejamos. Os governos eleitos têm se mostrados incapazes de controlar problemas como a pobreza, a corrupção, as epidemias e, sobretudo, as rivalidades étnicas. Além disso, a falta de cultura democrática agrava o já caótico quadro. As diferentes nações africanas enfrentam esses problemas em diferentes níveis de gravidade. A crise política e humanitária que abala a República do Quênia é o mais recente capítulo de uma história conturbada e complexa.
Alvo da colonização predatória de potências européias desde o século XVI, teve sua divisão oficializada pela Conferência de Berlim (1885), que transformou a região em protetorado britânico, após um período de dominação lusitana - ocorrida entre o final do século XVI e o ano de 1729, esta basicamente restrita ao controle do litoral - e de anexação aos domínios dos sultões de Omã.
O processo de independência do país, bem como das demais nações africanas, está diretamente relacionado com o fenômeno histórico conhecido por Descolonização - iniciado pela Conferência de Brazzaville (1944) -, categoria contestada por alguns analistas como sendo excessivamente eurocêntrica. Foi no período entreguerras que ocorreu a virada na conjuntura internacional que possibilitou as lutas de libertação nacional. Nesse período Reino Unido, França, Holanda, Itália, Bélgica, Espanha e Portugal ainda mantinham possessões no continente africano. Basicamente três fatores conduziram ao processo de independência: (a) impossibilidade econômica e militar das metrópoles manterem o domínio sobre seus protetorados, efeito residual da Primeira Guerra Mundial e da Crise de 1929; (b) o capitalismo, em sua configuração financeira, não demandava mais a posse de impérios coloniais e, finalmente, (c) as relações internacionais eram dinamizadas pelo princípio da autodeterminação dos povos, tal como ratificado pela Conferência de Bandung (1955).
No caso queniano o processo de independência seguiu rumos conturbados. Membros do grupo étnico kikuyu (majoritário), revoltados com a perda de suas terras, lideraram a rebelião dos Mau Mau (1952-56), sociedade secreta que lutava contra a dominação estrangeira. Malgrado a repressão violenta, os britânicos consentiram na formação de um legislativo local em 1957, sendo este evento um passo importante na conquista da independência, esta alcançada somente em 1963.
Jomo Kenyatta, o mais importante líder da etnia Kikuyu, foi eleito o primeiro presidente do Quênia. A trajetória política deste líder fora construída na luta pela libertação nacional. Acusado de envolvimento com os Mau Mau enfrentara dois anos de prisão. Sua militância, no entanto, era mais antiga, pois na década de 1940 havia participado da fundação da Federação Pan-Africana, juntamente com Hastings Banda e Kwame Nkrumah, posteriormente também eleitos presidentes do Malawi e de Gana respectivamente. Kenyatta governou até 1978, quando de seu falecimento, sendo substituído pelo vice-presidente Daniel Arap Moi, eleito presidente dois meses depois numa eleição de candidato único.
A gestão de Arap Moi foi caótica, fruto das práticas políticas antidemocráticas adotadas pelo novo presidente. As reeleições conquistadas pelo titular da presidência - em 1983, 1988, 1993 e 1997 - foram alvos de críticas e suspeitas de fraudes. A atuação política da oposição foi sistematicamente sufocada e o governo nem mesmo se preocupava em disfarçar a ditadura. No entanto, a oposição não primava pela lisura democrática. Em 1982, por exemplo, opositores do presidente promoveram um violento e fracassado golpe de Estado, culminando na prisão de várias lideranças.
As respostas do Executivo não tardaram. O golpe deu o álibi necessário para a aprovação de medidas de força que beneficiariam o presidente Arap Moi, agraciado pela Assembléia Nacional com a instituição do monopartidarismo. A conjuntura que se seguiu foi marcada pela censura e perseguição aos opositores do regime. Reeleito em 1983, implementou uma reforma constitucional em 1986 forneceu os mecanismos que o ditador precisava: controle pessoal do presidente sobre o funcionalismo público e a prerrogativa de demissão de juízes, cerceando a liberdade de ação desse poder da república. Sem divisão de poderes não há democracia, como bem sabemos desde Montesquieu.
A escalada autocrática teve prosseguimento com a reeleição de 1988. Contudo, em 1990, um grupo de intelectuais, advogados e membros do clero uniram forças numa pressão por redemocratização do Quênia. Os opositores exigiam a legalização do pluripartidarismo. Prisões e assassinatos foram os reparos feitos pelo regime. No entanto, a conjuntura internacional era outra. O Muro de Berlim fora derrubado, a Alemanha estava em processo de reunificação, o fim da História havia sido proclamado por Fukuyama. As pressões ocidentais, inclusive com cortes de ajuda financeira, surtiram efeito e as reformas de caráter democrático foram realizadas, retornando o pluripartidarismo.
O ano de 1992 foi pautado por manifestações, distúrbios de rua e greves. Apesar da existência de concorrentes nas eleições, Arap Moi foi reeleito para seu quarto mandato em 1993, numa eleição marcada por denúncias de fraude nos resultados. A reação presidencial foi fechar o Parlamento num ato de recrudescimento da autocracia. A oposição permaneceu cerceada em suas atividades política por todo aquele ano, acusando o governo de incitar a violência étnica e creditar sua ocorrência ao regime partidário plural, de modo que este parecesse incapaz de garantir a ordem. Mesmo com todas as atribulações o presidente ainda seria reeleito em 1997 para seu último mandato, um ponto de inflexão na questão do acirramento étnico. O presidente realizou uma gestão considerada corrupta e antidemocrática. Contudo, o que acirrou as tensões foi o fato de que pessoas do grupo étnico Kalenjin (12% da população) receberam a imensa maioria dos cargos no Governo e nas Empresas Estatais, situação que desagradou os Kikuyu (22%) e os Luhya (14%). As rivalidades políticas e as disputas pelo poder haviam recebido um aporte de revanchismo étnico que somente agravava a situação.
Nas eleições de 2003 o governo não foi capaz de fazer seu sucessor. Com mais de 60% dos votos válidos, o opositor e ex-Vice-Presidente Mwai Kibaki sagrou-se o novo titular do Poder Executivo do Quênia. Aparentemente o país entrava em tempos de renovação, pois o KANU deixava o poder após quatro décadas de dominação plena. Além disso, a tranqüilidade com que foi realizado o processo eleitoral foi alvo de elogios por parte da opinião pública internacional. A euforia do período levou alguns analistas e jornalistas a qualificarem o evento como “revolução de veludo”, para ressaltar a imensidão das transformações conquistas por meios pacíficos.
O novo governo apresentou projetos de combate à corrupção logo no início do mandato, mas, dois anos depois, em fevereiro de 2005, a equipe de gestão sofreu uma reforma por conta de suspeitas de corrupção em casos de concorrências suspeitas, tornadas públicas pelo Alto Comissário britânico. Ironia da história.
A situação política e social do Quênia é condicionada pelo não surgimento de uma Identidade Nacional com penetração entre os habitantes do país, bem como pelo fato de que suas forças políticas não conseguiram encontrar um denominador comum, uma base comum de ideais capazes de cristalizar um projeto político nacional. O essencial para a coesão de um Estado-nação é que seus membros tenham convicção de que fazem parte de um destino comum. Tal quadro político e institucional não é exclusividade do Quênia, pois a História recente do continente pode ser escrita com base nessas premissas.
As Nações são artefatos culturais como bem demonstra a Ciência Social contemporânea. Trata-se de uma comunidade política imaginada, limitada e soberana. Imaginada porque um integrante da nação não conhece todos os demais membros e, nem mesmo numa comunidade pequena, jamais chegará a conhecer. Limitada, pois todas as nações têm fronteiras definidas, ainda que elásticas, além do que nenhuma comunidade identifica-se com a humanidade como um todo. Soberana, na medida em que define autonomamente o próprio destino político.
Basicamente dois princípios são essenciais para compreensão do nacionalismo - entendido aqui numa chave positiva, ou seja, a força cultural que vincula pessoas, grupos e classes sociais e etnias numa sociedade de maneira relativamente harmônica -. O primeiro é que as fronteiras étnicas não se sobreponham às fronteiras da legitimidade política democrática e, principalmente, que essas fronteiras étnicas não isolem os detentores do poder do restante da população. Para realização dessas premissas, o nacionalismo faz uso de maneira seletiva de culturas pré-existentes, muitas vezes alterando-as radicalmente.
A sociedade queniana precisa demonstrar capacidade de reação e romper com essa cultura política tradicional, fundamentada no personalismo, no patrimonialismo e na manipulação político-partidária de rivalidades tribais, pois tal imperativo é vital para que a Nação seja plenamente arquitetada, bem como para que o Estado não seja desmantelado, haja vista a incapacidade - quiçá momentânea - de garantia da ordem social e preservação da paz social. A formação do Estado-nação tem como premissa básica e idéia de que todos estarão sujeitos a um governo, cultura política e jurisdição comum, independentemente de diferenças quanto à religião, classe social, raça, etnia ou qualquer outro critério particularista. O Estado-nação prima pelo universalismo. Na sua configuração democrática, tais características devem ser definidas por meio de disputas políticas entre partidos representativos das forças sociais, sob regras claras de funcionamento e de maneira pacífica. Todos esses ingredientes estiveram ausentes da crise que abala o Quênia desde o último dia 27 de dezembro, quando foram realizadas eleições presidenciais.
Diante do quadro exposto os acontecimentos ora em curso no Quênia não devem soar como exceção, pelo contrário. Toda a tragédia teve início com um processo eleitoral fraudado, no qual disputavam o presidente do Quênia, Mwai Kibaki (Partido da Unidade Nacional) e Raila Odinga (Movimento Democrático Laranja), conforme atestam os observadores internacionais. A instabilidade faz os quenianos perderem muito, pois, nos últimos anos, o país conquistava credibilidade junto a investidores internacionais, além de ostentar um excelente setor de turismo (faturamento de US$ 1 bilhão em 2006). O Banco Mundial já demonstrou preocupação com a possibilidade de uma crise regional, pois ¼ do PIB de Uganda e Ruanda e 1/3 do de Burundi tem no Quênia rota obrigatória.
Os desafios à sociedade queniana são imensos. Essa conjuntura de crise demanda muita negociação, planejamento e estratégia, além de pressão da comunidade internacional. O dilema do Quênia será o de encontrar uma solução pacífica para essa crise e, posteriormente, repensar o seu sistema político e, sobretudo, a sua cultura e prática política, pois as rivalidades étnicas foram acirradas por maquinação política. Se tal transformação não ocorrer, de fato, o livro de Mia Couto será profético e cada homem realmente será uma raça.

Márcio Santos de Santana é doutorando em História pela Universidade de São Paulo - USP (marcio-sant@hotmail.com).

Agenda Doha: o que esteve em jogo na Genebra de 2008




por Carlos Nogueira da Costa Júnior

As grandes formas de contato entre povos de diferentes origens foram motivadas, na longa duração histórica, sob duas formas básicas: a divergência de interesses e a convergência de objetivos. A primeira forma, por conseguinte, gera controvérsias que são decididas sob dois modos, quais sejam, a solução pacífica - negociada ou forçada pela dissuasão - e a medida bélica, na qual o resultado é imputado por uma parte, compulsoriamente, à outra. A segunda motivação que leva ao estabelecimento de contato é a convergência de interesses. Nesse caso, um modo comum é a troca de bens e serviços para satisfação de necessidades mútuas. Trata-se, destarte, do próprio ato de comércio. Segundo os teóricos do sistema-mundo, como Arrighi, Braudel e Wallerstein, as relações comerciais engendraram a internacionalização do capitalismo e tornaram possível o processo contínuo de globalização, entendido aqui como a compressão do espaço-tempo.
Após a II Guerra Mundial, visto pela historiografia das Relações Internacionais como o mais profundo e nefasto contato entre Estados, o do tipo bélico motivado pela dissonância de interesses entre os atores internacionais, deu-se início a uma reestruturação do comércio internacional. Lideradas pela potência norte-americana, os acordos de Bretton Woods, assinados em New Hampshire no ano de 1944, deram nascimento ao tripé da economia mundial contemporânea. Sob tal ocasião, foram criados três regimes internacionais que tinham como objetivo ulterior a consagração e manutenção do equilíbrio econômico, como meio para satisfazer as necessidades humanas e, portanto, defender a paz internacional. Salienta-se que esta é vista, pragmaticamente, não como um cenário impérvio aos meandros dos conflitos e divergências próprias das relações sociais, mas como um ambiente ausente de soluções bélicas aplicadas às controvérsias.
Esse tripé fora constituído, em um primeiro momento, por três instituições, das quais uma sofreu reveses e mudanças ao longo de sua atuação. O primeiro regime é o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento - BIRD, criado primeiramente para auxiliar a reconstrução econômica de países da Europa Ocidental, inserido na estratégia norte-americana de contenção do avanço do socialismo real sob espaços geopolíticos. Ao longo de seu exercício, o BIRD teve seu escopo de atuação ampliado para países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, ganhando novas instituições e tornando-se o atual Banco Mundial. O segundo regime gestado em Bretton Woods é o Fundo Monetário Internacional, cujo objetivo é a manutenção do equilíbrio de reservas monetárias no sistema financeiro internacional, por meio do saneamento de desequilíbrios no balanço de pagamentos dos Estados-membros, evitando imbalances e desvalorizações cambiais artificiais, as quais poderiam alterar o fluxo normal do comércio. Por fim, uma vez acordado o sistema que auxilia economias em crise e outro sistema que protege o equilíbrio no sistema financeiro internacional, restava, ao cabo, a criação de um sistema para o comércio internacional. Esses três elementos - contas nacionais, desenvolvimento econômico e comércio - são interpretados, pela historiografia européia e americana, como fatores relevantes que, quando mal gerenciados, auxiliaram a condução das relações internacionais para o cume do conflito bélico, traduzido nos flagelos da I e II Guerras Mundiais.
Todavia, o regime de comércio envolvia, desde sua origem, ganhos, perdas e interesses demasiados estratégicos para a política e economia doméstica, engendrando, assim, uma arena de difícil diálogo, onde divergências tendiam superar convergências. Tanto é assim, que o projeto da Organização Internacional do Comércio - OIC, constante na Carta de Havana de 1948, não vingou, não sendo sequer submetido ao Congresso dos Estados Unidos, malgrado os esforços desprendidos ao longo das negociações. O que restou e prevaleceu para o comércio internacional, como arcabouço normativo e guia das expectativas e perspectivas, foi o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, mais conhecido por sua sigla em inglês, GATT (General Agreement on Trade and Tariffs). O GATT foi assinado em 1947, e foi desenhado inicialmente para orientar e auxiliar a formação da OIC. O sistema GATT-47 é menos ambicioso que o projeto da OIC, prevendo a queda de tarifas comerciais por meio de rodadas de negociação entre as partes, e seu meio de solução de controvérsias era flexível e lacunoso o suficiente para que não exercesse efeitos na economia real. Estava assim composto o tripé organizacional para a economia mundial de 1944 a 1994.
Entre 1947 e 1994, ocorreram oito rodadas de negociação no âmbito do GATT, das quais as cinco primeiras - Genebra, 1947; Annecy, 1949; Torquay, 1950-51; Genebra, 1055-56; Dillon, 1960-61 - versaram, tão somente, sobre a redução de tetos tarifários objetivando o alcance do livre comércio. As rodadas seguintes trataram ainda de tarifas, contudo, incluíram temas novos em suas agendas. A sexta rodada de negociação, Kennedy (1964-67), tratou de medidas antidumping, e a sétima rodada, Tóquio (1973-79), regulamentou sobre barreiras não-tarifárias (como exigências sanitárias e fitossanitárias) e cláusula de habilitação (que reconhecia o direito de países em desenvolvimento ao uso do Sistema Geral de Preferências).
A oitava rodada de negociação, a Uruguai (1986-94), foi a mais longa, considerando, além dos pontos acima aventados, aspectos de propriedade intelectual, agricultura, serviços, medidas de investimento e, o mais importante, um novo regime para o comércio internacional. Em Marrakesh, 1994, foi assinada a carta constitucional da Organização Mundial do Comércio - OMC. A OMC é um avanço institucional inegável quando comparado à estrutura jurídica do regime de 1947. Além de incluir os novos temas, possui secretariado, servidores, Diretor-Geral, que atualmente é o francês Pascal Lamy, e um Órgão de Solução de Controvérsias, que reproduz um sistema completo de julgamento, com instituição de panels, convocação das partes, produção da defesa e de pareceres, julgamento da causa e apelação da mesma, cuja decisão final é definitiva, irrecorrível e inapelável. Trata-se, destarte, de um regime mais complexo e adequado às novas demandas comerciais, informando aos registros históricos que o projeto da OIC, malgrado seu fracasso em 1948, revive hodiernamente sob um novo cenário e sigla.
Após o início de seus trabalhos, em 1º de janeiro de 1995, a OMC realizou quatro Conferências Ministeriais: Cingapura (1996), Genebra (1998), Seattle (1999), Doha (2001). Nessas conferências, reúnem-se chefes de Estado e ministros de todos os Estados-membros para a negociação comercial.
A quinta rodada de negociações, lançada na capital de Qatar, Doha, em 2001, tem como principal objetivo a liberalização comercial para o desenvolvimento dos Estados, mormente daqueles que não pertence ao grupo dos países já considerados desenvolvidos. Nessa ocasião, foi lançada a Agenda Doha para o Desenvolvimento, que possui metas de liberalização com prazo de conclusão para 2005, o que não foi alcançado. O que diferencia esta rodada das demais é o enfoque específico para países em desenvolvimento e subdesenvolvidos. Frisa-se, a esse respeito, que em 51 anos de regime de comércio, é a primeira vez que uma rodada é estipulada para a geração sustentável e garantida de renda em países menos desenvolvidos; daí sua singular e ímpar relevância.
Ao longo da Rodada Doha, foram realizados quatro conferências ministeriais: Cancún, em 2003; Genebra, em 2004; Hong Kong, em 2005; e Genebra, em 2008. Dentre essas reuniões, a que se destacou foi aquela realizada no México, uma vez que deu nascimento a uma nova geopolítica comercial, caracterizada pela bipolaridade em torno dos temas agrícolas. Em Cancún, as delegações entraram em impasse quanto à liberalização do setor agrícola, na ocasião, especificamente sobre o mercado de algodão. Também, o diálogo travou quanto aos temas de Singapura (medidas de investimento, política de concorrência, compras governamentais, medidas de simplificação das trocas comerciais).

O Impasse de Doha

Malgrado o fato de que é a primeira rodada no âmbito do GATT/OMC que possui enfoque no desenvolvimento econômico e social de países não-desenvolvidos, a rodada de Doha chama mais atenção pelo impasse nas negociações comerciais.
Tal impasse só é compreensível se se levar em consideração o atual estágio de desenvolvimento econômico dos Estados-membros envolvidos na negociação, de tal modo que essa questão reflete a própria estrutura hodierna do sistema capitalista e a economia política doméstica dos Estados.
Nos eventos de Cancún, dois grandes blocos destacam-se na Rodada Doha, formando uma espécie de bipolaridade comercial na arena agrícola, embora na OMC existam várias coalizões formalizadas para o setor primário.
De um lado, com nascedouro na reunião de Cancún, em 2003, está o G-20, grupo esse que conta atualmente com 21 países, e é liderado pelo Brasil, Índia e China, considerados potências emergentes. Seu nascimento tem como justificativa a formação de uma coalizão coesa e uníssona para barganhar maiores benefícios comerciais ao tempo da contemporânea rodada de negociações comerciais. Essa barganha, desenhada pelo G-20, figura na estratégia de ceder maior liberalização comercial para os setores de manufaturados e serviços, em troca de maior liberalização para o setor agropecuário.
O outro grupo possui como atores proeminentes os Estados Unidos, a União Européia e o Japão, que defendem maior abertura de mercados para os setores secundário e terciário, e, ao contrário dos países-membros do G-20, possuem elevadas barreiras tarifárias e não-tarifárias para importação de produtos agropecuários. Ademais, esse bloco também possui como perfil comum uma acentuada política de subvenção à sua produção agrícola doméstica, destacando-se os subsídios norte-americanos e a Política Agrícola Comum da União Européia, cujo maior defensor é o governo Sarkozy.
Visto a distribuição dos grandes atores da Rodada Doha, faz-se necessário entender o porquê de tal divisão política internacional.
Os subsídios, tanto no caso norte-americano como no europeu, visam à defesa da segurança alimentar, mas também da defesa da ordem interna. Nunca a dependência total de Estado em relação ao cenário externo gerou externalidades positivas sustentáveis. O Brasil sustentou-se das rendas geradas pelas exportações do café até a crise de 1929, quando, após os prejuízos da queda do preço do café no mercado mundial e a conseqüente falência de alguns produtores, inicia-se um movimento político em direção à diversificação da pauta de exportação, orientado por um programa de investimentos concentrado no desenvolvimento industrial do setor de bens de capital.
Considerados assim, os subsídios do Japão, do bloco europeu e dos Estados Unidos exercem dois efeitos fundamentais para a ordem política nessas regiões. Primeiramente, os subsídios ao setor agropecuário satisfazem um grupo de pressão política relevante, tanto nos países-membros da União Européia como nas potências japonesa e norte-americana. Segundo, os investimentos no setor primário retêm o fluxo emigratório do campo para as cidades. Esse aspecto ganha notoriedade quando se insere na análise a atual situação demográfica na região européia.
A União Européia possui instrumentos de convergência macroeconômica para Estados-membros menos prósperos, com o objetivo de manter o equilíbrio econômico do bloco, a estabilidade política entre as partes e evitar intensos fluxos migratórios de regiões escassas em oportunidade para regiões mais promissoras. Frisa-se, como exemplo, o fluxo de poloneses para a França, haja vista que na Polônia ainda restam insuficientes os investimentos para atração e retenção da mão-de-obra polonesa.
Ademais, tal fluxo gera atualmente problemas políticos para o bloco europeu, denotado no inchaço das cidades e no processo de deseconomia urbana. Essa controvérsia pode ser sanada por meio de uma redistribuição de investimentos na União Européia, e pelo enrijecimento das leis que tratam da movimentação de capital humano. Quanto a este último tópico, a reforma das leis de imigração da União Européia, ocorrida em 2008, foi a resposta mais rápida, legitimada e menos custosa do ponto de vista político, evitando regulamentar a liberdade de deslocamento dos europeus, em detrimento dos imigrantes.
Nos Estados Unidos, a situação não é no todo diferente, todavia, a questão da imigração está mais atrelada aos problemas econômicos do que à controvérsia da urbanização acentuada.
Uma vez apresentadas as partes, é possível compreender o que ocorreu no último encontro da Agenda Doha, em Genebra. Nesta reunião, os grandes temas em pauta foram justamente as demandas dos dois blocos que lideram o processo negociador, isto é, abertura de mercados dos países desenvolvidos para os produtos agropecuários dos países menos desenvolvidos, e por complementação da barganha, a abertura de mercado de Estados não desenvolvidos para exportações de manufaturados e serviços de países desenvolvidos.
Desde Cancún, em 2003, o cenário usual das negociações da agenda Doha refletia essa bipolaridade comercial, entre o G-20 de um lado e Estados Unidos, União Européia e Japão do outro. Desse status quo foram gerados avanços e retrocessos, que na chegada do último encontro em Genebra encerraram por, de fato, diminuir o protecionismo nos três setores econômicos. Houve uma desgravação tarifária para manufaturados e serviços e queda nos tetos de subsídios agropecuários. No início das negociações, o principal tema restava nos subsídios concedidos ao setor primário. Dada essa ordem comercial internacional, houve uma intimorata inflexão, na qual um determinado fator teria irrompido em Genebra para quebrar a coalizão do G-20, em princípio percebido como um grupo impérvio às instabilidades e uníssono em suas demandas.
Tal fator emergiu no tema das salvaguardas. No que tange os processos de defesa comercial, o instituto da salvaguarda visa à proteção para indústrias nacionais contra surtos imprevisíveis de importações, permitindo, para tal, que o Estado alvejado pela alta acentuada de importações aumente os direitos aduaneiros ou as restrições quantitativas. Ora, um surto de importações só pode ocorrer por três variáveis: forte valorização da taxa de câmbio do Estado importador; queda vigorosa do preço internacional do produto importado, em razão de aumento de competitividade e melhoria tecnológica da produção; ou por quedas em barreiras protecionistas. Visto assim, é possível explicar, tendo como moldura a questão das salvaguardas, por que o Brasil dissociou-se dos líderes do G-20, como Índia e China, e aquiesceu em torno de um acordo comercial com os Estados Unidos, União Européia e Japão.
No encontro de Genebra, em julho de 2008, um grupo de sete atores destacou-se quanto à questão das salvaguardas: Estados Unidos, União Européia, Japão, Austrália, Brasil, China e Índia. Esse G-7 dividiu-se em torno do princípio de ativação do mecanismo especial de salvaguardas (em inglês - SSM, ou seja, special safeguard mechanism), o que explica a dissensão entre Brasil e o G-20.
Países como Austrália, Brasil, Estados Unidos, Japão e o bloco europeu entendem que o SSM é um instrumento a ser utilizado temporariamente para alcançar a liberalização, limitado no tempo (período da medida) e no espaço (país), sendo ativado somente quando há um surto imprevisível e incomum nas importações agrícolas; por conseguinte, não pode ser invocado quando existem flutuações normais no preço ou na expansão do comércio internacional. Ainda, a salvaguarda não pode implicar em aumento de tarifas de importação acima dos tetos acordados em negociações anteriores a Doha. Destarte, é visto como um meio de garantir o caminho à liberalização reduzindo custos políticos em países menos competitivos no setor agrícola.
Na vertente contrariante, países como Índia e China defendem que o SSM deve ser invocado de forma livre e menos burocrática - não precisando, por exemplo, provar nexo causal entre o prejuízo do setor agrícola nacional e o surto de importações -, e que a salvaguarda pode implicar aumento de tarifas de importação superior aos tetos pré-Doha.
É nesse aspecto que o atual impasse de Doha reflete a geografia e a economia política dos atores envolvidos, como afirmado ao início desta análise. Negociadores que desejam uso livre do SSM o fazem porque percebem um potencial considerável de danos nacionais com a rápida liberalização comercial no setor agrícola, utilizando o mecanismo como meio de ganhar margem para adaptarem-se ao nível de competitividade internacional; caso esse dos chineses e indianos.
Segundo dados do Banco Mundial, de 2006, o PIB da China alcançou US$2,644 trilhões, sendo que desse total, o PIB agrícola equivalia a 11,7%. A Índia, nesse mesmo ano, fechou o período com um PIB de US$991,8 bilhões, dos quais 17,5% correspondem à participação do setor agrícola. Outro dado relevante, neste caso quanto à questão demográfica, demonstra que China e Índia são países predominantemente de populações rurais. Em 2005, a população rural chinesa equivalia a 59,5% de sua população total de 1,312 bilhão de habitantes. Por sua vez, a Índia possui uma população rural igual a 71,3% de sua população total de 1,110 bilhão de habitantes.
Ora, se a participação do setor agrícola é considerável na produção de riqueza na China e na Índia, e se a população rural nesses dois países é maioria da população total, dois corolários são extraídos: produção agrícola de baixa competitividade e pressão social. Considerando que a produção agrícola nesses dois países ainda depende em demasiado da mão-de-obra humana, sendo pouco intensivo em capital, e originário de produção familial, um surto nas importações de produtos agrícolas - em razão de liberalização comercial para concorrentes mais competitivos - pode ocasionar sérios danos sociais para essas comunidades, e apontar para uma questão fundiária de proporções desestabilizantes para a política doméstica da China e da Índia, haja vista o tamanho de suas populações rurais.
Ao contrário desse cenário, estão os países restantes desse G-7, que já possuem uma produção agrícola competitiva e automatizada, e detêm um número pequeno de população rural em relação às suas populações totais, não implicando um setor social ameaçador à estabilidade e à ordem política doméstica. No ano de 2005, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, a parcela da população rural em relação à população total de Austrália, Brasil, Estados Unidos, Japão e União Européia, era de, respectivamente, 7,3%, 15,8%, 19,2%, 34,3% e 26,7%. Trata-se, portanto, de regiões predominantemente urbanizadas, e visto que a parcela da população rural é pequena, a produção agrícola desses espaços geográficos é intensiva em capital. Além disso, são países que apresentam redes de segurança social, tanto na forma de subsídios como na forma de programas de assistência social, como o Bolsa Família do Brasil.
Quanto à participação da produção agrícola no produto interno bruto, Austrália, Brasil, Estados Unidos, Japão e União Européia apresentaram, em 2006, índices de, respectivamente, 3,1%, 5,1%, 1,2%, 1,5% e 1,8%. Destarte, são regiões economicamente caracterizadas pela predominância dos setores industriais e de serviços. Destarte, a vulnerabilidade desses países quanto à abertura comercial no setor agropecuário é menor que aquela verificada na Índia e China, pois nesse o PIB é menor em relação à população rural dependente da economia do campo.
Dessa forma, só é compreensível a divisão, na questão do SSM, entre China e Índia de um lado, e Austrália, Brasil, Estados Unidos, Japão e União Européia do outro, porque existem dois tipos específicos de estruturas de produção agrícola. Os dois primeiros atores possuem produção agrícola pouco competitiva, com grande participação de capital humano, alta dependência social da produção familial, e contingente elevado de seus habitantes dependendo do campo. Inversamente, os quatros atores seguintes detêm uma agroindústria, intensiva em capital, com competitividade e baixo custo de produção, além de pequenas parcelas da população dependendo da economia rural. Daí, concluí-se que coalizões transitam e se formam em razão de convergências de interesses, que são reflexos das demandas das estruturas agrícolas dos países. Isso também reflete a heterogeneidade do G-20, que reúne países de diferenciados níveis de industrialização do setor agrícola. Posto que os Estados-membros desse grupo desejam acesso de mercado para suas produções agrícolas, suas economias possuem graus dissonantes de competitividade, que implicam diferenciados potenciais e intensidades de ganhos e perdas.
Tem-se, conseqüentemente, por que o Brasil firmou uma convergência em Genebra dissonante dos líderes do G-20, especificamente Índia e China. Com uma liberalização mais profunda do setor agrícola no mercado internacional, o Brasil teria vantagens competitivas para se mover nas transações comerciais, enquanto que China e Índia teriam maiores custos sociais, econômicos e políticos para adaptar sua agricultura à concorrência externa, transitando sua produção para métodos de automação e, por conseguinte, gerando desemprego de massas populacionais, que para não se tornarem uma lide política, deveriam possuir redes de segurança social que as inserisse em outros setores econômicos.

A Posição Brasileira

Além do fator estrutural, ou seja, da influência dos modos de produção e da população rural dos países aqui enumerados, há de se levar em consideração o papel do homem de Estado e sua relação com os setores privados nacionais, tratando-se, portanto, da própria economia política interna singular de cada Estado.
No caso brasileiro, dois temas são relevantes no programa de política externa da administração Lula. Primeiramente, o empenho em conquistar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, no qual se tem como meios: o papel de liderança regional do Brasil na América do Sul (ao promover a estabilidade política na região); a proposição da formação de um Conselho de Defesa da América do Sul - projeto conjunto do Ministro da Defesa, Nelson Jobim, em parceria com o Itamaraty; a participação brasileira na intervenção no Haiti; e uso de contatos diplomáticos em busca de apoio a tal candidatura, como o diálogo do G-4 (Brasil, Índia, Alemanha e Japão).
O outro ápice da política externa brasileira está em conseguir um acordo comercial benéfico para a economia brasileira no âmbito da OMC. Neste caso específico, por duas razões emerge a figura do Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. O Ministro Amorim possui um histórico singular em negociações comerciais, o que explica em parte sua indicação para a pasta das relações exteriores. Também, o próprio Ministro tomou para si o tema das negociações na OMC como uma das prioridades da diplomacia brasileira, na percepção de que um sucesso de Doha poderia trazer para o Brasil extensas externalidades positivas, gerando maior nível de renda e emprego nos três setores econômicos. Essa percepção da diplomacia brasileira é verificada na não aceitação do Brasil de um fracasso da Agenda Doha. Após o último encontro em Genebra, tanto o presidente Luís Inácio Lula da Silva, como seu ministro Amorim, acionaram contatos internacionais para restabelecer o diálogo entre as partes, convictos na realização dessa possibilidade.
Dado a pressão do setor agropecuário brasileiro, para que o governo defenda a produção brasileira e consiga abertura de mercados, mormente o norte-americano e o europeu, e visto o empenho e prioridade dispensados pela chancelaria brasileira, fechar um acordo em Genebra poderia exercer um impacto político positivo, ainda mais em meio a um cenário de crescente inflação, por causa do preço dos alimentos. Inclusive, este foi um dos argumentos da política externa brasileira para diminuir o protecionismo internacional, pois que a incidência de tarifas e quotas encarece os alimentos transacionados no mercado externo.
Por tais razões, a posição brasileira foi dissonante do G-20, e não deixou de gerar alguns benefícios temporários para o Brasil (como a queda dos subsídios agrícolas norte-americanos de um teto inicial de US$17 bilhões para um de US$14,5, malgrado a demanda da Índia e China por um teto de US$13 bilhões; outro ponto da discórdia), não obstante não seja ainda a liberalização almejada pela agroindústria brasileira.
Em entrevista coletiva em Genebra, o Ministro Celso Amorim resumiu de forma clarividente que o acordo aquiescido pelo Brasil era: “o melhor que se pode ter pelo preço que se pode pagar. É tudo o que a gente queria? Não é. É o ideal? Não é. Mas isso é uma negociação. Não estamos fazendo um mau acordo, na minha opinião. Pelo que eu entendo, em consultas com nossos exportadores, os tetos [para os cortes de tarifas de exportação] todos são satisfatórios para permitir que nossas exportações ocorram.”
Há de realizar aqui um esclarecimento. Segundo o Diretor-Geral da OMC, Pascal Lamy, com o impasse na reunião de Genebra, os países-membros teriam deixado escapar um pacote de ganhos de US$130 bilhões em redução de tarifas agrícolas e industriais ao longo de dez anos. Desse total, US$35 bilhões seriam ganhos com reduções tarifárias no comércio agrícola, e os US$95 bilhões restantes seriam gerados com reduções de direitos nas trocas de manufaturados e serviços.
Desses números, o Brasil estaria perdendo US$4 bilhões ao ano com a não conclusão de Doha, sendo um dos países-membros que mais perderiam com o contínuo protecionismo internacional nesse setor. Ora, devem-se dissociar as perdas econômicas das sociais. O Brasil é um dos líderes no comércio agropecuário, destacando-se no comércio de laranja, milho, soja, algodão, etanol - proveniente da cana-de-açúcar -, carne bovina, suína e na avicultura. Contudo, a possível perda desses benefícios, caso a Rodada Doha permaneça inconclusa, impõe uma demanda dos produtores do setor agropecuário por uma reação do governo brasileiro, o que não chega a se tornar uma questão social ampla, a ponto de gerar instabilidade política doméstica, dada a pequena população rural. Ainda, considerando o nível de competitividade da produção brasileira, é possível no médio prazo responder à problemática do protecionismo no mercado internacional. Conseqüentemente, o Brasil perde economicamente com o impasse em Doha, mas possui uma estrutura produtiva com margem de adaptação à concorrência internacional, o que mitiga o protecionismo e elimina possibilidade de convulsões sociais no campo. Por outro lado, países como Índia e China possuem uma estrutura agrária menos competitiva, e consideráveis contingentes populacionais que dependem da economia rural.
Por fim, resta um terceiro e último aspecto para tornar essa análise lógica e satisfatória: verificar o impacto para a economia brasileira, dada a discórdia em Genebra.

Reação à paralisia de Doha

As negociações comerciais no âmbito das Conferências Ministeriais da OMC ficarão temporariamente inertes para o comércio exterior brasileiro, por quatro razões. Primeiramente, a presidência do Conselho da União Européia passará para a França - cuja administração de Sarkozy enviesa pela assumida proteção do setor agrícola europeu, e aprofundamento da Política Agrícola Comum, sob as alegações da segurança alimentar e de desenvolver o campo, evitando fluxos migratórios par áreas urbanas já saturadas de imigrantes europeus e estrangeiros, como a própria Paris.
Outro aspecto refere-se às eleições norte-americanas, que no final de 2008 e início de 2009 determinará um novo presidente norte-americano, o qual estará iniciando seus trabalhos, e só definirá uma base clara e sustentada de política comercial após avaliar os reveses da economia doméstica - mediante as externalidades negativas do mercado imobiliário - e após auscultar os setores comerciais e seu peso, a favor ou contra a aprovação de ações e projetos do Executivo perante o processo legislativo do Congresso norte-americano.
Um terceiro fator encontra-se também na instância eleitoral, tratando-se das eleições gerais na Índia, que devem estabelecer ainda neste ano um processo de transição política, figurada na chegada de um novo corpo executivo. Destarte, as eleições indianas deixarão a arena externa menos privilegiada, concedendo espaço a temas domésticos, como economia, terrorismo, inclusão social e a questão separatista da Caxemira.
Por fim, em 2009 o presidente Lula estará trabalhando arduamente para gerar um substituto para o Planalto, o que fará priorizando temas nacionais em detrimento de temas internacionais, entre eles as negociações na OMC.
Em razão desse quadro político, atualmente o governo brasileiro se esforça para retomar as negociações de Doha antes que os fatores acima se materializem, e provoquem uma paralisia negocial inexorável no médio prazo. Destaca-se aqui não apenas a ação diplomática de Amorim, mas também a diplomacia presidencial. Após o fracasso das tratativas em Genebra, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acionou seus contatos com o presidente norte-americano George W. Bush, com o primeiro-ministro indiano Manmohan Singh, com o primeiro-ministro inglês Gordon Brown, e o chefe de Estado chinês Hu Jintao. Por sua vez, Amorim trabalha na reconstrução do diálogo da reunião em Genebra, envolvendo contatos com a representante comercial dos Estados Unidos, Susan Schwab, com o Comissário Europeu para Comércio, Peter Mandelson e o Ministro do Comércio da Índia, Kamal Nath.
Além das ações na arena da política externa, outras medidas serão necessárias enquanto não existem movimentações para diminuir o protecionismo no mercado agropecuário. A retomada das negociações comerciais bilaterais e inter-regionais é uma forma de manter a dinâmica de liberalização de mercados. Por essa razão, o fortalecimento do Mercosul e a revisão de sua inserção internacional tornar-se-ão temas prioritários na agenda do governo brasileiro. A importância das negociações multilaterais para o Brasil reside no fato de que o país ainda possui poucas condições de impor suas posições e opções no meio externo, daí a relevância das coalizões, como o G-20, o IBAS ou G-3 (diálogo Índia, Brasil e África do Sul) e G-4 para a reforma da ONU. A negociação bilateral só é vantajosa quando a outra parte possui poderes de barganha, persuasão e dissuasão menores. Reconstituir o Mercosul, como um bloco harmônico para negociações com União Européia e Estados Unidos, será um requisito para o sucesso das políticas externa e comercial brasileiras.
Outras reações ocorrerão também, todavia, com origem e repercussão doméstica, ao contrário das supracitadas. Considerando que o nível de protecionismo tende a continuar, no curto e médio prazo, a outra forma restante para deprimir o preço dos produtos agropecuários no mercado externo é diminuir os custos de produção. Esse momento de crise na Rodada Doha pode ser um ponto de inflexão positivo para a agroindústria brasileira. A competitividade do produto no comércio internacional reside no preço acessível e na qualidade ofertada. Se existem barreiras comerciais que tornam o preço dos produtos brasileiros artificialmente altos, então a resposta deve ocorrer em duas vertentes.
Quanto ao preço, a reação brasileira deve emergir em melhorias tecnológicas e de métodos de produção, o que exige capacitação em Pesquisa e Desenvolvimento, um câmbio valorizado para importar maquinários para agricultores e pecuaristas, isenção tributária para o setor rural, seja eliminando impostos para importar máquinas, seja extinguindo tributos para as exportações. Ademais, será fundamental diminuir o nefasto custo Brasil, ou seja, diminuir os custos brasileiros para a produção e escoamento desta no mercado externo. Neste aspecto, o Programa de Aceleração do Crescimento adianta essa reação, pois prevê o aumento de oferta e redução do custo de energia, reforma de portos, aeroportos, rodovias, ferrovias, hidrovias, e integração logística para formação de uma rede de deslocamento de produção intermodal. Com essas medidas, as exportações brasileiras de produtos primários ganharão competitividade na concorrência internacional, e deprimiram os preços internacionais pela via da oferta, já que na via da demanda - países importadores - existem barreiras protecionistas.
No que tange à qualidade, a resposta tem efeitos mais perenes que os elencados acima. Trata-se dos investimentos em pesquisa e educação. O desenvolvimento de produtos agropecuários demanda competência em variadas áreas, como engenharia genética, engenharia de produção, marketing internacional, agronegócios, agronomia, medicina veterinária, entre outros ramos científicos. Além disso, a educação gera inclusão social, na medida em que profissionais qualificados penetram mercados em ascensão.
Um último tópico deve ser salientado. No Brasil prevalece o regime de câmbio flutuante sujo (regime cambial livre com pequenas intervenções do Banco Central), não havendo espaço para mecanismos de manipulação cambial de modo a provocar artificialmente desvalorização da moeda nacional em relação à estrangeira para facilitar exportações, ou valorizá-la para facilitar importações de maquinários. Isso torna mais premente a melhoria dos processos produtivos no setor agropecuário, de modo a diminuir o custo de produção e repassar tal queda para o preço de exportação, aumentando a competitividade da produção brasileira no mercado externo.
O cenário acima descrito demonstra que, no palco das negociações comerciais internacionais, questões técnicas são manipuladas e subjugadas por interesses políticos, que por sua vez refletem a estrutura da ordem internacional, e, principalmente, como os recursos econômicos, naturais e a renda estão assimetricamente distribuídos nos espaços geográficos. Essa assimetria enseja como corolário posições diferenciadas na argumentação comercial, criando uma flexibilização de coalizões, dependendo dos ganhos e perdas políticas, econômicas e sociais.
Conquanto a administração Lula tenha defendido, ao tomar posse, que ensejaria uma nova geografia econômica, a Rodada Doha demonstra que a assimetria de poder na arena comercial perpetua-se, dificultando uma mudança na divisão internacional do trabalho, pois que tal ordem desigual não é fruto do simples voluntarismo político, mas originado de óbices materiais ao desenvolvimento. Nesse ambiente, em que a teoria do livre comércio não é integralmente adotada pelos Estados, por causa da economia política interna aos mesmos, na qual determinados interesses privados não se coadunam harmonicamente com a abertura comercial, o Brasil pode desenvolver um novo programa inovador para o setor agropecuário. Isso dependerá da vontade nacional para implementar reformas estruturais, arcando com seus custos de curto prazo, porém gozando de seus benefícios de longo prazo.

Carlos Nogueira da Costa Júnior é Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília - UnB e professor do Centro Universitário do Distrito Federal - UNIDF (carlos.costajr@gmail.com).

O Eterno Problema dos Transportes




Juarez B. Regis

Antes da década de sessenta o sistema de transporte de carga do Estado do Pará era baseado na modalidade hidroviária, em virtude das características de seus rios que ofereciam excelentes condições de navegabilidade para barcos até um determinado limite de calado, interligando a maioria de suas cidades e localidades. A partir dessa década, emergiu o transporte rodoviário e uma pequena parcela do ferroviário entre Carajás e o Porto de Itaquí, no Maranhão.

O marco inicial desse impulso pelo sistema rodoviário ocorreu com a construção da rodovia Belém-Brasília, e continuou, na década seguinte, com a construção da estrada Transamazônica e de Santarém-Cuiabá, com recursos do PIN e PROTERRA. O financiamento todo foi oriundo do Governo Federal, restando ao governo paraense atuar na complementaridade de outros trechos, como foi o caso da implantação da PA-150, PA-156, PA-254, e mais recentemente a Alça Viária, ligando as cidades de Ananindeua e Barcarena, e conseqüentemente, ao Porto de Vila do Conde, da Albrás/Alunorte.

Desde essa época, atravessando as décadas de oitenta e noventa, até os dias de hoje, com a exceção da Alça Viária não houve um aumento significativo na abertura de novas vias de escoamento de produção, mas houve sim, o comprometimento de muitas estradas implantadas anteriormente, por falta de um eficiente programa de restauração e conservação. Como se pode constatar, essa estratégia do governo federal para tentar integrar a Amazônia ao todo nacional, deu impulso a certo crescimento econômico, na região, que com o passar do tempo, foi deixado de lado, voltando a Amazônia a sofrer as conseqüências negativas, pelo total abandono a que foi submetida nos últimos 12 anos. Uma dessas conseqüências, é a má qualidade de vida de seus habitantes, principalmente, os ruralistas que vivem sem nenhum apoio, por partes dos Órgãos Federais e Estaduais, que foram criados para prestar assistência técnica e administrativa a essas famílias de pequenos criadores e agricultores. Terras tituladas foram entregues a camponeses, como também, foram ensaiados certos acompanhamentos técnicos desses proprietários, mas tudo isso durou pouco. Os pequenos produtores, se viram desorientados, produzindo aleatoriamente, e o que produziam, ou produzem até hoje, é em grande parte desperdiçado, pela total carência de uma infra-estrutura de transporte adequada, a começar pela falta de estradas vicinais e mesmo de estradas troncos com asfalto adequado. Isso sem dúvida, tem repercussão desastrosa, nas periferias das cidades, onde uma população de origem campesina tenta sobreviver às duras penas, num ambiente estranho a seus tradicionais costumes, passando a conviver com a violência de outros cidadãos que, também, foram empobrecidos pela estrutura injusta impregnada no país.


Acompanhando a implantação dos grandes projetos econômicos, na Amazônia, os programas especiais de financiamentos, os incentivos fiscais e outros, tiveram tudo a ver com a atual situação com a qual os habitantes dessa região se encontram, atualmente. Sem dúvida, foi um modelo concentrador de terra e renda, nas mãos do grande empresário e político, regional, nacional e estrangeiro. Essa aliança, entre o grande empresariado e a máquina estatal, através do apoio proporcionado pelo Programa Nacional de Transportes, ao abrir os grandes eixos rodoviários, redefine novas práticas de atividades produtivas no território paraense. É, portanto, imprimido ênfase aos processos modernos de produção, em grande escala, e da máxima eficiência econômica, onde a grande empresa rural, capitalista, nacional ou estrangeira (serrarias, fazendas e agro-indústrias), recebiam financiamentos até para o preparo da terra, que incluía a derrubada de extensas áreas de florestas para a formação de latifúndios. Essa maneira pela qual os anteriores planejadores do desenvolvimento, acharam de melhor iniciar o processo de ocupação da Amazônia, incentivando a agropecuária extensiva, e produtos para a exportação, sem uma certa convivência harmônica com a floresta, e o que pior: sem traçar uma linha de ação para a atividade familiar, na agropecuária de pequeno porte e no extrativismo vegetal, que hoje voltam a ser propalados, acabou por alijar do sistema produtivo o pequeno produtor nativo que passou a vender terras ou ser, simplesmente, expulso de sua lavoura. Soma-se a essa estratégia de desenvolvimento - aliás bem intencionada, mas ao mesmo tempo incompleta, pois trazia no bojo dos grandes projetos, a implantação de distritos agropecuários familiares, - a chegada de camponeses de outras regiões do país, atraídos pelas promessas de um novo eldorado, que chegando sem conhecer a nova realidade do solo da região, que é totalmente dependente da floresta, tornaram-se, também, atores nessa desastrosa ocupação, de terras às vezes até produtivas, com danos irreversíveis à natureza.


Apesar de todos esses erros cometidos, que sem dúvida elevou os custos de produção não para o empresário - que está se saindo bem na comercialização de seus produtos, - mas para o tesouro nacional, não se pode deixar de reconhecer que em alguns setores econômicos houve progressos, e que atualmente estão dando ensejo a novas atividades geradoras de renda e emprego. O exemplo disso, é rebanho paraense de bovino e bufalino, salvo engano, o terceiro maior do país, o que já dá uma idéia da representatividade dessas espécies por toda a Amazônia.

Ao nosso ver, nesses novos tempos de grandes preocupações com as ameaças de desastres naturais, cabe ao governo federal, justamente com os governos estudais da Amazônia, repensar essa estratégia de desenvolvimento, ou melhor, revisar esse propalado desenvolvimento sustentável, antes de partir para um grande esforço de, ao mesmo tempo, produzir preservando e preservar produzindo. Na Amazônia, essas duas maneiras cabem, perfeitamente, desde que se leve em consideração à atenção para os mínimos detalhes, respeitando as especificidades de cada sub-região, e para isso, é preciso que o governo federal apresente uma política regional com diretrizes bem formuladas, que oriente o planejamento do desenvolvimento sustentável, incentivando somente atividades que produzam sem devastar ou causar danos aos ecossistemas naturais. Desse modo, há que ser selecionadas as futuras indústrias e as atividades agropecuárias ao longo da rodovia BR-163, que pode fazer da cidade de Santarém o tão sonhado corredor de exportação do país. Para atender os pequenos produtores, há que ser repensado novos padrões de módulos produtivos, maiores e/ou menores dos atuais 100 hectares, para não ficar nesse inoperante padrão, ainda criado no regime militar. Quanto à grande empresa rural capitalista, há que ser definido uma dimensão máxima que não seja prejudicial à produtividade, mas que, também, não abocanhe áreas quase do tamanho de certos países do mundo, o que pode comprometer a nossa soberania, para acolher futuros brasileiros ávidos de terras.


Como se pode observar, é possível se ter uma Amazônia produtiva, nos três setores da economia, incluindo-se aí, ramos como o turismo (eco-turismo, turismo cultural, religioso e da pesca esportiva); a indústria, voltada para a construção de (artefatos de ferro-aço, eletrônica e a manufatura); a biotecnologia abrangendo (pesquisas e extração de essências da flora e da fauna); a atividade madeireira com métodos mais modernos de exploração e de desdobramentos, com aproveitamentos dos resíduos para a extração de sub-produtos, verdadeiros sucedâneos do petróleo, como álcoois, enzimas e substâncias para a indústria cosmética e farmacêutica; a agropecuária mais selecionada e direcionada para a criação do gado menor em áreas degradadas; agricultura com plantações cercadas de ilhas de florestas, bem como a atividade mineral processada somente por empresas obedientes à conservação de ecossistemas. Esse é o verdadeiro modelo sustentável, com mudança da base produtiva.


Agora em que pese toda essa perspectiva que se abre para a região, é bom lembrar que foi a partir da procura de um porto para o escoamento da produção, não só da Amazônia, como dos excedentes agrícolas e industriais de outras regiões do país, que se construiu o porto de Santarém, na década de setenta. Lembremo-nos, também, que com a implementação do Programa de Desenvolvimento Integrado do Noroeste do Brasil (Governo Brasileiro/Banco Mundial), houve um grande esforço no sentido de solucionar o problema do escoamento da produção agropecuária de Mato-Grosso, Rondônia e do Acre. Das soluções portuárias preconizadas (Itacoatiara, Santarém, Belém) a que oferecia maior vantagem comparativa era a de Santarém, por ser a mais direta, eliminando um transbordo intermediário, e por contar, a longo prazo, com a possibilidade de conviver com o transporte ferroviário, além de estar mais próximo da PA-254, na margem esquerda do rio Amazonas, ligando várias cidades com o Amapá e as Guianas e mesmo aos portos do Sul e Sudeste brasileiro.


Hoje, com a retomada dos problemas no Sul do país - mais precisamente nos portos de Santos e Paranaguá, que enfrentam, continuamente, longas filas de caminhões e navios à espera de vez para descarregar e embarcar as produções, especialmente, de grãos de soja e outros produtos, além das constantes ondas de greves dos operários daqueles portos que estão, sempre, importunando a todos, causando prejuízos de milhões de dólares ao tesouro nacional, - seria oportuno que se retomasse a discussão de uma política mais abrangente para a Amazônia, que priorizasse de uma vez por toda o asfaltamento da BR-163, e outros investimentos portuários, envolvendo o porto de Santarém, a construção de um segundo porto na cidade de Óbidos, e conseqüentemente o asfaltamento da PA-254, completando-se assim, os reais objetivos para que foi projetada a rodovia Santarém-Cuiabá, dentro do programa de integração amazônica.

Termino essas rápidas considerações, deixando um pensamento: “tudo o que se fizer por essa Amazônia, tem que, primeiro, visar reduzir os custos de produção, para suas unidades federadas e para o Brasil, pois essa é a melhor maneira dessa região contribuir com o país”.
http://www.istoeamazonia.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=644&Itemid=220

A Grande Estratégia para a Amazônia


Serra Pelada - década de 80

Juarez B. Regis

Participando de vários eventos que abordavam os problemas regionais com a finalidade de subsidiar governos passados, logo percebemos que as grandes soluções não têm funcionado nos dias confusos desta época tecnológica, e que em vez de aliviarem as tensões e os conflitos, produzindo renda e emprego e qualidade de vida, sempre tenderam a aumentar os problemas, além de causarem danos à natureza. Têm-se a impressão de que o ser humano acabou perdendo a noção das dimensões que ele pode suportar, em termos das graves conseqüências, que podem advir com o desequilíbrio da natureza, quando da retirada ou destruição, em grande escala, de riquezas naturais e da implantação de elementos artificiais em ecossistemas frágeis. Percebemos que certas soluções não deram certo, na Amazônia, simplesmente, por que foram feito generalizações, tendo-se colocado os carros diante-dos-bois. Não deram certo quando se partiu para execução de atividades econômicas, principalmente, em se tratando da agricultura e pecuária. Aconteceu que a assertiva “para grandes problemas, grandes soluções”, não funcionou quando grandes projetos, a exemplo do Jarí, como da mesma forma com inúmeros projetos, já abandonados, apresentaram-se como a solução, quando se olhou só o aspecto de grandes extensões de terras. E como governos por esta Amazônia se iludiram com isso.


Na verdade, há muito tempo que os méritos da tecnologia no combate à fome vem sendo anuladas pelo mau uso de produtos químicos ou por aplicações de elementos inadequados a certos ecossistemas frágeis, no mundo. O homem no afã de produzir em grande escala com vista à exportação, não se importa com os prejuízos que venham atingir, nem mesmo a si, no futuro, e assim, continua a contaminar águas, envenenar plantas, frutos e animais, através da bacterização maléfica causada pelos agrotóxicos. Ninguém atenta para o fato de que esses elementos químicos (pesticidas, inseticidas e pulverizantes artificiais) para tratos de plantas e do solo, foram inventados pelos cientistas de países do primeiro mundo, para proteger as culturas de solos de clima temperado, e para melhorar a produtividade daquelas ricas áreas do Globo. Para serem vendidos aos países do terceiro mundo, apenas sofreram meras adaptações para solos de clima tropical, tendo tido bons resultados em países como o México, Chile e a Argentina, onde a qualidade do solo é razoável em comparação com o solo de países de clima temperado. Portanto, sendo a Amazônia possuidora de “solo de clima equatorial diferenciado”, com especificidades próprias, ela não poderá de maneira nenhuma suportar, por muito tempo, aplicações de grandes quantidades de elementos químicos, exigidos pela agricultura moderna, mesmo que, ainda, possam ser usados de maneira correta e por pessoas treinadas e habilitadas. A aplicação “soft” de adubos e defensivos químicos, embora já seja um grande passo preventivo para atenuar o problema da poluição e da saturação do solo, ainda não é o suficiente, e talvez, paralelamente a isso, seja necessário se pensar na administração de novos sistemas produção, novo modelo.

Sebastião Salgado
Eldorado dos Carajás - luta pela posse da terra

A partir dessas considerações, a pergunta que se faz é de como poderia o homem produzir alimentos, de maneira satisfatória, em um ecossistema vasto em terras, rico em flora e fauna, mas com a textura e a proteína do solo deixando muito a desejar? Como poderia ele fazê-lo sem exterminar micro-vidas, e até a macro-vidas, para que estes estejam, sempre, a serviço do próprio homem? Como atender a demanda internacional por alimentos e produtos extrativos das florestas, sem causar danos ambientais, e ainda, contribuir para promover o progresso da população? São perguntas que exigem uma resposta.

Atualmente, todos estão de acordo que os conhecimentos acumulados pelos pesquisadores, nacionais e estrangeiros, ao longo dos anos, dão-lhes condições de responder a essas e outras questões. E eles têm respondido, mas ninguém os ouve. No entanto, o que se vê, por parte dos empreendedores, é a aplicação à agricultura do método de eficiência econômica. E isso tudo com o aval da ala dos governos. Tem-se observado que esse método se aplicado, em grande escala - objetivando a lucratividade através das exportações -, sem uma tecnologia nacional apropriada, provoca desequilíbrios e desarranjos na natureza que se propagam, no tempo e no espaço. Os exemplos disso, podem ser observados nos continentes africano e asiático e em toda a América latina. E nós aqui na geopolítica Pan-Amazônica já estamos sendo vítimas de fenômenos que ironicamente recebem o nome de “El Niño”, o grande culpado, numa forte alusão de que tudo é culpa exógena, referenciado em algo (supostamente Deus) que vem de fora e que, portanto, foge ao controle do homem. Tolo e iludido quem acredita nisso. Verdadeiramente, não há culpado senão o próprio homem.


Dizer – como muitos mandatários já vociferam - que depois das catástrofes pode se incorrer a outras soluções tecnológicas, e que se age conforme os problemas vão surgindo, e que temos o direito de fazer o que bem entender, é dar ensejo a gigantescos dispêndios adicionais, que podem ser evitados, para dar outro destino mais nobre a milhares de seres humanos; aliás seres mais dignos que qualquer outro ser na face da Terra. Para isto, basta que houvesse o respeito a certos princípios originais e às regras ecológicas mais fundamentais. Regras essas que, no caso da Amazônia, indicam o controle biológico na defesa das culturas e o uso de agentes naturais na fertilização do solo de clima equatorial, produzindo para o mercado interno e externo, porém, com os devidos cuidados, para preservar nichos florestais e criar barreiras ecológicas associadas aos cultivares, da grande e pequena propriedade, mesmo que em alguns anos, a produtividade fosse menor.

Se leis e regras (humanas e divinas) fossem respeitadas, haveria um tempo para que novas tecnologias surgissem, contendo elementos químicos apropriados e de uso leve para o solo amazônico. Isso tiraria, com certeza, a carga financeira por demais insuportável do país, que tem que importar da indústria agro-química internacional todo o material necessário. Contudo, enquanto não se aplica essa tecnologia desejável, compete aos produtores, com a promoção de políticas governamentais e com a ajuda do governo e de todas as instituições oficiais, o uso da criatividade para tornar a Amazônia produtiva. Contudo, que se respeite, ao mesmo tempo, as suas características ecológicas em seus mínimos detalhes, para que o impacto ambiental seja o menor possível. Arrisco-me a dizer que, talvez, fosse possível a padronização de “sistemas mistos”, comportando pequenas quantidades de nutrientes inorgânicos, usando, porém, a “prática de rodízios”, descansando um lote produtivo, e recomeçando em outro, e assim por diante, nos demais anexos, até passar o tempo em que o agricultor retornasse ao primeiro, e ao segundo lote, etc,.. “Sem esquecer do convívio dos cultivares com certos nichos ecológicos, formados por ilhas de florestas, servindo como zonas de proteção ou tampão”.(cf. Asioli,Herald, 1980).

Rodovia Transamazônica
"Levar os homens sem terra a terra sem homens"

A Amazônia, todos o sabemos é, atípica, diferente até de outras regiões tropicais. Portanto, deve receber toda a consideração por parte do governo, de empresários e das famílias campesinas para com a natureza. Assim é um equívoco pensar que, ao derrubar a floresta, extraindo madeira e abrindo extensas clareiras para a formação de pastos, se estará prestando um grande benefício à região, somente porque são gerados alguns poucos milhares de empregos. Entendemos que ao defender essas idéias, o empresário está defendendo o seu lado, à sua empresa que corresponde ao lucro sem refletir sobre as conseqüências que se projetarão sobre as futuras gerações. Pensando assim, eles repetem crenças, sem fundamento científico, de que sempre haverá uma nova reciclagem, retro-alimentando o que resta da antiga floresta. A cerca disso, lembramos de Harald Sioli, cientista do Instituto Max Plank, Alemanha, autor de vários experimentos sobre os ecossistemas, após anos de vivência na floresta tropical, que ao fazer um pronunciamento em um Congresso do Trópico Úmido, em Belém, na década de oitenta, alertou que todos deviam ter em mente que, “o acúmulo de áreas devastadas, pela substituição da mata de terra-firme pelos pastos, vai fazendo com que o período das chuvas torne-se mais esparso, e a insolação aumente”. “Desse modo, - diz ele - sem a proteção das folhagens da copa das árvores, das folhas e dos detritos caídos, as enxurradas removem do solo os poucos nutrientes para o fundo dos rios e lagos. A erosão surge, então, em diferentes pontos, e a arenificação (ou a argila enrijecida) passa a ser a nova paisagem. Exemplos de conseqüências assim, temos na Ilha de Mosqueiro e na região de Santarém, entre outros. Para que haja essa transformação nefasta basta que, pelo volume de árvores derrubadas em uma só área, estas clareiras, cheias de cipós retorcidos, se tornem gigantescas a tal ponto de influenciar na pluviosidade e, ao mesmo tempo, fazer a insolação avançar sobre ás árvores em volta que não são capazes de suportar períodos de extensas estiagens”. As experiências de Sioli, servem para nos alertar para o que está acontecendo, atualmente, nos rios da Amazônia, pois embora saibamos que seca sempre houve, nunca tínhamos presenciado uma secura com a magnitude da que ocorreu em 2005, matando uma significativa quantidade de peixes e deixando as populações nativas numa calamidade sem precedentes. O certo é que ainda não existem estudos para verificar se há, realmente, alguma relação entre esse último período de longa estiagem e seca com o volume de árvores derrubadas, principalmente nas cabeceiras dos rios e lagos amazônicos. Fala-se de haver, ultimamente, queimadas nas cabeceiras do rio Xingu. No início dos anos noventa, pude presenciar paisagens de degradação florestal nas cabeceiras e nas margens do rio Curuá-Una, quando ainda trabalha para a Centrais Elétricas do Pará, - Celpa.

Relato de pesquisas diversas e do depoimento de décadas atrás, do fazendeiro de Uberaba, Mário Palmério (escritor do livro Terra dos Confins) - em um jornal amazonense, sobre suas viagens pela Amazônia Ocidental, que fizemos questão de expor no nosso trabalho participativo do Prêmio Banco da Amazônia de Empreendedorismo Consciente, e que agora reiteramos nesse artigo -, deixam patente que a pecuária em solo, da extinta floresta densa, saí muito dispendiosa para o pecuarista, pois requer correções dos desníveis do solo e a limpeza da área de vez em quando. Ao menos que o governo esbanje incentivos fiscais o que voltaria a ser uma loucura. Como economista, temos que considerar os custos elevados que essas atividades acarretam ao Tesouro Nacional, e assim, podemos dizer, sem constrangimento, que o emprego desse modelo de derrubada de floresta densa é, na verdade, um crime de lesa-pátria, sendo pior ainda se for incentivado pelo governo, como já o foi no passado. O fato de haver êxito da pecuária em alguns pontos da Amazônia, como no Acre e no Sul do Pará e em outras sub-regiões, a ponto de se dar ao luxo de exportar o gado em pé, em nada comprova que a vocação regional seja a criação extensiva de gado bovino. Sem entrar na análise dos custos, de um boi em pé com o que é produzido em regiões do Sul, é bom lembrar que se deve ter o máximo cuidado para não generalizar visto que a Amazônia é heterogênea. Nesse sentido, o que é válido para a Pré-Amazônia paraense, pode não o ser para o Alto Solimões, nem para o meu Médio e Baixo-Amazonas, onde heróis criadores perdem, a cada ano, quantidade significativa de suas minguadas reses, seja com o incipiente transporte, seja com afogamento, quebra de pernas, ou raiva, quando não chegam no destino com o peso rebaixado. Assim sendo, as estratégias de desenvolvimento para a Amazônia, mais especificamente, a clássica Região Norte, devem ser urgentemente revertida do enfoque do lucro exacerbado, rápido e fácil, para outro mais holístico e de longo prazo. Desse modo, será possível delinear a convivência pacífica entre a exploração econômica da madeira, a criação de gado e a preservação da floresta.


Mas, como conseguir preservar produzindo ou produzir preservando que tantos mandatários exclamam? Que espécie de gado e que tipo de exploração madeireira? A respeito disso, e levando a sério às recomendações de fazendeiros experimentados como o foi Mário Palmério, e que foram enviadas à associação de fazendeiros de Uberaba, concebemos que o governo deveria, urgentemente, induzir uma maior produtividade da pecuária de corte nos pastos já existente hoje no Acre e sul do atual Pará, e uma pecuária voltada, unicamente, para a produção de carne a ser exportada, semi-beneficiada ou até industrializada, juntamente com o couro, gerando renda e emprego. Paralelamente, estimular o reflorestamento de áreas já devastadas, orientando-o para a agricultura arbórea, com espécies frutíferas ou que contenham essências, otimizando as vantagens das plantas nativas para a extração dos sub-produtos, verdadeiros sucedâneos do petróleo, tais como os vários tipos de álcool, etanol, etileno, hidrocarbonetos, óleos, resinas,dentre outros. Creio que ao fazer o uso dos conhecimentos genéticos já existentes no meio da comunidade científica, esses sub-produtos poderiam ser componentes para experiências laboratoriais em plena selva, por parte de universidades e institutos de pesquisas nacionais, e colocados à disposição do empreendedor nacional, ou mesmo estrangeiro, e assim, fomentar a intensificação de “ecossistemas de negócios”, envolvendo tanto pequenos produtores rurais isolados e grupos familiares quanto grandes empresas rurais capitalistas exportadora, devidamente selecionadas, supridora de insumos para as indústrias urbanas de transformação, localizadas no Brasil e no exterior.

Essa agricultura arbórea, com plantas nativas, domesticadas em áreas circunscritas às áreas de pastagens, e/ou degradadas, poderia conviver de maneira associada com a criação do gado menor, tais como caprinos, ovinos, suínos, porcos do mato, queixadas, antas, capivaras, pacas, sariemas, emas, avestruz e outras aves silvestres, cujas carnes são comprovadas como deliciosas, e que podem assumir excelente valor econômico no mercado internacional, podendo ser industrializadas aqui mesmo, nos frigoríficos existentes, e em outros mais específicos para esse fim, passando pelos principais portos exportadores, como é o caso de Belém, Manaus, Santarém e Macapá que seriam aparelhados para isso. Vejam como não é tão difícil repensar a Amazônia, o que falta é vontade de ato político e o que sobressai são as vias mais fáceis, não importando o futuro.

Acreditamos que existem maneiras mais interessantes de se conseguir a produtividade, a exemplo da Índia, China e outros países asiáticos, seja fazendo o uso do potencial que a própria natureza oferece para construir seus próprios utensílios de trabalho, seja fazendo o uso dos sistemas de rodízio, seja aplicando leves porções de nutrientes químicos, com reduzido custo de produção. É verdade que a Amazônia precisa produzir para exportar. Entretanto, precisa fazer o uso de um novo modelo de produção agrícola, uma vez que dentre todos os solos da América-Latina, o seu solo é mais carente dos principais nutrientes básicos.

Os motivos pelos quais não se deve utilizar o método de eficiência econômica baseado em grandes aplicações de nutrientes artificiais, na Amazônia, e as multinacionais costumeiramente o fazem, são vários: Um deles é que os produtos químicos, que foram pesquisados e criados para zonas temperadas do Planeta, quando aplicados em grande escala em ecossistemas frágeis, fazem com que os solos só respondam, satisfatoriamente, nos primeiros anos de exploração, correndo o risco de haver produtividade decrescente após a saturação do solo, o que pode obrigar o grande proprietário a incorrer a investimentos suplementares em mais aplicações de nutrientes químicos, ou procurar novas áreas o que será muitas vezes mais pernicioso à natureza (clima, plantas, água e peixes) e, demasiadamente, oneroso, ao país. Portanto, fica evidente que, permanecendo o atual modelo, à proporção que os solos das últimas fronteiras agrícolas passem a ficar mais degradados e pobres de nutrientes, cada vez mais aumentarão as toneladas de produtos artificiais que serão usados nas lavouras, e mais hectares de florestas serão queimadas e derrubadas, resultando em efeitos perversos na cadeia trófica, que serão sentidos bem distante do centro de cultivo e produção, pela desordem que pode ficar acarretando nos rios, prejudicando populações urbanas.

Esta análise macro-econômica serve para dar uma idéia de que o quadro que se apresenta para a Amazônia é muito mais delicado e perigoso do que muitos imaginam. Aventureiros estão lidando com terras, que dentro da configuração de trópico-úmido de solo de clima equatorial, dependem, fundamentalmente, das copas das árvores, da umidade das folhas, dos galhos e detritos caídos no chão e de grandes períodos chuvosos, a fim de nutrir as raízes da mata da terra-firme, que são radiculares e distantes dos profundos lençóis freáticos. É esse solo que pode propiciar vida para infinidades de micro-organismos nunca estudados e pesquisados e que podem servir a humanidade. Esse mundo microscópio de vermes, insetos, fungos, musgos e planktons precisam ser, urgentemente, estudados, no sentido de usá-los na criação de defensivos naturais contra pragas e insetos predadores, causadores de doenças, nos animais e no homem. Além disso, o conjunto de seres interdependentes pode conter mistérios a ser desvendados pela ciência para o uso na medicina, na indústria farmacêutica, cosmética, oleaginosa, e em outros setores, constituindo-se no filão de riquezas que podem gerar, no futuro, inúmeras ramificações de empreendimentos e muitas divisas em dólares para o Brasil. Constatado isso, através de uma análise pormenorizada, fica mais fácil perceber de quanto somos medíocres, egoístas, de visão curta, e até que ponto faz-se o jogo ambicioso das multinacionais, em troca de nada, ou seja, da geração irrisória de empregos.

Geografia e a Arte

Geografia e a Arte
Currais Novos